Resumo: O presente ensaio tem por objetivo analisar, de modo não exauriente, a possibilidade ou não da ocorrência da reformatio in pejus em manejo de recurso administrativo, com ênfase no estudo do conflito de interesses existente entre o Estado, no seu transcendente escopo de zelar pela legalidade de seus atos administrativos e o cidadão na busca da satisfação e conforto dos seus interesses individuais.
Palavras-chave: Recurso administrativo. Inconformismo Humano. Reformatio In Pejus. Legalidade. Interesse Público Prevalente.
É bem verdade que a questão posta tem causado acirradas discussões doutrinárias e jurisprudenciais por envolver situações conflituosas em torno de interesses evidentemente contrapostos.
Nesse diapasão, duas correntes se contrapõem. Há os que entendem que a decisão do recurso interposto na esfera administrativa pode agravar a situação do recorrente, assemelhando o direito administrativo punitivo ao direito processual penal, que é o grande propulsor do referido princípio.
Lado outro, os que, ao revés, entendem pela absoluta impossibilidade de prejuízo do recorrente que tentou obter uma decisão mais branda para o seu caso, fundam os seus argumentos em critérios metajurídicos de justiça e equidade.
Ab initio, o instituto da reformatio in pejus, cuja expressão latina significa "reformar uma sentença ou decisão para pior", é estudado no campo da Teoria Geral do Recurso na disciplina do Direito Processual.
O inconformismo dos litigantes diante de decisões proferidas em detrimento de seus interesses via de regra, exterioriza-se pela via da interposição de recursos, com vistas à reforma ou cassação da decisão, que lhe fora desfavorável.
Isso decorre de três grandes fatores naturais e compreensíveis, importantes, pois, para a vida e liberdade das pessoas, quais sejam: o inconformismo da parte vencida, a possibilidade de erros decisórios em decorrência da falibilidade humana e, por último, a possibilidade da ocorrência de nulidades e abuso de autoridade no proferimento de decisões judiciais e administrativas.
Em matéria processual, núcleo do estudo em apreço, recurso é conceituado como a forma pela qual a parte pode obter o reexame de uma decisão judicial.
Note-se que o principal objetivo do recorrente é reformar ou revogar o pronunciamento judicial ou administrativo ou, até mesmo anular a decisão ou ato.
Para se avaliar a admissibilidade dos recursos, necessário se faz a observância de pressupostos recursais, os quais compreendem requisitos intrínsecos, tais como cabimento, legitimação, interesse e inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer, e extrínsecos, como preparo, tempestividade e regularidade formal.
A par disso, pergunta-se: No âmbito da Administração Pública pode um cidadão, quando da interposição de recurso administrativo, obter uma decisão que importe no agravamento da situação recorrida?
Como se sabe, de um lado, tem a Administração Pública o dever de zelar pela legalidade e justiça de suas decisões. Lado outro, tem o cidadão o direito à ampla defesa, ao contraditório, à segurança jurídica e ao duplo grau de jurisdição, impingidos pela principiologia constitucional do devido processo legal. Aduz-se, um conflito de interesses.
Segundo correntes doutrinárias e jurisprudenciais modernas, pode a Administração Pública, na apreciação de um recurso, reformar sua decisão, tornando mais gravosa a situação do recorrente.
Isso seria possível em função de três grandes princípios que norteiam a Administração Pública, quais sejam: a legalidade dos atos administrativos, a indisponibilidade do interesse público e o interesse pela busca da verdade material.
Os princípios da Administração Pública são definidos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, in verbis:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
Outro aspecto relevante é o direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXV, CF/88, que define o princípio da inafastabilidade do controle judicial, segundo o qual a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito.
No mesmo sentido, o princípio da supremacia do interesse púbico, orienta as ações da Administração Pública para a proteção e satisfação dos interesses sociais, não podendo esta, desvencilhar-se da sua atribuição de guarda, zelo e conservação dos bens públicos, tampouco, transferir a terceiros a sua disponibilidade, o que excepcionalmente somente poderá ser feito pela via legislativa.
Com propriedade e autoridade, ensina Diógenes Gasparin que, segundo o princípio da indisponibilidade do interesse público, não se acham os bens, direitos, interesses e serviços públicos à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública. Aqueles e este não são senhores ou seus donos, cabendo-lhes por isso, tão só o dever de guardá-los e aprimorá-los para a finalidade a que estão vinculados.
O detentor dessa disponibilidade é o Estado. Por essa razão, há necessidade de lei para alienar bens, para outorgar concessão de serviço público, para transigir, para renunciar, para confessar, para revelar a prescrição e para tantas outras atividades a cargos dos órgãos e agentes da Administração Pública.
Sempre lúcido é o pensamento do Professor Hely Lopes Meirelles (2006), quando assevera que a Administração Pública não pode dispor desse interesse geral, mesmo porque ela não é titular do interesse público, cujo titular é o Estado, que, por isso, mediante lei, poderá autorizar a disponibilidade ou a renúncia.
Com acertamento, a Lei Geral do Processo Administrativo n.º 9.784/99 prevê no seu artigo 2º, parágrafo único, inciso II, a indisponibilidade do interesse público pela Administração Pública, in verbis:
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
(...)
II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei.
(...)
O caput do artigo 2º, do referido diploma legal, ficou assim redigido:
Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
A festejada professora Raquel de Carvalho (2008), a seu turno, acrescenta que o interesse público é indisponível e este é um princípio integrante do regime jurídico administrativo. No entanto, embora não seja a alternativa primeira, nem mesmo a regra, pode ser que, em dada realidade, abrir mão de uma vantagem seja a única saída para a real proteção do interesse público primário.
É importante ainda, nessa seara considerar que a Administração Pública pode, no exercício de seu poder de autotutela, anular seus próprios atos, se eivados de vícios de ilegalidade, ou revogá-los, por razões de conveniência e oportunidade. A Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal, pontua:
"A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial".
Não obstante as duas correntes doutrinárias básicas retromencionadas, José dos Santos Carvalho Filho (2006), ao referir-se à corrente que admite a reformatio in pejus, distingue as situações em que a reforma da decisão atende a critérios objetivos ou subjetivos.
Para Carvalho Filho (2006), havendo necessidade de correção da decisão original por elementos essencialmente objetivos, tais como correlação da pena com a gravidade, enquadramento incorreto, utilização errônea de circunstâncias atenuantes ou agravantes, dentre outras, é possível que o órgão julgador do recurso proceda à correta aplicação da lei ao caso concreto, reformando a decisão recorrida, ainda que o resultado seja desfavorável ao recorrente. Isso significa que, se comprovada a ilegalidade, possível será a reformatio in pejus.
Em se tratando de processo disciplinar, tem a Administração Pública o dever de buscar a verdade real por meio do complexo meio de provas admitidas em direito. Se dita verdade real, porém, aparecer somente na via recursal, deve ser ela observada in totum, aplicando-se a sanção correspondente.
Portanto, após exaustivas pesquisas doutrinárias, em que pese os argumentos em contrário, a conclusão a que se chega é a de que a Administração Pública poderá reformar para pior a sua decisão em sede de julgamento recursal, ainda que se trate de recurso disciplinar, desde que vislumbrada a verdade real.
Do mesmo modo, a decisão recursal poderá assumir também outras feições de minoração, anulação, absolvição e de extinção da punibilidade, tudo em nome dos princípios da legalidade, da verdade material e da prevalência do interesse público, que regem a Administração Pública.
Referências
CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Editora Jus Podivrm. Salvador, 2008.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 15º edição. Editora Lúmen Júris. Rio de Janeiro, 2006.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 11º edição. Editora Saraiva. São Paulo, 2006
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Editora Malheiros. 32º edição. São Paulo, 2006.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19º edição. Editora Malheiros. São Paulo.
VASCONCELOS, Jocleber Rocha. Recurso disciplinar militar. Questões polêmicas. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2548, 23 jun. 2010 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/15082>. Acesso em: 17 fev. 2013
VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo. O Princípio da supremacia do interesse público: uma visão crítica da sua devida conformação e aplicação.