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A culpabilidade dos indígenas à luz das exculpantes penais

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24/03/2013 às 15:04

Resumo:


  • Análise das causas de exclusão da culpabilidade penal, focando na inimputabilidade e especificidades culturais dos índios.

  • Abordagem do erro de proibição e da inexigibilidade de conduta diversa como possíveis excludentes de culpabilidade para indígenas.

  • Discussão sobre a adequação do critério de inimputabilidade e a necessidade de respeito às diferenças culturais dos povos indígenas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A doutrina costuma tratar o índio como inimputável ou semi-imputável, excluindo-se ou atenuando-se a sua culpabilidade com motivação em um suposto desenvolvimento mental incompleto por sua não-integração à sociedade.

Resumo: Busca-se, com este estudo, uma breve análise das causas de exclusão da culpabilidade penal, com o escopo de verificar se as especificidades culturais dos índios podem configurar alguma delas e, por conseguinte, se o critério da inimputabilidade, adotado hoje como premissa para o tratamento jurídico-penal do agente indígena, é o mais adequado para afastar sua responsabilidade criminal.

Palavras-chave: Culpabilidade. Excludentes. Imputabilidade. Indígenas.

Sumário: 1. Introdução: A culpabilidade penal e seus requisitos. 2. A Inimputabilidade Penal. 3. O Erro de Proibição. 4. A Inexigibilidade de Conduta Diversa. 5. Conclusão


1. Introdução: A culpabilidade penal e seus requisitos

De acordo com conceituação de Luiz Regis Prado:

“A culpabilidade é a reprovabilidade pessoal pela realização de uma ação ou omissão típica e ilícita. Assim, não há culpabilidade sem tipicidade e ilicitude, embora possa existir ação típica e ilícita inculpável. Devem ser levados em consideração, além de todos os elementos objetivos e subjetivos da conduta típica e ilícita realizada, também, suas circunstâncias e aspectos relativos à autoria.”[1]

A culpabilidade penal, em sua concepção normativa, pode ser melhor conceituada nas palavras de Luiz Flávio Gomes e Antonio Garcia-Pablos Molina, como um juízo de reprovação que está na cabeça de quem julga, mas que tem por objeto o agente do crime e sua ação criminosa.[2], ou seja, um juízo de reprovação que recai sobre o autor de um fato típico e ilícito.

Em síntese, de acordo com a teoria normativa pura, a culpabilidade conta com três requisitos: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. Para que seja culpável, consoante esses elementos, o autor deve ter conhecido o injusto do fato, ou pelo menos deve tê-lo podido conhecer, e deve ter podido decidir-se por uma conduta conforme o Direito em virtude desse conhecimento (real ou possível) do injusto.[3]

Sintetizando os momentos do juízo de reprovação da culpabilidade, os mesmos autores acima citados:

“Em primeiro lugar cabe ao juiz verificar se o autor do fato punível é um agente normal, isto é, se possui maturidade e sanidade psíquica suficientes para suportar a reprovação penal. [...] No segundo nível de valoração, cabe ao juiz analisar se o agente imputável tinha plena consciência da ilicitude do fato ou pelo menos a possibilidade de ter essa consciência (real ou potencial consciência da ilicitude); por último, na terceira etapa, impõe-se ao juiz verificar a normalidade ou anormalidade das circunstâncias em que o agente imputável atuou”.[4]

A ausência de quaisquer desses requisitos elimina a própria culpabilidade, configurando causa de exclusão denominada pela doutrina exculpante ou dirimente da culpabilidade.

No caso específico dos indígenas, merece relevo a análise de cada uma das excludentes da culpabilidade, quais sejam, a inimputabilidade penal, o erro de proibição e a inexigibilidade de conduta diversa, e o cotejo das referidas exculpantes com sua cultura diferenciada, para que se possa estabelecer, à luz dos valores protegidos pela Constituição Federal, onde deverá residir a eventual inculpabilidade.


2. A Inimputabilidade Penal

Como juízo de reprovação que recai sobre o autor de um fato, somente através da análise dos requisitos da culpabilidade é que poderão ser ponderadas determinadas características do agente que levem à impossibilidade de responsabilização criminal ou à atenuação da repreensão penal, já que a tipicidade e antijuridicidade dizem respeito ao fato em si, independentemente de quem o praticou.

A imputabilidade, primeiro requisito da culpabilidade, pode ser definida como a aptidão do ser humano de compreender o caráter ilícito do fato e de determinar-se consoante esse entendimento. A inimputabilidade, a contrario sensu, é a ausência dessa aptidão em razão de determinadas hipóteses trazidas pelo Código Penal, que são os casos da menoridade penal e enfermidade mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado.

Uma das causas de inimputabilidade é a menoridade. De acordo com o artigo 27, do Código Penal, os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial, que é o Estatuto da Criança e do Adolescente.

No Brasil, adota-se para a menoridade o sistema biológico ou etário, pois há uma presunção absoluta de que os menores de dezoito anos não possuem maturidade suficiente para compreender o caráter ilícito do fato ou para determinar-se consoante o entendimento, ainda que, com a evolução dos tempos, a prática demonstre que as pessoas dessa idade já possuem compreensão integral dos fatos da vida.

Como explica Guilherme Nucci:

“Como já afirmado, as condições pessoais do agente para a compreensão do que faz demanda dois elementos: 1º) higidez biopsíquica (saúde mental + capacidade de apreciar a criminalidade do fato); 2º) maturidade (desenvolvimento físico-mental que permite ao ser humano estabelecer relações sociais bem adaptadas, ter capacidade para realizar-se distante da figura dos pais, conseguir estruturar as próprias idéias e possuir segurança emotiva, além de equilíbrio no campo sexual)”.[5]

Ao lado da imaturidade em virtude da pouca idade, a segunda causa de inimputabilidade, cuja compreensão é de suma relevância para o presente estudo, é a doença mental e o desenvolvimento mental incompleto ou retardado.

Dispõe o artigo 26, do Código Penal:

Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Adota-se, nesse segundo aspecto, o critério biopsicológico, porquanto são necessários os dois fatores destacados pelo Código, ou seja, que em virtude da enfermidade mental ou do desenvolvimento mental retardado o agente seja, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Na lição de Luiz Regis Prado:

“o sistema biopsicológico ou misto atende tanto às bases biológicas que produzem a inimputabilidade como às suas conseqüências na vida psicológica ou anímica do agente. Resulta, assim, da combinação dos anteriores: exige, de um lado, a presença de anomalias mentais, e, de outro, a completa incapacidade de entendimento (fórmula do art. 26, CP)”.[6]

Entende-se por doença mental o quadro de alterações psíquicas qualitativas, como a esquizofrenia, as doenças afetivas (antes camadas de psicose maníaco-depressiva ou acesso alternados da excitação e depressão psíquica) e outras psicoses.[7] Desenvolvimento mental incompleto, por sua vez, remete-se às clássicas oligofrenias, que são a idiotia, a imbecilidade, e a debilidade mental, colocadas do maior grau para o menor.

As situações limítrofes, em que se constate uma perturbação mental ou uma deficiência as quais não sejam, no entanto, capazes de retirar a consciência da ilicitude do fato ou a autodeterminação consoante esta consciência, chamadas pela doutrina de semi-imputabilidade, apesar de não excluírem a culpabilidade, podem levar à redução da pena, consoante os ditames do parágrafo único, do artigo 26, do Código Penal, verbis:

Art. 26. (...)

Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um terço a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Percebe-se que o problema da ausência ou da redução da culpabilidade dos indígenas, no entanto, não se resolve no âmbito da inimputabilidade, face ao critério biopsicológico adotado, já que acerca deste critério há de se ter em mente a parte final do preceito, ou seja, doença ou qualquer anomalia que torne o agente, à época do fato, incapaz de ter a compreensão do injusto que realiza ou de orientar-se finalisticamente em função dessa compreensão.[8]

Nessa esteira, no caso dos índios, primeiramente, não há uma presunção de inimputabilidade, como é o caso dos menores de idade, e, por outro lado, não se pode dizer, de forma alguma, que a falta de compreensão do caráter ilícito do fato ou a determinação consoante essa compreensão decorra de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto.

Nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari, proferidas em debate promovido em abril de 1990 pela Comissão Pró-Índio de São Paulo:

“Os índios brasileiros estão em diferentes estágios em relação ao conhecimento dos hábitos da sociedade nacional. Como exemplo, já índios com cursos universitários e índios que sequer falam o português. Existem índios que estão no meio do caminho. São situações diferenciadas e que merecem ser consideradas distintamente... o índio é mentalmente normal, o que ele tem é cultura diferente, e por vezes não entende o significado de determinada regra, como um estrangeiro pode também não entender”.[9]

A Constituição Federal de 1988 dedica capítulo inteiro às disposições sobre os índios e populações indígenas, estabelecendo no artigo 231, norma base dos direitos indígenas, o seguinte:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças, e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Considerando o direito constitucionalmente protegido à pluralidade étnica, não pode prosperar a noção da culpabilidade dos indígenas partindo do pressuposto da inimputabilidade ou semi-imputabilidade, porquanto não impera mais a visão etnocentrista segundo a qual os indígenas em estágios atrasados deveriam, paulatinamente, chegar ao grau de maturidade que se denomina civilização.

No entanto, ainda que este seja o posicionamento mais adequado em virtude da nova ordem constitucional, a jurisprudência brasileira, infelizmente, ainda vem julgando a culpabilidade indígena com base unicamente no critério da inimputabilidade, analisado em virtude do grau de integração do índio.

A propósito, são os seguintes julgados:

HABEAS CORPUS. ESTUPRO. MENORES INDÍGENAS. AUSÊNCIA DE LAUDO ANTROPOLÓGICO E SOCIAL. DÚVIDAS QUANTO AO NÍVEL DE INTEGRAÇÃO. NULIDADE.

Somente é dispensável o laudo de exame antropológico e social para aferir a imputabilidade dos indígenas quando há nos autos provas inequívocas de sua integração à sociedade.

No caso, há indícios de que os menores indígenas, ora pacientes, não estão totalmente integrados à sociedade, sendo indispensável a realização dos exames periciais.

É necessária a realização do estudo psicossocial para se aferir qual a medida sócio-educativa mais adequada para cada um dos pacientes.” Ordem concedida para anular a decisão que determinou a internação dos menores sem a realização do exame antropológico e psicossocial.[10]

CRIMINAL. HC. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PORTE ILEGAL DE ARMA. ÍNDIO. NULIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. FALTA DE PERÍCIA ANTROPOLÓGICA. DISPENSABILIDADE. RÉU INDÍGENA INTEGRADO À SOCIEDADE. PLEITO DE CONCESSÃO DO REGIME DE SEMILIBERDADE. ART. 56, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI N.º 6.001/73. IMPOSSIBILIDADE. CONDENAÇÃO POR CRIME HEDIONDO. ORDEM DENEGADA.

Hipótese em que o paciente, índio Guajajara, foi condenado, juntamente com outros três co-réus, pela prática de tráfico ilícito de entorpecentes, em associação, e porte ilegal de arma de fogo, pois mantinha plantio de maconha na reserva indígena Piçarra Preta, do qual era morador.II. Não é indispensável a realização de perícia antropológica, se evidenciado que o paciente, não obstante ser índio, está integrado à sociedade e aos costumes da civilização.

III. Se os elementos dos autos são suficientes para afastar quaisquer dúvidas a respeito da inimputabilidade do paciente, tais como a fluência na língua portuguesa, certo grau de escolaridade, habilidade para conduzir motocicleta e desenvoltura para a prática criminosa, como a participação em reuniões de traficantes, não há que se falar em cerceamento de defesa decorrente da falta de laudo antropológico.

IV. Precedentes do STJ e do STF.

V. Para a aplicação do art. 56, parágrafo único, da Lei n.º 6.001/76, o qual se destina à proteção dos silvícolas, é necessária a verificação do grau de integração do índio à comunhão nacional.

VI. Evidenciado, no caso dos autos, que paciente encontra-se integrado à sociedade, não há que se falar na concessão do regime especial de semiliberdade previsto no Estatuto do Índio, o qual é inaplicável, inclusive, aos condenados pela prática de crime hediondo ou equiparado, como ocorrido in casu. Precedentes.

VII. Ordem denegada.[11]

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A proteção à diversidade cultural do país gera a exigência de considerar eventual ausência de culpabilidade dos indígenas não em virtude de um desenvolvimento mental incompleto, que levaria à inimputabilidade, mas em razão - a depender da hipótese - das exculpantes a seguir demonstradas.


3. O Erro de Proibição

A ausência do elemento potencial consciência da ilicitude dá lugar ao chamado erro de proibição, tratado no artigo 21, do Código Penal, que, quando é invencível é causa excludente da culpabilidade.

Consoante doutrina de Guilherme de Souza Nucci, “o erro é a falsa representação da realidade ou o falso conhecimento de um objetivo (trata-se de um estado positivo), a ignorância é a falta de representação da realidade ou o desconhecimento total do objeto (trata-se de um estado negativo)”.[12]

O erro de proibição, por seu turno, é o erro que incide sobre a ilicitude do fato, pois o agente pensa que é lícito o que, na verdade, não é.

O erro de proibição difere do chamado erro de tipo porquanto este último recai não sobre a ilicitude do fato, mas sobre os requisitos típicos do delito, excluindo, por conseqüência, a tipicidade. De acordo com os autores supracitados, uma coisa é não ter consciência só da ilicitude do fato (mas saber o que está fazendo), outra bem distinta é não saber o que se faz (é não ter consciência dos requisitos típicos do delito).[13]

Como já dito, o legislador pátrio tratou do erro de proibição no artigo 21, do Código Penal, distinguindo-o da mera ignorância da lei. Assim, na leitura desse dispositivo, “o desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”.

O conhecimento da lei é uma presunção imposta pelo artigo 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil. Já o erro de proibição está relacionado não ao dispositivo da norma escrita, mas ao conteúdo desta, que é adquirido através da vivência em sociedade.

Consoante Cezar Roberto Bitencourt:

“A ignorantia legis é matéria de aplicação da lei, que, por ficção jurídica, se presume conhecida por todos, enquanto o erro de proibição é matéria de culpabilidade, num aspecto inteiramente diverso. Não se trata de derrogar ou não os efeitos da lei, em função de alguém conhecê-la ou desconhecê-la. A incidência é exatamente esta: a relação que existe entre a lei, em abstrato, e o conhecimento que alguém possa ter de que seu comportamento esteja contrariando a norma legal. E é exatamente nessa relação – de um lado a norma, em abstrato, plenamente eficaz e válida para todos, e, de outro lado, o comportamento em concreto e individualizado – que se estabelecerá ou não a consciência da ilicitude, que é matéria de culpabilidade, e nada tem que ver com os princípios que informam a estabilidade do ordenamento jurídico”.[14]

Em verdade, o erro de proibição pode ser direto ou indireto. No primeiro caso, que é o modelo clássico trazido pelo Código Penal, apresenta-se como a ausência de compreensão sobre a ilicitude de um fato, recaindo sobre a norma proibitiva. No segundo, há uma justificação putativa, ou seja, o agente conhece a norma proibitiva, mas erra sobre os pressupostos fáticos de uma causa de exclusão da antijuridicidade ou desconhece seus limites, ou ainda, supõe a existência de uma causa descriminante que não existe.

Exemplificando, há erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de exclusão quando o agente vislumbra ataque de mendigo, na verdade, inexistente; erro sobre os limites, quando se crê que é possível matar alguém para defender a honra e, ainda, erro sobre a existência de causa descriminante na crença da vigência de alguma causa justificante, por exemplo, a eutanásia.[15]

Sobre a primeira hipótese de erro de proibição indireto, quando o agente, por exemplo, representa mal um fato da realidade, achando estar em situação de se defender, convém ressaltar que a doutrina diverge, pois parcela significativa considera ser uma hipótese de erro de tipo[16]. Não obstante, o Código Penal dá a todas elas tratamento de erro de proibição, excluindo, indistintamente, a culpabilidade caso digam respeito a erro invencível.

A doutrina distingue o erro de proibição em erro vencível e erro invencível. Regra geral, o erro invencível é aquele inevitável pelas diligências ordinárias, ou do chamado “homem médio”, enquanto o vencível é aquele que poderia ter sido evitado caso houvesse um mínimo de esforço de inteligência por parte do agente.

Diferenciando-os, Guilherme de Souza Nucci expõe:

“A fundamental diferença entre ambos é a seguinte: o erro de proibição é considerado escusável se o agente, à época da realização da conduta, não tinha consciência atual, nem potencial da ilicitude; o erro de proibição é considerado inescusável se o agente, quando realiza a conduta, não tinha consciência atual, mas lhe era possível saber que se tratava de algo ilícito”.[17]

A relevância exculpatória do erro de proibição é conquista dos sistemas penais modernos, porquanto havia um constante temor na sensação de impunidade que a isenção da pena com fundamento nessa excludente de culpabilidade poderia causar, o que levava os doutrinadores a aplicarem, indistintamente, o brocardo romano do error iuris semper nocet.

Nesse sentido, Nelson Hungria:

“Em países, porém, como o Brasil, onde impera o analfabetismo e em cuja vastidão a consciência jurídica do povo escasseia à proporção que se distancia do litoral, seria erro gravíssimo a admissão de generalizada relevância do erro de direito (atual erro de proibição). Afora o caso de crimes que atrocitatem facinoris habent, estaria criado para a gente inculta dos ‘morros’ e do remoto sertão, com o elastério da escusativa, um verdadeiro Bill de idenidade contra a justiça penal. Certamente, a consciência de antijuridicidade, integrante do dolo, deveria ser excluída pelo erro de direito, quanto o é pelo erro de fato (atual erro de tipo); mas o erro de direito deve ser declarado inescusável, pelo menos em países com diversidade de graus de adiantamento cultural, por isso que, além de provir da omissão do dever cívico de conhecer as proibições impostas pela necessidade da disciplina social, importaria, se considerado relevante, a impunidade do extenso número de delinqüentes, em cuja defesa se invocaria sempre, e com árdua dificuldade de prova em contrário, a ignorância”.[18]

Não obstante, é de fundamental importância a disseminação da exclusão da culpabilidade nos casos em que haja erro de proibição, pois, consoante os ditames de um Direito Penal garantista, não há como subsistir uma reprovação sobre um agente que não tinha e nem poderia ter consciência de que cometeu um ato ilícito ou de que sua conduta não estava amparada legalmente.

O erro de proibição, direto ou indireto, gerado em razão das práticas culturais de cidadãos de determinado grupo étnico, como é o caso dos indígenas, é o chamado erro de proibição culturalmente condicionado.

Sobre os critérios para a qualificação de um erro culturalmente condicionado, Luiz E. Francia Sanchez aduz que:

“Se debe tener en cuenta el hecho de que sea miembro de una comunidad nativa o campesina y que por su cultura o costumbre no pueda comprender el carácter delictuoso de su acto o determinarse de acuerdo a esa comprensión, pero básicamente se debe analizar cada caso concreto para establecer si efectivamente se trata de un error de comprensión culturalmente condicionado, que dé lugar a su inculpabilidad. También se podría comprender a personas que se hayan integrado a la comunidad y actúan de buena fe. Precisar las diferentes normas consuetudinarias que rigen las relaciones sociales en esa comunidad e igualmente las normas morales que han sido internalizadas por los integrantes del grupo cultural”.[19]

Especificamente no tocante à aplicação do erro de proibição à questão indígena, exemplificam Zaffaroni e Pierangelli:

“Pode-se objetar que, se amanhã trouxermos um indígena para o centro de uma grande cidade e o deixarmos livre, e ele supuser que cada branco que dele se aproximar quer matá-lo, deverá reagir matando a todo branco que vê, e, com absoluta tranqüilidade, teríamos que deixá-lo seguir com a sua matança, por encontrar-se num erro de proibição (justificação putativa) culturalmente condicionado. A objeção é mais aparente do que real, posto que, em tal caso, não existe dúvida, para nós, de que o mais correto seria restituir o campesino ao meio do qual nunca deveria ter se subtraído, e condenar ao irresponsável que o retirou de seu meio natural”.[20]

Além desse exemplo, um caso que demonstra a ocorrência de um erro de proibição direto é o do índio que masca coca desde criança e não pode internalizar a norma que proíbe sua posse.[21]

Assim, Zaffaroni e Pierangeli prosseguem afirmando que:

“Muito embora exista delito que o silvícola pode entender perfeitamente, existem outros cuja ilicitude ele não pode entender, e, em tal caso, não existe outra solução que não a de respeitar a sua cultura no seu meio, e não interferir mediante pretensões de tipo etnocentrista, que escondem, ou exibem, a pretendida superioridade da nossa civilização industrial, para destruir todas as relações culturais a ela alheias”.[22]

Em verdade, por todo o exposto, a tendência atual é tratar a questão indígena sob o manto do erro de proibição culturalmente condicionado e não na direção da inimputabilidade.

Em uma síntese do pensamento aqui exposto, os mesmos autores esclarecem:

“De maneira alguma se pode sustentar que o silvícola, ou aquele que comparte de regras de qualquer outro grupo cultural diferenciado, seja um inimputável, ou uma pessoa com imputabilidade diminuída, como se sustenta com freqüência. Trata-se de pessoas que podem ser, ou não, inimputáveis, mas pelas mesmas razões que podemos nós também o ser, e não por pertencerem a um grupo culturalmente diferenciado. A psiquiatria ideológica – biologista e racista – já produziu estragos em demasia para continuar buscando suas soluções aberrantes. Nada tem de diferente do discurso de justificação, que produziu freqüentíssimas destruições de grupos culturais originários e de perseguição religiosa, falando em delírios coletivos frente a atos e cerimônias que jamais compreenderam, e de relações culturais diferenciadas como simples e primitivas, quando a antropologia comparada nos mostra, hoje, a sua enorme complexidade. O homem da civilização industrial inventou, no seu gabinete de elocubração, uma “mentalidade primitiva”, que foi desmentida por todas as investigações de campo contemporâneas”.[23]

Destarte, mostra-se indispensável uma solução que vislumbre e respeite as diferenças culturais existentes entre os povos, na forma que a Constituição Federal preconiza, desconsiderando o ultrapassado critério da integração e a visão dos indígenas como inferiores intelectualmente, nos moldes antigos do “desenvolvimento mental incompleto”.

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Sobre a autora
Marcela Baudel de Castro

Procuradora Federal. Pós-graduada em Ciências Penais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Marcela Baudel. A culpabilidade dos indígenas à luz das exculpantes penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3553, 24 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23972. Acesso em: 22 dez. 2024.

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