Resumo: Ao proteger relações com intensidade de concretização acentuada, nas quais ou a propriedade do bem ainda não é da empresa devedora em recuperação, ou já saiu de sua esfera de disponibilidade, o § 3º do art. 49 da Lei n.º 11.101/2005 atende satisfatoriamente às delimitações extraídas dos princípios contidos no art. 170, da Constituição da República de 1988, pois, a toda evidência, viabiliza o exercício da liberdade de iniciativa econômica privada no interesse da justiça social, não havendo que se falar em sua inconstitucionalidade.
I. Considerações Iniciais
A Lei de Recuperação de Empresas (n.º 11.101), de 9 de fevereiro de 2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, foi editada com o notório intuito de desafogar o Poder Judiciário das inúmeras demandas de falência – o que, efetivamente, tem se dado nas Varas Judiciais País afora –, possibilitando à empresa devedora que passa por crise financeira se valer dos institutos da recuperação judicial ou extrajudicial para apresentar aos seus credores um programa de pagamento das dívidas que viabilize à mesma quitar seus débitos sem que tenha que encontrar o seu fim.
Malgrado a mens legislatoris notoriamente se direcione à preservação do empresário em dificuldades financeiras, fato é que o legislador teve o devido cuidado ao tratar de relações jurídicas firmadas com um certo grau de segurança, colocando a salvo do concurso formado na recuperação, em certos casos, os direitos de alguns credores do empresário devedor. Deste modo, forma-se um jogo de pretensões contrapostas e igualmente protegidas pela lei que reiteradamente são objeto de questionamento perante o juízo da recuperação judicial e falência.
É o que ocorre, por exemplo, com o § 3º do art. 49 da Lei de Recuperação, que, excetuando a regra posta no caput do artigo – que submete à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos – estabelece que se tratando de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º da LRE, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais à sua atividade empresarial.
Assim, com frequência, o Poder Judiciário é provocado a se manifestar,ex vi do art. 5º, XXXV, CR, em sede de controle de constitucionalidade difuso e concreto, sobre a constitucionalidade deste dispositivo legal, em especial quando contraposto aos princípios expressos da ordem econômica ditados pelo texto constitucional.
Este é, pois, o objeto deste estudo, a análise da constitucionalidade do § 3º do art. 49 da Lei de Recuperação Empresarial em face dos princípios constitucionais que dirigem a ordem econômica do País.
II. Análise do Tema
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, expõe em seu art. 170 os princípios da ordem econômica nos seguintes termos:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização dotrabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Analisando o dispositivo não há como negar que o legislador constituinte originário demonstrou sua preocupação com a livre iniciativa, mormente ante a colocação dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como princípios fundamentais no art. 1º da atual Carta Política.
Não se pode negar, de igual maneira, que a diretiva relativa à empresa e à necessidade de sua manutenção, ante o patente interesse social, foi exposta de forma principiológica, e não preceitual, de modo que para se extrair a real profundidade da norma constitucional urge que seja ela conformada.
A ponderação exigida pela norma constitucional em tela é esclarecida de forma cristalina por José Afonso da Silva, que leciona:
Assim, a liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que ‘liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo’. É legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário.[1]
Não há como refutar o fato de que a redação do art. 47, da Lei de Recuperação de Empresas, é medida legitimadora da liberdade da iniciativa econômica privada, já que representa facilidade concedida à empresa dentro desta preocupação constitucional de realização de justiça social, dispondo que:
A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Todavia, o Poder Público, neste jogo de interesses que precisam ser tutelados, os da empresa devedora e os de seus credores, ambos com o mesmo fundamento constitucional, impôs algumas limitações à benesse da recuperação, dentre elas a não submissão de algumas espécies de créditos ao concurso de credores.
Isto por que, embora se reconheça a importância sócio-econômica da empresa, a sua recuperação não pode se dar a qualquer custo, sob pena de se estar a admitir um calote legal, que produziria funestos efeitos no seio social e na segurança das relações jurídicas.
Tem-se, então, que, se de um lado é preciso tentar manter a empresa submetida à recuperação em operação, de outro é necessário resguardar, também, a saúde financeira de seus credores para que a recuperação daquela não cause a inviabilidade econômica destes, gerando, dessa forma, um efeito dominó, já que os credores da empresa em recuperação inviabilizarão a economia de seus credores, e assim por diante.
Com efeito, a medida de exclusão dos créditos enumerados no art. 49, § 3º, da Lei n.º 11.101/2005, do concurso de credores não se mostra desproporcional ou desarrazoada, pois, em última análise, os negócios jurídicos enumerados não são relações atreladas a alguma garantia, mas relações com intensidade de concretização acentuada, nas quais ou a propriedade do bem ainda não é da devedora em recuperação, ou já saiu de sua esfera de disponibilidade, senão vejamos:
Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
[...]
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
Ao proprietário fiduciário – e não se pode olvidar aqui que a lei não o chamou de credor porque é, de fato, o senhor da coisa – pertence a propriedade resolúvel do bem, seja ele móvel ou imóvel, ou seja, até que a obrigação garantida pela alienação fiduciária não seja cumprida, ao credor pertence o bem, sendo que, não sendo satisfeita a prestação, esta propriedade se consolidará em suas mãos.
O bem objeto de arrendamento mercantil, da mesma forma, não pertence ao devedor, mas ao credor, que o aluga para aquele com a possibilidade de que, ao término do aluguel, possa vir a adquirir a sua propriedade.
O proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, dentro das condições de regularidade do negócio jurídico, não pode mais dispor do bem, de modo que não haveria como frustrar o credor que já não tem mais mera expectativa sobre o bem, disponibilizando a coisa a terceiros que participam do concurso.
Quanto ao proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, é de se reafirmar o que foi dito em relação ao proprietário fiduciário, já que até que se cumpra a obrigação, a propriedade do bem não é transferida de forma plena, de modo que pode o credor, inclusive, reaver a coisa.
É importante, então, destacar que essas relações diferem em muito de outras operações que contam com garantia real, tais como penhor, hipoteca etc., nas quais o bem não saiu da esfera de disponibilidade do devedor, mas, apenas, foi atrelado à eventual execução judicial da obrigação.
Nesse sentido, aliás, já tem se inclinado o posicionamento jurisprudencial:
Entretanto, é necessário reconhecer que o legislador retirou alguns créditos deste regime de exceção, privilegiando a segurança das relações contratuais entabuladas sob garantia fiduciária, uma vez que a propriedade – nesses casos – se desloca de um contratante a outro, constituindo-se este no novo dono da coisa, ainda que sem a sua posse direta.
A Lei n.º 11.101/2005 excluiu da recuperação judicial os créditos referentes a pactos de alienação fiduciária, vale dizer, os contratos em que o credor é o real proprietário do bem móvel objeto da avença, dando a posse direta da coisa ao devedor, mediante pagamento de um valor destinado a adquirir a coisa objeto do negócio entabulado.
Explica a doutrina:
Os § 3º e 4º do artigo 49 apontam expressamente os créditos excluídos. O primeiro deles refere-se àqueles créditos em que o credor é proprietário do bem objeto do negócio ou oferecido em garantia. Note-se que não corresponde exatamente a todos os créditos com garantia real, eis que esta, na maioria das vezes, é representada por bem que se mantém na propriedade do devedor, mas que é onerado para garantir a eventual inadimplência de determinado negócio jurídico.[2]
Ademais, mostra-se proporcional a medida também porque na parte final do dispositivo em questão (art. 49, §3º, Lei n.º 11.101/2005), o legislador teve o cuidado de garantir que os bens envolvidos nas relações nele elencadas permaneçam na posse do devedor durante o prazo de 180 dias, dentro do qual deverá ele planejar de que forma poderá se reestruturar, sabendo que tais bens poderão, ao final do prazo, ser tomados pelos respectivos proprietários.
Portanto, a norma prescrita no § 3º do art. 49 da Lei de Recuperação Empresarial não se reveste de inconstitucionalidade, já que, pelos argumentos até aqui expendidos, foi editada dentro dos parâmetros constitucionais estabelecidos pelos princípios da ordem econômica.
III. Considerações Finais
Embora passados muitos anos de tramitação no Congresso Nacional, enquanto projeto de lei, deve ser aplaudida a iniciativa legislativa da edição da Lei de Recuperação de Empresas e a revogação da vetusta Lei de Falências. O novel estatuto desvela o relevo que representa a empresa no contexto social e econômico atual, buscando viabilizar, assim, a sua recuperação e preservação, em perfeita sintonia com nossa Lei Fundamental, o que está a produzir resultados altamente positivos na rotina forense.
Assim, ao proteger relações com intensidade de concretização acentuada, nas quais ou a propriedade do bem ainda não é da empresa devedora em recuperação, ou já saiu de sua esfera de disponibilidade, o § 3º do art. 49 da Lei n.º 11.101/2005 atende satisfatoriamente às delimitações extraídas dos princípios contidos no art. 170, da Constituição da República de 1988, pois, a toda evidência, viabiliza o exercício da liberdade de iniciativa econômica privada no interesse da justiça social, não havendo que se falar em sua inconstitucionalidade.
Em suma, o dispositivo em questão e todo o texto legal em que está inserido bem servem à necessária ponderação entre os interesses do empresário em dificuldades econômicas e financeiras e as pretensões de seus credores, sem estabelecer, nem a um e nem a outro, odioso privilégio desarrazoado capaz de colocar em xeque o princípio constitucional da isonomia.
Notas
[1] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 794.
[2] Agravo de instrumento n.º 109547/2011, 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, de relatoria do desembargador Orlando de Almeida Perri, j. 10/01/2012. No mesmo sentido: STJ – 2ª Seção – agravo regimental no conflito de competência 2011/0241236-2 –Rel. Min. Raul Araújo, j. 08/02/2012. TJ/MT – 5ª Câmara Cível – Apelação n.º 66559/2011 –Rel. Des. Carlos Alberto Alves da Rocha, j. 14/12/2011. TJ/MT – 6ª Câmara Cível – Agravo de instrumento n.º 58258/2011 – Rel. Juiz Marcelo Souza de Barros, j. 30/11/2011.