O Papel da Reserva Legal e a Produtividade do Imóvel Rural
Com a ascensão do movimento pós-positivista, em que os princípios constitucionais são vistos como normas balizadoras de todo o ordenamento jurídico, nasce um campo vasto de leis e atos administrativos passíveis de revisão para o melhor adequamento aos objetivos constitucionais.
Isso quer dizer que o neoconstitucionalismo impõe, de forma geral, que as regras e atos administrativos não apenas estejam de acordo com o texto da Constituição, mas que, ao mesmo tempo, não violem princípios dela decorrentes.
Sob esse prisma, merecem revisão os atos do Poder Público relativos à Reforma Agrária.
Num primeiro momento, há que se analisar o direito de propriedade consagrado no artigo 5°, XXII da Constituição Federal, como “direito e garantia fundamental”.
De certo que o direito de propriedade, nas palavras de Washington de Barros Monteiro “o mais importante e o mais sólido de todos os direitos subjetivos, o direito real por excelência”, é, também, direito fundamental constitucionalmente consagrado no art. 5°, XXII, e condicionado ao cumprimento da função social, igualmente confirmada na constituição e decorrente da evolução histórica das constituições liberais às constituições sociais.
Paralelamente, urge uma exposição sobre as condicionantes desse direito fundamental à propriedade.
A CF/88 aprofunda o tema ao normatizar que o imóvel rural descumpridor de sua função social será desapropriado para fins da Reforma Agrária e, ainda, relaciona os critérios caracterizadores da função social da propriedade rural em seu artigo 186, a saber: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
O artigo 186 trata evidentemente dessa faceta “condicional” do direito de propriedade, na medida em que não há em nosso ordamento jurídico qualquer direito que seja absoluto, notadamente no cenário neoconstitucionalista em que é possível, inclusive, colisão entre princípios constitucionais a serem resolvidos pela técnica da ponderação.
Por outro lado, o artigo 185 da Magna Carta traduz exatamente a propriedade em sua garantia fundamental na medida em que elenca situações em que a propriedade rural não poderá ser desapropriada, dentre elas, a propeidade produtiva.
Regulamentando os artigos relativos à Reforma Agrária foi sancionada a lei n° 8.629 de 25 de fevereiro de 1993 que aprofundou o conceito de produtividade ao tratar em seu artigo 6° as condições para que a propriedade rural seja considerada produtiva, introduzindo as noções de “GUT” (graus de utilização da terra) e “GEE” (grau de eficiência na exploração) que devem atingir o mínimo de 80% (oitenta por cento) e 100% (cem por cento), respectivamente.
Eis, então, o cenário geral acerca da função social do imóvel rural: aquele que não cumprir a sua função social será passível de desapropriação, a contrario sensu, o direito de propriedade é plenamente assegurado, não estando o imóvel passível de desapropriação para Reforma Agrária. Vê-se, claramente, que a regra é o direito de propriedade, e não o contrário.
Ao mesmo tempo nota-se que dentre os critérios de função social encontra-se a produtividade, esta, por sua vez, verificada por meio de cálculo aritmético.
Em verdade, a análise crítica e sistemática da legislação a respeito da Reforma Agrária, tem-se que a função social encontra suas balizas em obrigações positivas e negativas ao proprietário. Positivas no que tange aos incisos I, III e IV do artigo 186 da Constituição Federal e negativas no que toca ao incico II do mesmo dispositivo, a saber, a não degradação dos recursos naturais visando, assim, a proteção ambiental.
Nesse cenário, o proprietário tem o dever de, não apenas atingir os graus de produtividade determinados pela lei 8.629/93, como, também, de proteger o meio ambiente.
E como medida protetiva ao meio ambiente, o antigo Código Florestal, lei 4.771/65, tratou de definir reserva legal em seu art. 1°, inciso III, como sendo a área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas.
Seguiu a lei infraconstitucional (art. 16 do antigo Código Florestal) estabelecendo os percentuais de tal limitação administrativa em prol da preservação do meio ambiente de acordo com o tipo e localização do imóvel, sendo este percentual de 20% (vinte por cento) na propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País e na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do País.
O parágrafo 2° do artigo 16 acima citado determina ainda que não poderá haver supressão da Reserva Legal pelo proprietário, a não ser para manejo florestal e outras hipóteses expressamente previstas por lei, estando o proprietário obrigado a promover a averbação da reserva legal junto ao Cartório de Registro de Imóveis, por força do parágrafo 8° do mesmo dispositivo.
A lei 4.771/65 foi revogada pelo atual Código Florestal (lei 12.651/12) que, mantendo, logicamente, a preocupação ambiental, definiu reserva legal em seu art. 3°, inciso III, como área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa.
No que toca aos percentuais protetivos ao meio ambiente, determinou no artigo 12 os limites de reserva legal também de acordo com a área em que o imóvel é situado, mantendo o percentual de 20% (vinte por cento) para imóveis situados emm áreas de campos gerais e localizados em outras regiões do país que não as hipóteses elencadas nas alíneas “a” e “b” do inciso I.
Novidade trazida pelo Códiogo Florestal diz respeito à supressão da obrigação de acerbação da Reserva Legal do imóvel, bem como na autorização para a supressão da mesma mediante autorização pelo órgão ambiental estadual responsável integrante do Sisnama.
Duas observações podem ser feitas a partir da análise dos artigos acima transcritos, tanto do anterior, quanto do atual Código Florestal: i) A Reserva Legal definida pela leis tem por objetivo a proteção ambiental, tratando-se de uma limitação administrativa, cuja averbação na matrícula é essencial para a atividade de manejo, porquanto, como limitação administrativa que é, a obrigação de não fazer já é inerente – em outras palavras, não basta a existência da reserva legal, há a obrigação de mantê-la, independentemente de qualquer ato declaratório, como a averbação às margens da matrícula do imóvel –, estando, portanto, ligada à obrigação negativa do proprietário em relação ao imóvel rural insculpida no inciso II do artigo 186 da Constituição, NÃO PODENDO, DESTA FEITA, SERVIR COMO CRITÉRIO PARA AUFERIMENTO DE PRODUTIVIDADE que, por sua vez, trata-se de uma obrigação positiva; e ii) desde a vigência do novo Código Florestal, foi suprimida a exigência de averbação da Reserva Legal na matrícula do imóvel, sendo esta substituída pelo “CAR” – CADASTRO AMBIENTAL RURAL.
Sobreveio, ainda, a lei, 12.727/12 que deu nova redação aos artigos 29 e 30 do Novo Código Florestal, determinando, então, que o controle administrativo da Reserva Legal será feito por meio do “CAR” – CADASTRO AMBIENTAL RURAL.
Mais uma vez fica evidenciado o objetivo ambiental da Reserva Legal, na medida em que o “CAR”, que veio a substituir a obrigatoriedade de averbação da limitação adminsitrativa junto ao Cartório de Registro de Imóveis, expressamente menciona sua finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento.
Daí que, notoriamente, não há que se confundir os requisitos de cumprimento da função social da propriedade, sendo sim cumulativos, porém não indissociáveis. Desta feita, a propriedade deve, de um lado, ser produtiva e, de outro, observar a preservação ambiental nos percentuais definidos em lei (além, de claro, atender aos demais requisitos impostos pelo art. 186 da Constitução Federal).
A questão, contudo, fica a cargo do INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA/INCRA, Autarquia Federal criada pelo Decreto-Lei n. 1.110/70, responsável pela execução da Reforma Agrária. Referida autarquia editou a Instrução Normativa de n° 11, datada de 4 de abril de 2003, estabelecendo os procedimentos para cálculo dos Graus de Utilização da Terra – “GUT” – e de Eficiência na Exploração – “GEE”.
Define a Instrução Normativa, em seu artigo 4°, que a propriedade é considerada produtiva se atingir, simultaneamente, um “GUT” superior a 80% e um “GEE” superior a 100%.
Segue esclarecendo o CÁLCULO ARITMÉTICO a ser realizado para apuração dos valores de “GUT” (arts. 5° a 8° da Instrução Normativa n° 11) e “GEE” (arts. 9° e 10 da Instrução Normativa n°11).
Interessa-nos avaliar o cálculo do “GUT”, na medida em que aqui reside a diferença entre excluir ou não a Reserva Legal para apuração da produtividade.
Preceitua o artigo 5° da IN 11 que o Grau de Utilização da Terra - GUT, de que trata o art. 6.º da referida lei será fixado mediante divisão da área efetivamente utilizada pela área aproveitável do imóvel, multiplicando-se o resultado por cem para obtenção do valor em percentuais.
O mesmo artigo da Instrução Normativa determina quais são as áreas consideradas como efetivamente utilizadas para fins de auferimento de produtividade do imóvel rural e, em seguida, no artigo 6°, determina as áreas que devem ser excluídas do cálculo do “GUT” por serem áreas não aproveitáveis, elencando, dentre as hipóteses, as áreas protegidas por legislação ambiental e as de efetiva preservação permanente nos termos da lei.
Novamente, observa-se o caráter de protecionismo ambiental para verificação do cumprimento do inciso II do artigo 186 da Constituição Federal, na medida em que as áreas protegidas por legislação ambiental não podem ser aproveitadas pelo proprietário para finalidade agrícola ou pecuária, posto que protegidas por lei ambiental, ou seja, tratando-se de uma limitação administrativa com vistas à consecução da finalidade social do imóvel no que tange à observação das normas para preservação do meio ambiente.
De se lembrar que a Reserva Legal é imposta pela legislação ambiental, sendo de observação obrigatória por todos os proprietários de imóveis rurais e portanto, se enquadram como “protegidas por legislação ambiental” a ser excluída do cálculo do Grau de Utilização da Terra na forma da Instrução Noramativa n° 11 do INCRA.
Não obstante as considerações até então feitas, sabe-se que a Administração Pública, in casu por meio do INCRA através da delegação decorrente da descentralização administrativa, em seu exercício do poder de polícia, exerce a “fiscalização de polícia”, atuando no sentido de garantir que a preservação ambiental seja devidamente cumprida pelos proprietários de imóveis rurais e, sendo o caso, aplicando a “sanção de polícia”, penalidade pelo seu descumprimento.
Nessa linha, a sanção pelo descumprimento da observação da legislação de proteção ao meio ambiente encontra-se regulamentada pelo Decreto n° 6.515 de 22 de Julho de 2008 que, dispondo sobre as infrações ambientais, prevê a ausência de averbação da Reserva legal na matrícula do imóvel como infração ambiental.
“Art. 55. Deixar de averbar a reserva legal: Penalidade de advertência e multa diária de R$ 50,00 (cinqüenta reais) a R$ 500,00 (quinhentos reais) por hectare ou fração da área de reserva legal.
Como se vê, trata-se de uma sanção por infração ambiental, que, por sua vez, relaciona-se com a abstenção do proprietário em tomar medidas de publicidade do cumprimento da proteção ambiental necessárias ao controle e fiscalização por parte da Administração Pública, notadamente pelos órgãos ambientais.
Patente que a averbação da Reserva Legal na matrícula do imóvel – ou, atualmente, a sua informação e cadastro pelo “CAR”, criado pela lei 12.727/12 – é, de fato, obrigatória para fins de controle de proteção ambiental, novamente vinculado ao critério de função social inscrito no inciso II do artigo 186 da Constituição Federal.
Todavia, há que se assinalar as diferenças entre a não existência da Reserva Legal propriamente dita e a ausência de publicidade acerca da existência da Reserva Legal.
No primeiro caso, a legislação atual tratou de traçar diretrizes a assegurar os preceitos de conservação ambiental, como, por exemplo, a autorização para instituição de Reserva Legal em regime de condomínio, ou até mesmo fixação de termo de compromisso firmado perante o órgão ambiental para recuperação, manutenção e instituição de Reserva Legal nos imóveis que não a possuam.
Logo se vê o avanço da legislação no tocante à proteção ambiental, na medida em que incentiva e cria mecanismos para que os proprietários possam atingir a finalidade do Estado de atender aos interesses coletivos voltados à preocupação com as presentes e futuras gerações na manutenção de um ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 Constituição Federal).
Já no que toca à ausência de averbação – ou registro no “CAR” – da Reserva Legal, não há uma preocupação quanto ao efetivo atendimento do interesse coletivo ambiental, posto que existente, mas sim uma imposição da ordem de polícia para viabilizar a fiscalização do atendimento do interesse coletivo ambiental.
Não por outra razão, o legislador optou pela imposição de multa diária pela não publicidade da Reserva Legal existente, conforme determina o artigo 55 do Decreto n° 6.515 de 22 de Julho de 2008 já acima transcrito.
A imposição da referida multa encontra baliza no princípio da razoabilidade/proporcionalidade, que, por sua vez é traduzida pelo atendimento simultâneo dos subprincípios da adequação (ou idoneidade), necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Assim, na medida em que a obrigação da publicidade da Reserva Legal é imposição que visa viabilizar a fiscalização ambiental pelos órgãos responsáveis, o seu não cumprimento enseja a imposição de multa que varia de acordo com a extensão da Reserva Legal não averbada.
Até aí, a sanção prevista afigura-se em perfeita harmonia com os limites do poder de polícia, até porque, caso contrário, padeceria de vício de validade consubstanciado pelo desvio de finalidade, elemento fundamental para que o ato administrativo seja válido. Ora, se a finalidade da sanção administrativa é a coerção do proprietário do imóvel rural para que dê publicidade à Reserva Legal a fim de viabilizar a fiscalização pelos órgãos ambientais, a sanção deve estar em equilíbrio com o objetivo buscado.
Nessa seara, a violação aos preceitos fundamentais e aos princípios constitucionais fica evidenciada na medida em que a Administração Pública extrapola os limites de sua atuação legal. Essa transposição da atuação da Administração Pública se revela no momento em que a Administração Pública deixa de proceder com a estrita observância da lei – princípio da legalidade – e sua interpretação sistemática consoante a Constituição Federal.
Num primeiro momento, a visão tradicional do princípio da legalidade impõe que a Administração Pública somente pode atuar com a autorização expressa da lei. Sobre esse aspecto, nota-se que o conjunto de normas a respeito da constatação do cumprimento da função social da propriedade rural – no seu requisito “produtividade” – em momento algum autoriza o cômputo da resera legal, averbada ou não, como área aproveitável. Muito pelo contrário, a legislação ambiental cuida de tratar sobre o tema, infligindo, de forma incisiva, se tratar de uma limitação administrativa cujo manejo somente pode ser feito mediante autorização do órgão competente.
Secundariamente, o princípio da legalidade ocupa, atualmente, papel mais elevado do que a estrita observância das leis. Trata-se da sujeição dos atos administrativos não apenas aos ditames legais, mas também aos princípios gerais do Direito, objetivos e valores constituconais[1].
Apesar disso, a Autarquia Federal responsável pela Reforma Agrária no Brasil – INCRA – sacramentou de forma temerária a exigência de averbação da Reserva Legal na matrícula da propriedade rural para que seja excluída do cálculo de produtividade (“GUT”) e assim o fez por meio da “Nota Técnica Conjunta/INCRA/DT/DO/PFE n° 01/2006”.
Referido documento revela que a Autarquia Federal – INCRA – “padronizou” a instrução de seus processos administrativos com base em ementário de acórdão proferido em Mandado de Segurança, determinando, a partir de então, que no decorrer do processo administrativo “somente poderá ser considerada como área de Reserva Legal aquela que estiver, antecipadamente à data da notificação, averbada junto ao registro imobiliário competente, de forma individualizada”.
Ao Poder Judiciário cabe apreciar a lide na forma em que foi proposta, sendo certo que a impetração de mandado de segurança, remédio constitucional apto a proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus e habeas data, não se revela cabível e eficaz quando o direito protestado não prescinde de dilação probatória. Por consequência, o proprietário de imóvel rural que efetivamente possuísse a Reserva Legal exigida na lei ambiental sem, contudo, constar na matrícula do imóvel deveria valer-se de demanda com ampla cognição, já que, nesse cenário, em que pese já ter a Administração procedido de forma contrária aos seus princípios norteadores, não se verifica direito líquido e certo dos fatos, que somente poderia ser apurado na esfera judicial mediante laudo pericial.
Conclui-se, então, que é correta a jurisprudência em mandado de segurança que exija a averbação da reserva legal para reconhecimento de produtividade, esta última dependente de cálculo do GUT e GEE feitos a partir da identificação das áreas aproveitadas, excluindo-se as não aproveitáveis.
Por seu turno, a Administração Pública jamais poderia transportar para seu procedimento administrativo decisões emanadas em sede de mandado de segurança. À Administração Pública cabe observar o princípio do contraditório e ampla defesa assegurados como direito fundamental no artigo 5°, inciso LV da Constituição Federal. Não se olvide, ainda, que o procedimento administrativo realizado pelo INCRA prevê – e, evidentemente, não poderia ser diferente – a realização de vistoria conjunta com o proprietário que, a fim de exercer a ampla defesa, deverá ser comunicado previamente acerca da vistoria[2].
Portanto, uma vez que o procedimento administrativo possui rito próprio, absolutamente incompatível com o rito de mandado de segurança – atualmente regulamentado pelo lei 12.016/09 –, deve seguir as regras estabelecidas para o processo administrativo observando, dentre outros, o princípio da busca pela verdade material[3].
Repise-se que os atos administrativos não podem se afastar dos objetivos e preceitos constitucionais. Ao contrário, as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas à luz da Constituição Federal.
Sob esse prisma, os atos administrativos – orientações do INCRA, decisões administrativas e judiciais emanadas em processos de ampla cognição – relativos à Reforma Agrária não podem se afastar do direito de propriedade, preceito fundamental do indivíduo e, tampouco, da interpretação das regras sobre Reserva Legal à luz da natureza do instituto, a saber, de ordem protecionista do meio ambiente, e não técnica para apuração de produtividade.
De se anotar, ainda, que a motivação adotada pela Autarquia Federal e albergada pela jurisprudência majoritária igualmente não encontra amparo constitucional. Isso porque o argumento jurídico encontrado pelo INCRA para justificar a não exclusão da reserva legal não averbada na matrícula do imóvel previamente à vistoria administrativa é de que o artigo 2°da Lei nº 8.629/93 dispõe em seu § 4° que “Não será considerada, para os fins desta Lei, qualquer modificação, quanto ao domínio, à dimensão e às condições de uso do imóvel, introduzida ou ocorrida até seis meses após a data da comunicação para levantamento de dados e informações de que tratam os §§ 2o e 3º”.
Novamente, há que se fazer uma interpretação sistemática do dispositivo, em especial no tocante à norma constitucional. Em primeiro lugar, a técnica jurídica correta a se fazer é, inicialmente, buscar compreensão do termo “modificação” adotado pela lei. Com efeito, o ato da averbação de Reserva Legal não caracteriza modificação na propriedade. Trata-se de ato meramente declaratório por se tratar de limitação administrativa que tem natureza jurídica de ordem pública. Não traduz, portanto, ato constitutivo capaz de “modificar” a propriedade.
Num segundo momento, constata-se que o tipo de “modificação” que não poderá ser considerada por força da lei é aquela capaz de realizar alterações substanciais no imóvel que possam, de alguma forma, “burlar” os interesses sociais. Cite-se como exemplo, o desmembramento de uma grande propriedade tida como improdutiva em inúmeras pequenas glebas, tornando a propriedade não passível de desapropriação por força do artigo 185, inciso I, da Constituição Federal. Do mesmo modo, a mudança de domínio poderia, igualmente, culminar em fraude, na medida em que a pequena e média propriedade são insuscetíveis de desapropriação para fins de Reforma Agrária desde que o proprietário não possua outra.
Com efeito, não poderia o legislador infraconstitucional – e igualmente o Poder Judiciário e Adminstração Pública – editar normas que viessem de encontro com os preceitos constitucionais.
É nesse passo que a legislação a respeito da Reforma Agrária deve ser interpretada: ponderando os interesses sociais coletivos e individuais, garantindo o atendimento à condição de preservação ambiental (interesse coletivo), como requisito do cumprimento da função social da propriedade rural, paralelamente à produtividade do imóvel sem, contudo, ferir o direito de propriedade (interesse individual).
Bibliografia
ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de direito administrativo – Rio de Janeiro: Forense, 2012.
BELTRÃO, Antônio F. G. Manual de Direito Ambiental. São Paulo: Método, 2008.
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função Ambiental da Propriedade Rural. São Paulo: LTr, 1999.
LENZA, Pedro. – Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: saraiva, 2010.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 34 ed. São Paulo, saraiva: v.3, 1998;
Notas
[1] STF. RE n. 395.662 AgR/RS. Ministro Gilmar Mendes: “O significado dos direitos fundamentais nos termos da Lei fundamental não se limita mais exclusivamente a garantir a legalidade das restrições impostas à liberdade individual pelo Executivo e pelo Judiciário. Mediante a vinculação do Poder Legislativo aos direitos fundamenstais não se suprime, mas se reforça e se completa a função de proteção aos direitos fundamentais. Administração e Justiça necessitam para a intervençao nos direitos fundamentais de uma dupla autorização: além da autorização legal para a intervenção, deve-se exigir uma autorização constitucional para a limitação dos direitos fundamentais”.
[2] Lei n.º 8.629/93, art. 2º, § 2º.
[3] Resp 930.596/ES da lavra do Ministro Luiz Fux: “É que "(...)no Processo administrativo, que se orienta sobretudo no sentido da verdade material, não há razão para dificultar o uso de prova emprestada, desde que, de qualquer maneira, se abra possibilidade ao interessado para questioná-la, pois, em princípio, a parte tem o direito de acompanhar a produção da prova." (Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, in Processo Administrativo - 2ª edição- Editora Malheiros - página 172”.