O Código de Processo Civil está sendo alvo de profundas alterações. Com efeito, várias leis já foram aprovadas e outras tantas estão em fase de deliberação no Congresso Nacional. Devido a este movimento de reformas, diversos processualistas, a exemplo de
(2010), já chegaram a afirmar que “o Código de Processo Civil brasileiro perdeu, completamente, a sua identidade. Hoje, mais do que um Código de Processo Civil, o que se tem em vigor é uma verdadeira colcha de retalhos”.A finalidade das reformas, em que pese a transformação do CPC em uma “colcha de retalhos”, é louvável. O objetivo do legislador ao empreender uma série de mudanças no estatuto processual é, sem sombra de dúvidas, concretizar o direito fundamental estampado no art. 5º, inc. LXXVIII, da CF (direito ao processo sem dilações indevidas). Ademais, o Código Buzaid necessitava de alterações para se adaptar aos anseios da nova ordem social, conforme será visto no tópico seguinte.
O art. 475-J do CPC, proveniente da Lei 11.232/2005, foi inserido no Código durante este movimento reformista. O novo dispositivo legal rompeu com a dualidade clássica do processo de conhecimento e do processo de execução no tocante às obrigações pecuniárias, já que a decisão que impõe o pagamento de quantia deve ser executada no mesmo processo em que foi proferida.
Por conseguinte, a Lei 11.232/2005 unificou a matéria da execução de sentença, de sorte que atualmente todas as espécies de obrigações (fazer, não fazer, dar coisa diferente de dinheiro e pagar quantia) estão regidas por um processo sincrético (a execução da sentença representa apenas uma fase do processo em que o provimento jurisdicional foi proferido), quando a obrigação provém de sentença civil. Com efeito, no dizer de AntonioAdonias Aguiar Bastos (2007), “a busca pela efetividade tornou inimaginável que alguém tenha que mover pelo menos dois processos para satisfazer um direito – o primeiro, destinado ao seu reconhecimento, e o segundo, ao cumprimento do que já foi decidido.”
Antes de adentrar especificamente no estudo do art. 475-J do Estatuto Processual, mister se faz compreender a concepção filosófica do Código de Processo Civil de 1973, a fim de melhor entender a finalidade de suas leis reformadoras.
O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973 E A NECESSIDADE DE REFORMAS
Conforme lembra adoção do liberalismo valorizava-se a propriedade individual e a liberdade dos cidadãos. Assim, “o temor de um “retorno” absolutista, da invasão da propriedade e do cerceamento da liberdade praticamente obrigou uma política não intervencionista do Estado Liberal”. (RODRIGUES, 2006)
(2006), “o nosso Código de Processo Civil é de 1973, e possui franca inspiração nos modelos liberais e individualistas do Código Austríaco e do Alemão”. A escolha por um Estado Liberal evidenciava o anseio da sociedade de se livrar das restrições impostas pelo Estado Absolutista, de sorte que com aA escolha do modelo Liberal trouxe mudanças no campo político, econômico, social e, como não poderia deixar de ser, no jurídico. No tocante à tutela executiva – e esta é a que nos interessa –, como ela representa a atividade que mais atinge a liberdade e a propriedade das pessoas, o seu deferimento exigia a adoção de toda a prudência e rigidez do Estado Liberal, a fim de evitar a ofensa aos seus valores mais sagrados (propriedade e liberdade).
Nesse ínterim, fica fácil concluir que a adoção de processos autônomos de conhecimento e execução deita raízes no Estado Liberal. De fato, “se imaginava que a criação de um processo formalmente autônomo para o exercício da tutela executiva seria um método racional de adotar um modelo seguro e conservador de controle da atividade jurisdicional”. (RODRIGUES, 2006) Por conseguinte, acreditava-se que a utilização de um processo autônomo de execução evitaria desconfortos ao executado, uma vez que as regras deste procedimento estariam exaustivamente colocadas, deixando o juiz praticamente engessado para atuar na função executiva. Nesse sentido, vejamos as lições de Fredie Didier Júnior (2010):
Tradicionalmente, até mesmo como forma de diminuir os poderes do magistrado, as atividades de certificação e efetivação eram reservadas a “processos autônomos”, relações jurídicas processuais que teriam por objetivo, somente, o cumprimento de uma ou de outra das funções jurisdicionais. Nesse contexto, surgiu a noção de sentença condenatória – e, portanto, ação condenatória –, que seria aquela que, reconhecendo a existência de um direito a uma prestação e o respectivo dever de pagar, autorizava o credor, agora munido de um título, a, se quiser, promover a execução do obrigado. Havia a necessidade de dois processos para a obtenção da certificação/efetivação do direito. (com grifos no original).
A teoria acima abordada, que defende a autonomia do processo de conhecimento em relação ao processo de execução, foi sustentada pelo eminente processualista italiano
, que, como é cediço, exerceu enorme influência entre nós. Nesse sentido, (2010), citando – autor do anteprojeto que resultou no CPC – aduz que “este Código de Processo Civil é um monumento imperecível de glória a Liebman, representando o fruto do seu sábio magistério no plano da política legislativa”.Liebman sustentava, portanto, a teoria da autonomia e separação do processo de execução de sentença. Para ele, se o devedor não cumprisse espontaneamente a sentença condenatória, competia ao credor movimentar mais uma vez a máquina estatal, mediante ação autônoma de execução, para que o devedor fosse compelido a cumprir o comando judicial. (1987) lembra os argumentos utilizados por Liebman para sustentar sua teoria:
Para Liebman, a divisão do processo em cognição e execução se justifica porque existem ações cognitivas que esgotam a prestação jurisdicional em si mesma, ou seja, apenas com a sentença e, por isso, não conduzem a execução alguma, como é o caso das ações declaratórias. Isto, para o mestre peninsular demonstraria a autonomia do processo de conhecimento. Por outro lado, a existência dos títulos executivos extrajudiciais, que provocam a execução forçada imediata, sem prévia atividade cognitiva, demonstraria, por sua vez, a autonomia do processo de execução. (com grifos no original)
A teoria Liebmaniana encontrou terreno fértil entre nós, de sorte que, como dito acima, ela se adequava ao modelo do Estado Liberal. Praticamente não havia oposição na doutrina no tocante a esta matéria.
Ocorre, entrementes, que com o passar do tempo o Estado Liberal foi cedendo lugar ao Estado Social – tendo em vista a necessidade de intervenção estatal para promover uma isonomia substancial – e esta transformação “refletiu-se em todos os setores da sociedade, e, especialmente, em tudo aquilo em que o Estado participava, ou seja, no exercício das funções legislativa, executiva e judiciária”. (RODRIGUES, 2006) No campo do Direito Processual Civil, diversos institutos foram modificados a fim de tornar o processo mais justo, célere e efetivo.
Nesse cenário, o modelo liebmaniano passou a ser questionado já que era incompatível com a tão sonhada celeridade e efetividade dos provimentos jurisdicionais. Portanto, a necessidade de um processo autônomo para a execução do comando judicial mostrava-se nitidamente injustificável no novo contexto histórico. Um dos primeiros doutrinadores brasileiros a perceber a desnecessidade de dois processos para efetivar um direito foi Humberto Theodoro Junior (1987). Vejamos:
Nossa proposição é a de que o bom senso não exige a manutenção da atual dualidade de relações processuais (conhecimento e execução) quando a pretensão contestada é daquelas que, deduzidas em juízo, reclamam um provimento jurisdicional condenatório.
A obrigatoriedade de se submeter o credor a dois processos para eliminar um só conflito de interesses, uma só lide conhecida e delineada desde logo, parece-nos complicação desnecessária e completamente superável, como, aliás, ocorre em sistemas jurídicos como o anglo- saxônico.
Para sustentar a sua tese, Humberto Theodoro Júnior (1987), citando Gabriel José Rodrigues de Rezende Filho, leciona que:
Também não se justificava a tese dos que defendiam a autonomia da execução de sentença: “Sem a execução, a sentença condenatória não teria eficácia. Seria como o sino sem o badalo ou o trovão sem a chuva – sententiasineexecutioneveluti campana sinepistillo out tonitrussinepluvia– como diziam os praxistas.
A execução, portanto, é a fase lógica e complementar da ação. Vindo a juízo, não pretende o interessado obter apenas a declaração ou reconhecimento de seu direito de um modo platônico, mas aspira à mais completa tutela jurídica com a efetiva mantença ou restauração de seu direito.
[...] a execução constitui realmente o epílogo da ação condenatória, formando ambas momentos ou fases de uma só ação. Há uma unidade lógica entre ação e execução. (com grifos no original)
Nota-se, portanto, que vozes respeitáveis na doutrina se ergueram em prol da teoria da unidade do processo, evidenciando que o Código Buzaid precisava ser desburocratizado. Com efeito, a exigência de dois processos, com todas as dificuldades da formação e desenvolvimento da relação jurídica processual, como meio indispensável para atingir a solução de uma só lide não se encontra adequada ao binômio celeridade-efetividade.
Lembra, ainda,Fredie Didier Júnior (2010) que existiam “vários procedimentos que autorizavam ou que inseriam, no bojo do processo de conhecimento, atos executivos, fato que já compromete a pureza da distinção e da divisão que se fazia.”A prática de atos executivos no processo cognitivo era admitida como forma de adiantar o resultado final desejado para o processo, a exemplo do que acontecia nas ações possessórias e no mandado de segurança[1]. Desse modo, a mistura de atos executivos no processo de conhecimento evidenciava que a distinção estanque de processo cognitivo x processo de execução já estava comprometida.
Diante deste cenário, na década de 1990, foi criada uma comissão[2] destinada a reformar o CPC, a fim de torná-lo adequado aos novos anseios da sociedade.
Em 1994, tivemos a primeira grande reforma do CPC no tocante à tutela jurisdicional executiva, já que a Lei 8.952/1994 tornou sincréticas as ações de prestação de fazer e não fazer. Portanto, desde 1994, as sentenças que reconhecem obrigações de fazer e não fazer não precisam de um novo processo para serem efetivadas. Pela nova sistemática, elas podem ser executadas no mesmo processo em que foram proferidas. “São, pois, sentenças oriundas das chamadas ações sincréticas, pois além de certificar também servem à efetivação imediata da providência determinada.” (DIDIER JÚNIOR, 2010)
Em 2002, por força da Lei 10.444/2002, tivemos a segunda etapa da reforma do CPC. Assim, a mencionada Lei introduziu no sistema processual civil o art. 461-A, determinado que o regime jurídico das obrigações de fazer e não fazer fosse aplicado às obrigações de dar coisa diferente de dinheiro.
Percebe-se, pelo exposto, que a partir de 2002 as ações de prestação de fazer, não fazer e entregar coisa distinta de dinheiro eram sincréticas. Portanto, a única sentença judicial que necessitava de um processo autônomo para ser efetivada era aquela que condenava o réu ao pagamento de dinheiro.
Em 2005, por intermédio da Lei 11.232/2005, houve a uniformização das execuções civis. O art. 475-J, introduzido no CPC pela reportada Lei, tornou sincrética a ação de prestação pecuniária. Portanto, hoje em dia, o modelo sincrético abarca as quatro modalidades de obrigações: fazer, não fazer, dar coisa distinta de dinheiro e dar dinheiro.
Em apertada síntese, vejamos as lições de Marcelo Abelha Rodrigues (2006) sobre o movimento de reformas do CPC:
Tal como numa escalada, a positiva experiência inicial com o art. 84 do CDC (tutela específica da obrigação de fazer e não fazer), posteriormente expandida, em 1994, para o art. 461 do CPC, serviu de estímulo para o legislador processual adotar as execuções imediatas em processos sincréticos para as obrigações de entrega de coisa, daí derivando, em 2002, o art. 461-A. Por conta deste sucesso, e visando uniformizar as execuções judiciais, estendendo o modelo sincrético também para o procedimento executivo para o pagamento de quantia, o legislador criou a Lei n. 11.232/2005.
Por fim, cabe salientar que a Lei 11.232/2005 ao uniformizar o sistema das execuções judiciais, tornando sincrética a ação de prestação para o pagamento de quantia, trouxe mais uma novidade: estipulou o prazo de quinze dias para o devedor adimplir a obrigação de forma espontânea, sob pena de incidência de multa de 10% sobre o valor da condenação. Esta multa constitui uma inovação no sistema, razão pela qual ela será detalhadamente estudada.
FINALIDADE DA MULTA IMPOSTA PELO ART. 475-J, CPC
Preceitua o Código de Ritos que caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação (art. 475-J).
Inicialmente, faz-se necessário verificar a finalidade da multa prevista no mencionado dispositivo legal, a fim de melhor compreender as hipóteses e o momento em que ela deve ser aplicada. A doutrina não é pacífica quanto à finalidade da multa, sendo certo que para alguns ela tem caráter de pena (natureza penitencial), para outros ela serve como fator de coação para o cumprimento voluntário do ato sentencial (natureza de medida coercitiva indireta) e, finalmente, há quem entenda que a finalidade da multa é desestimular o uso de recursos.
O último posicionamento, por certo, é o mais subversivo. Para os adeptos dessa corrente, a sentença pendente de recurso é ato que se submete a condição resolutiva e, por via de conseqüência, apta a produzir efeitos desde o momento em que foi proferida. Seguindo este raciocínio, a multa de 10% deve incidir no 16º dia após a intimação da condenação em primeiro grau, tendo em vista que eventual recurso interposto pelo condenado, ainda que recebido no duplo efeito, não tem o condão de suspender a eficácia da multa prevista no art. 475-J, CPC. O legislador, dessa maneira, estaria desestimulando o uso de recursos, na medida em que penaliza o condenado se seu recurso não for provido.
Jorge Eustácio da Silva Frias (2007), grande expoente dessa teoria, aduz que:
Assim, a parte vencida deve ponderar as reais possibilidades de seu recurso ter sucesso, para só recorrer se constatar que a condenação foi injusta e não subsistirá. Caso contrário, correrá o risco de o recurso não vir a ser provido, situação em que a multa incide desde a condenação sofrida. A lei não a proíbe de recorrer, mas desincentiva o recurso que não tem reais possibilidades de reversão do resultado desfavorável, correndo o recorrente o risco de vir a experimentar aquele acréscimo pecuniário se não eliminada sua condenação. (sem grifos no original)
Na senda deste posicionamento, diante da sentença condenatória surge para o devedor três alternativas: 1) recorrer do ato sentencial no prazo de quinze dias (art. 508, CPC), cabendo ao devedor depositar em juízo o valor da condenação para se eximir da multa de 10%, caso o tribunal confirme a decisão de primeiro grau[3]; 2) cumprir espontaneamente a obrigação contida na sentença, a fim de se livrar da penalidade; 3) permanecer inerte, e nesse caso, por ser recalcitrante, deverá responder pela condenação acrescida da multa.
Em que pese a opinião abordada acima, d.v., é preciso demonstrar que ela parte de premissa equivocada. De fato, a sentença pendente de recurso é ato sujeito a condição suspensiva, qual seja, de que não sobrevenha decisão de superior instância. Nesse sentido são irretocáveis as lições do mestre José Carlos Barbosa Moreira (1998):
Uma quarta explicação – que, ao menos para o ordenamento positivo brasileiro, nos parece a preferível, com ressalva dos casos em que a lei, por exceção, antecipa ao trânsito em julgado a produção de efeitos – vê também, na sentença sujeita a recurso, um ato condicionado, porém esclarece que se trata na verdade, de condição suspensiva: a decisão nasce com todos os requisitos essenciais de existência, mas, de ordinário, tolhida em sua eficácia; a não superveniência de outro pronunciamento, na instância recursal, é a condição legal negativa cujo implemento lhe permite irradiar normalmente os efeitos próprios. Tal condição pende, enquanto subsiste a possibilidade de proferir-se decisão em grau de recurso; verifica-se, quando semelhante possibilidade fica em definitivo afastada; falta, quando o órgão ad quem emite validamente nova decisão, quer para confirmar, quer para reformar a anterior. (sem grifos no original)
O fundamento para a compreensão da natureza jurídica da sentença recorrível como sendo ato sujeito a condição suspensiva está no art. 512 do CPC. Aponta o referido dispositivo que “o julgamento proferido pelo tribunal substituirá a sentença ou a decisão recorrida no que tiver sido objeto de recurso”. Assim, “a decisão da superior instância substitui sempre a recorrida, nos limites do que formou o objeto do recurso”. (MOREIRA, 1998) (com grifo no original).
Por fim, cabe salientar que para os defensores deste primeiro posicionamento ainda é possível a aplicação da multa mesmo que o recurso interposto pelo condenado seja dotado de efeito suspensivo. O argumento utilizado é que a sentença opera ordinariamente alguns efeitos, dentre estes a hipoteca judiciária (art. 466, CPC), mesmo quando impugnada por recurso recebido no duplo efeito. Nesse sentido ensina Jorge Eustácio da Silva Frias (2007):
Note-se que, malgrado o efeito suspensivo que possa ter a apelação, que normalmente o tem (art. 520), a sentença não deixa de produzir hipoteca judiciária (art. 466). Assim, diante dos termos do art. 475-J, não se vê por que não haveria de incidir a multa de 10% desde logo, ou seja, a partir do 16º dia em que a parte tomou ciência da condenação sofrida.
Como se sabe, o recurso tem efeito suspensivo quando obsta a produção dos efeitos da sentença. Assim, “salvo exceção consagrada na lei, a suspensão é de toda a eficácia da decisão, não apenas de sua possível eficácia como título executivo”. (MOREIRA, 1998) (sem grifos no original)
De fato, a constituição de título para a hipoteca judiciária representa uma exceção, tendo em vista que se concebe a hipoteca judiciária mesmo na pendência de apelação com efeito suspensivo. Nesse sentido, José Carlos Barbosa Moreira (1998, p.475), com brilhantismo que lhe é peculiar, explica a necessidade da hipoteca judiciária ser cabível ainda quando pendente apelação dotada de efeito suspensivo:
A hipoteca judiciária, que constitui um dos chamados “efeitos secundários” ou “acessórios” da sentença (condenatória), tem a função de garantir ao credor vitorioso a proficuidade da execução que eventualmente precise instaurar contra o devedor. Surge, então, uma pergunta: justifica-se a providência mesmo que já se possa promover a execução (provisória embora), ou faltaria nesse caso interesse ao credor, visto que a penhora [...] bastaria para assegurá-lo? A essa indagação responde o art. 466, parágrafo único, nº III; e a resposta é que a possibilidade de executar provisoriamente a sentença não exclui a garantia representada pela hipoteca judiciária. O “ainda quando”, no texto legal, vale por “mesmo que”, “embora”. Longe de restringir, amplia a área de incidência do caput. Ora, se se concede a hipoteca judiciária mesmo que a sentença seja provisoriamente exeqüível, isto é, quando o recurso cabível não tenha efeito suspensivo, a fortiori quando o tenha, e por conseguinte não haja lugar para a penhora ou medida equivalente. Em tal hipótese, precisamente, é que a hipoteca judiciária poderá revelar-se mais útil. (com grifos no original)
Nessa linha de idéias, também se posicionou José Frederico Marques (1975):
Diante do disposto no art. 466, dúvida não pode haver quanto à admissibilidade da hipoteca judiciária em se tratando de sentença contra a qual foi interposto recurso com efeito suspensivo. A referência contida no art. 466, parágrafo único, nº III, seria inútil se a hipoteca judiciária somente tivesse lugar quando o recurso fosse recebido sem efeito suspensivo.
A alusão à sentença que possibilite execução provisória é porque a hipoteca judiciária se destina a garantir, principalmente, as sentenças insusceptíveis, desde logo, de execução (isto é, aquelas sujeitas a recurso com efeito suspensivo).
Exatamente nesse mesmo sentido foram os argumentos utilizados pela ministra Nancy Andrighi, ao julgar o recurso especial nº 715.451-SP, para reconhecer a possibilidade de constituição de hipoteca judiciária quando recebida apelação em ambos os efeitos:
No parágrafo único, inciso III, do art. 466 do CPC o legislador houve por bem ressaltar que a sentença condenatória produz a hipoteca judiciária, ainda que o credor possa promover a execução provisória da sentença, ou seja, mesmo quando a apelação for recebida somente no efeito devolutivo. Ora, se o dispositivo permite inferir que a hipoteca judiciária é efeito normal da sentença pendente de recurso e que dela deve ocorrer mesmo quando a apelação for recebida somente no efeito devolutivo, decorrência lógica é o seu cabimento quando a apelação for recebida também no efeito suspensivo. Essa é justamente a situação na qual a justificativa para a sua ocorrência é maior, pois nessa hipótese não se pode promover desde já a execução provisória e a hipoteca judiciária servirá como um mecanismo para assegurar a efetividade do processo. (sem grifos no original)
Diante do exposto, nota-se que a hipoteca judiciária representa um efeito natural que a sentença produz apesar de sujeita a recurso dotado de efeito suspensivo. Trata-se de uma excepcionalidade, sendo certo que o seu fundamento está previsto em lei. O mesmo não se pode dizer para a multa prevista no art. 475-J[4], uma vez que a apelação recebida no duplo efeito tem o condão de suspender os demais efeitos da sentença e não apenas a sua exeqüibilidade.
Ultrapassada essa primeira concepção doutrinária – que defende que a multa do art. 475-J, CPC, tem a finalidade de desestimular o uso de recursos –, outra parcela da doutrina afirma que a multa tem natureza nitidamente sancionatória, vale dizer, visa penalizar o devedor pelo descumprimento do comando judicial. Nesse sentido leciona Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (2006):
Mormente porque se trata de multa penitencial, sem nenhum ponto de contato com as hipóteses em que a multa tem natureza essencialmente coercitiva e é fixada com vistas a induzir ao cumprimento da ordem judicial, em prol da efetividade da tutela jurisdicional da mora no cumprimento e, portanto, intimamente dependente de base firme para ser exigida.
Marcelo Abelha Rodrigues (2006) também entende que a multa tem natureza sancionatória. Vejamos:
Tem natureza de sanção processual a multa de 10% sobre o valor da condenação para o caso de o devedor não efetuar o pagamento ao credor no prazo de quinze dias. A multa é uma sanção contra o não-pagamento imposto na condenação ou reconhecido na liquidação, e apenas incide se e quando o devedor não cumprir a obrigação no referido prazo. Portanto, a multa independe do requerimento da execução. É anterior a isso, ou seja, é uma pena processual pelo não-pagamento espontâneo do devedor.(sem grifos no original).
Por outro lado, uma outra parte da doutrina entende que a multa prevista no art. 475-J tem a função de forçar o cumprimento voluntário da obrigação pecuniária. Assim, “a multa prevista pelo legislador infraconstitucional apresenta função terapêutica, estimulando o devedor a evitar a sua incidência através do pagamento voluntário.” (MONTENEGRO FILHO, 2010). Logo, não seria pena, mas sim medida de coerção indireta[5]. Nesse sentido, também é o escólio de Rodrigo Barioni (2006):
A multa tem caráter coercitivo, para que o devedor cumpra a obrigação voluntariamente. A iniciativa de compelir-se o devedor a cumprir a obrigação constante da sentença, sem necessidade de atos executórios, é louvável. Cada vez menos tem sido tolerada a postura de desprezo em relação às decisões judiciais, não raras vezes adotadas por devedores contumazes.
Cássio Scarpinella Bueno (2006) leciona no mesmo sentido:
A multa incide pela inércia do devedor sem cumprir, no sentido de acatar, respeitar, o que foi reconhecido na sentença. Sua finalidade, analisada a questão deste prisma, é a de exortar o devedor ao cumprimento da obrigação, à observância da sentença ou, mais amplamente, do título executivo judicial independentemente da tomada de qualquer providência pelo credor. É, nesse sentido, claramente coercitiva. (com grifos no original)
Do exposto, sendo certo que o legislador está engajado em imprimir celeridade ao processo civil, notadamente no momento de satisfação do direito do credor, fica fácil constatar que a multa tem a finalidade de estimular o rápido cumprimento da obrigação pecuniária, de modo a incentivar o devedor a evitar a incidência da multa através do pagamento voluntário. Trate-se, portanto, de medida coercitiva indireta, já que visa estimular o adimplemento, liberando o credor de prosseguir com a cobrança judicial. ue visa faç no art.
Por fim, identificada a natureza da multa como uma medida coercitiva indireta, chega-se a insofismável conclusão de que a ela pode ser cumulada praticamente todas as sanções previstas no sistema, “na medida em que o singular requisito para que um comportamento seja objeto de mais de uma sanção é a distinção da finalidade sancionatória”. (BONDIOLI, 2006).
Na linha de pensamento do parágrafo anterior, ensina Luiz Rodrigues Wambier (2010) que “a multa referida no art. 475-J do CPC, segundo pensamos, atua como medida executiva coercitiva, e não como medida punitiva. Assim, nada impede que à multa do art. 475-J do CPC cumule-se a do art. 14, inc. V e parágrafo único do mesmo Código” (com grifos no original). Com efeito, não existem obstáculos para esta cumulação, tendo em vista que a multa do art. 14 visa punir ilícito processual, enquanto que a multa prevista no art. 475-J atua como medida incentivadora do pronto cumprimento das decisões judiciais.