O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), atendendo pedido da Assembleia Legislativa do Amazonas, redefiniu por maioria (contra os votos dos Ministros Marco Aurélio e Carmem Lúcia que entenderam que o TSE não tem competência para isso), o número de deputados federais para cada Unidade da Federação. O novo cálculo apresentado e aprovado pelo TSE altera o número de deputados federais em 13 Estados brasileiros, tendo, por exemplo, o Rio Grande do Sul perdido uma cadeira, enquanto que o Pará ganhou quatro. Porém, o que importa para essa análise não é o resultado da redefinição, mas o fato em si, ou seja, o fato do TSE ter realizado essa redefinição.
A Constituição Federal, nossa “lei maior” (o que a Constituição estabeleceu não pode ser contrariado por nenhuma outra lei, seja ela de que hierarquia for), determinou que o número de deputados, bem como a representação por cada Estado e pelo DF, será estabelecido por lei complementar, respeitando-se a proporcionalidade da população; procedendo os ajustes necessários, no ano anterior a cada eleições (artigo 45 § 1º).
Ora, se a Constituição determinou que a definição da representação (número de deputados) de cada Estado será feita por lei complementar, como pode o TSE fazer essa redefinição? A competência para edição de lei complementar à Constituição Federal é do Congresso Nacional, e de ninguém mais.
Ocorre que a Lei Complementar 78/93, que fixou em 513 o número de deputados federais, determinou ainda que “feitos os cálculos da representação dos Estados e do Distrito Federal, o Tribunal Superior Eleitoral fornecerá aos Tribunais Regionais Eleitorais e aos partidos políticos o número de vagas a serem disputadas” (parágrafo único do Art. 1º).
O sistema jurídico deve ser interpretado de forma integrada a partir do texto constitucional. Assim, a legislação infraconstitucional deve ser interpretada respeitando os ditames e limites da Constituição. Se o sentido do texto legal não permitir uma interpretação que concorde com o que estabeleceu a Constituição, essa lei é inconstitucional. Portanto, não é possível, em nosso sistema normativo a coexistência de um texto legal em desconformidade com a Constituição.
Assim, “feitos os cálculos ...” (LC 78/93) - feitos por quem? Por quem é competente para isso: o Congresso Nacional e não pelo TSE - este, fornecerá aos Tribunais Regionais Eleitorais o resultado do cálculo (já feito pelo Congresso).
Entender de outra forma, ou seja, que teria havido delegação de competência, só pode levar a uma conclusão pior ainda: a de que o Congresso delegou competência que não poderia ter delegado. A Constituição estabeleceu que a competência para definir o número de deputados federais por cada Estado e para o DF é do Congresso, e não autorizou a delegação dessa competência do Congresso para o TSE.
Poderia se dizer que quem tem competência para fazer, também tem para delegar que outro o faça; certo? Errado, aqui não. A competência é para fazer e ponto; não para delegar que outro o faça. Que fique claro: onde a Constituição pretendia dar poderes para que houvesse delegação de competência ela o fez de forma clara. Portanto, não pode haver delegação de competência onde não há poderes para isso. E, no caso concreto, a competência é para fazer; não para delegar que outro faça.
Se o cálculo da proporção de deputados federais por unidade da Federação estiver desatualizado e o Legislativo se mostra omisso, a solução encontrada não é a correta. A solução poderia ser o Mandado de Injunção (remédio constitucional para provocar que o Legislativo age onde estiver sendo omisso) junto ao STF. Aliás, alternativa que foi usada pelo Estado de São Paulo, reclamando que a Constituição lhe dava o direito de ter 70 deputados federais, enquanto que estava tendo apenas 60. Foi exatamente como resultado daquele Mandado de Injunção (MI 219), que o Congresso editou a Lei Complementar 78/93, corrigindo aquela omissão apontada pelo Estado de São Paulo.
Portanto, não pode um Poder da República exercer a função ou a competência de outro. O Judiciário não pode legislar sob o argumento de que o Legislativo não faz a sua parte. Assim como nem o Legislativo ou o Executivo poderia julgar eventual caso judicial, sob o argumento de que está demorando muito para que o Judiciário o julgue (considerando a discussão sobre o tempo razoável de duração um processo).
O Estado Democrático de Direito tem entre os seus princípios o vinculado a uma Constituição democrática e legitima, e a divisão dos poderes e funções do Estado, de forma harmônica e independente. Se esses princípios basilares não forem estritamente respeitados, pode-se dizer qualquer coisa, menos que vivemos em uma sociedade democrática que respeita o seu Direito.