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Concurso público e cérebro: Pseudociência e (neuro) estafa

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A compreensão do cérebro e sua utilização correta é fundamental para enfrentar os desafios dos concursos públicos.

“Siempre existe una solución fácil para todo problema humano; una solución clara, plausible y equivocada.”H. L. MENCKEN                

Parece que, em tema de concursos públicos estamos vivenciando, com raras exceções, a era da denominada tirania do prático, uma sombria danse macabre cuja chave do êxito alcança seu ápice através dos cursos preparatórios, dos cursos online e telepresenciais, dos vídeos-aula, das retas finais, dos extensivos e intensivos, das maratonas... Massivas doses de lições enlatadas servidas com eficiência e assombrosa rapidez e estudantes que se esforçam como robôs por copiar tudo o que “ensina” o professor.

Um modelo de educação e formação que não trata de impedir um perfil de profissional propenso ao automatismo, à memorização, ao descaso ou desconhecimento teórico, às explicações ad hoc e, em determinadas ocasiões, carente de um mínimo sentido de adequada preparação acerca das teorias e fundamentos que para o conhecimento do Direito realmente importam.

Podemos continuar fazendo o que fazemos quando se sabe que o modelo atual é abertamente atentatório à atividade de ensinar a pensar e a formar bom conhecimento? De que nos serve ter a barriga cheia de alimentos se não o digerimos, se não se transforma em nós, se não nos aumenta e fortalece? Podemos seguir priorizando um tipo de ensino cuja principal finalidade parece consistir no encargo de quantificar, massificar e embrutecer o conhecimento? Não, não cremos que podemos seguir como estamos; não podemos continuar aprovando tudo isso com gesto bovino.

Se pretendemos, professores e alunos, ser de fato indivíduos comprometidos com um tipo de aprendizado interessante e significativo, temos que atuar como tais. Por quê? Porque educar significa simplesmente ajudar a extrair o melhor de uma pessoa para que possa levar adiante, desde sua autonomia, seu próprio estilo e ritmo de estudo, para entender que cada cérebro é único, que não há uma técnica “universal” para estudar e que o método correto (para estudar) é o que melhor se adapta aos interesses, oportunidades, necessidades e recursos cognitivo-afetivos próprios de cada pessoa[1].

Mas este não é o único problema. Há outro mais grave relacionado com os avanços e as promessas que deviram das novas descobertas neurocientíficas: o de saber discernir até donde chegam as contribuições positivas e onde começam os limites do que sabemos hoje sobre como aprende o cérebro humano. É que por mais que pareça uma questão altamente acadêmica e especializada, qualquer sociedade epistemologicamente civilizada (ou civilizada, apenas) deve dispor de um critério de demarcação o bastante flexível para permitir o livre exame, mas o bastante sólido para distinguir entre ciência e pseudociência.

A razão é simples: como o cérebro, graças aos avanços científicos, passou a estar em primeiro plano, escrever sobre sua estrutura e funcionamento afiança um caráter mais sofisticado – ou mais “científico” – a todo um evangelho de sandices, ficções e/ou falsas esperanças. A denominada “neurocultura” está fazendo com que a cada dia que passa apareçam novos “educadores” (“motivadores”, “turbinadores de cérebro”, “iluminados” e “expertos em” ou “super campeões de” concursos públicos[2]) com mirabolantes promessas de aniquilação de antigos flagelos relativos ao aprendizado, como a desmotivação, a autoestima, o poder da mente, a capacidade ou a perda de memória, entre muitas outras que revelam opiniões desproporcionadamente  elevadas de nós mesmos.

Todo um conjunto de promessas permeadas por uma confusa miscelânea de verdades, semi-verdades e mentiras; promessas que, fazendo bom uso do chamado “efeito guru” (D. Sperber, 2010), gritam para os mais crédulos desde sensacionalistas livros, revistas, blogs, artigos, palestras..., inspirados em e/ou manipulando uma prolífica fonte de mitos e distorcidas crenças que normalmente vem intercalada com falsos matizes psicológicos e com afirmações que contradizem frontalmente algumas evidências científicas.

A realidade é que esta extensa indústria do “neurologismo” (e, o mais importante, este fascinante estilo de “academicismo”) está, neste mesmo instante, penetrando (despercebida e sem críticas) no coração mesmo de nosso sistema acadêmico, por culpa de nossa desesperação por encontrar respostas fáceis para grandes problemas como o aprendizado, por culpa de nossa necessidade coletiva de soluções rápidas e fáceis, por culpa do admirável desejo de dar aos estudantes o que querem, por culpa de nossa tendência a crer qualquer coisa quando nos anima a esperança de uma satisfação qualquer, e por culpa da fenomenal credibilidade que entre o grande público alcançaram estas figuras pseudoacadêmicas, em um mundo que, ao parecer, olvidou por completo a importância de avaliar criticamente todas as afirmações científicas.    

Ninguém duvida do fato de que as bases cerebrais resultam indispensáveis para o aprendizado, que a causa mais direta ou imediata do aprendizado deve estar arraigada em uma variação da função cerebral e que é necessário construir e manter uma relação com nosso cérebro dirigida a ajudá-lo (ajudar-nos) a desenvolver-se corretamente para o nosso próprio bem-estar. Tão pouco existe dúvidas de que nos últimos anos os progressos neurocientíficos no conhecimento do cérebro introduziram modificações profundas em noções fundamentais a respeito da natureza humana, relativizaram algumas crenças, desmitificaram dogmas e lançaram novas luzes sobre questões antigas acerca do comportamento humano, da racionalidade, da consciência, da moralidade, do bem e do mal, do livre-arbítrio, do aprendizado, da memória, das relações entre os indivíduos...[3] A lista seria muito larga. Pouco a pouco, o cérebro, motor do conhecimento e fonte de todo  comportamento humano, começa a compreender-se a si mesmo.

Mas em que pese o extraordinário de todos esses avanços, ainda estamos no começo de semelhante processo, isto é, que só percorremos muito pouco do longo caminho para uma compreensão fundamental do cérebro. A investigação na área da neurociência está dando seus primeiros passos e novos estudos refutam, com frequência, as mais recentes descobertas. Como explica Patricia Churchland (2006), nem sequer sabemos como codificam a informação os neurônios; e isso é muito não saber. Em muitos casos, continua, “la variabilidad natural de la macroestructura no predice nada sobre la función del cerebro (quiero decir, en oposición a las causas de un disparo, por ejemplo). Todavía es más interesante que la variabilidad estructural a menudo no prediga nada sobre microestructura, que es dónde se encuentra la acción. O como lo diría un mercenario político: Es el cableado, estúpido. ¿Los escáneres cerebrales pueden apreciar el microcableado? No. […] Hagamos un brindis por la variabilidad, la adaptabilidad y el cableado del cerebro. Y mientras fluye el Chardonnay, celebremos todo lo que sabemos sobre el cerebro”. (P. Churchland, 2013).

Seja como for, o certo é que não somente resulta muito difícil especificar relações diretas entre os descobrimentos das neurociências e os diferentes aspectos da estrutura e funcionamento do cérebro, senão que também é necessário atuar com muita cautela quando um salto técnico assim permite levar a cabo análises e detecções impossíveis com anterioridade[4]. Consequentemente, é um equívoco pensar que há algo de especial e exclusivo nas afirmações que utilizam temas como “turbinar” o cérebro, poder da mente, aprendizado, inteligência, memória,  motivação, etc., para vender-nos conselhos, métodos ou técnicas de estudo poucas vezes fundamentados cientificamente.

Por exemplo, as técnicas de leitura dinâmica e de memorização estão de moda e prometem incrementar a velocidade de leitura e a capacidade de memorização em umas medidas que sobrepassam a velocidade leitora máxima de que é capaz o olho humano (de aproximadamente 300 palavras por minuto) e as limitações próprias do cérebro humano no que se refere ao armazenamento de informação. Em ambos os casos, nenhuma dessas técnicas aumenta a velocidade de leitura ou a memória sem esforço pessoal e/ou sem diminuir, ao mesmo tempo, nossa capacidade de compreensão e entendimento; quer dizer: ler rápido ou memorizar mais não significa, definitivamente, saber e compreender melhor. Em resumo: as expectativas sobre o que devemos ser capazes de memorizar e recordar, escassamente logram associar-se com o que nossos cérebros são capazes de processar, ainda que isso seja uma quantidade enorme.[5] (D. DiSalvo, 2013)

Ademais, o bom conhecimento gerado por um aprendizado significativo ou prática deliberada é um logro, uma atividade ou tarefa na qual, além de constante prática, o indivíduo há de estar presente e de experimentá-la (ativamente) em primeira pessoa[6]. Somente por meio da experiência concreta de estudar, focando nossa atenção e praticando de forma repetida é que poderemos influir eficazmente no modo em que os conhecimentos adquiridos irão cambiando e modelando o substrato neural de nossos pensamentos, de nossa memória e de nosso aprendizado. Um tipo de conhecimento que não se pode realizar e adquirir de forma repentina, quer dizer, que somente adquire uma base segura e sólida ao longo de um incessante e ativo processo de aprendizagem.

Assim que o “problema” acerca de como aprende o cérebro não está reservado aos gurus da motivação, aos “expertos” em concursos públicos, aos educadores e aos cientistas; é um “problema” de todos e que tem por finalidade fazer surgir em todos nós o sentido de uma comprometida e iniludível responsabilidade pessoal por nosso próprio aprendizado. Se o cérebro é uma “obra”, nós somos seu sujeito, autor e resultado ao mesmo tempo. Um tipo de compromisso que implica aceitar conscientemente o fato de que nosso papel no processo de aprendizagem é o de dar-se conta e reconhecer que embora seja com o cérebro, e só com ele, que aprendemos, nossa capacidade para aprender (e memorizar) não é somente um produto da cognição e emoção que emergem de nosso cérebro, senão também de respostas que damos às exigências culturais e de nossas experiências pessoais e interpessoais.    

Do que resulta, afortunadamente, que há boas razões para ser otimistas e, com muito trabalho, perseverança, esforço pessoal, estóica resistência e entusiasmada determinação, dedicar-nos a fazer nosso próprio cérebro ( que é nossa obra), a lançar-nos ao “desafio plástico” e configurar, com autonomia e liberdade, nossa própria e singular capacidade para aprender e recordar[7]. O potencial para aprender habilidades novas e para melhorar as que já temos é amplo, e seguramente dispomos das condições necessárias para aproveitá-lo e desenvolvê-lo. Contudo, isso requer, de mais está dizer, que pensemos claramente sobre nossa própria experiência (única e intransferível), que questionemos nossas suposições, que saibamos distinguir o que sabemos bem do que só cremos saber que seja certo e, o mais importante, que desafiemos a todo aquele que se dedique a predicar discursos supérfluos sobre o cérebro[8]. Em suma: há que decifrar-se, cultivar-se, palpar os próprios limites, questionar tudo e fazer da experiência vivida de estudar/aprender o que ninguém tenha feito antes.

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Claro isto não significa que devamos descartar de plano tudo o que nos diz a indústria do “sucesso garantido”. Muitos livros, vídeos, palestras e conselhos dessa natureza nos alentam a assumir nossas responsabilidades, a ter disciplina, a estudar com regularidade e atenção, a enfrentar as dificuldades, a buscar sabedoria e felicidade, a confiar em nossas capacidades, a superar nossos momentos de desânimo e frustração, a ter fé, a acreditar que “tudo passa”... Em geral, todos são bons conselhos, ainda que não sejam em nada distintos dos que recebemos de nossos pais e de nossos avós. E o melhor de tudo: não nos cobram por eles.  

O verdadeiro problema é que toda essa prolífica fonte de mitos e distorcidas crenças normalmente vem intercalada com falsos matizes psicológicos, interpretações fantasiosas e com afirmações que contradizem frontalmente algumas evidências científicas atuais (aliás, na maioria das vezes, a ciência sugere detalhes mais básicos de nossa experiência ordinária sumamente incômodos para a mente humana). Como consequência, acabam por produzir nos mais crédulos aquilo que os economistas denominam de custo de oportunidade ou custo alternativo, isto é, o fato de que as pessoas que seguem ou adotam uma medida ineficaz podem estar perdendo a oportunidade de utilizar outro meio efetivo ou obter outro tipo de ajuda que lhes seja mais útil e necessária.

Quando se trata de fazer eleições e tomar decisões muito sérias no mundo real, a banalização de qualidades tão vitais como intangíveis (concentração, conduta, inteligência, vontade, ânimo...) é motivo de desinformação, burla e sofrimento. Por isso resulta uma grande perda de tempo levar a cabo qualquer “prática” que alguém possa sacar da manga para vender um aprendizado milagroso improvável. Dito de forma mais direta: não é o cacarejar do galo que faz com que saia o sol ao amanhecer.    

Também há a questão da “falácia de autoridade”, quer dizer, de nossa tendência a aceitar qualquer coisa porque o disse determinada pessoa com certa fama e não pelas virtudes (científicas) ou defeitos próprios da afirmação. Enquanto esses gurus ou manipuladores da esperança buscam dizer à gente o “que pensar” e o “que fazer”, a divulgação da ciência, ao promover o pensamento racional, ensina precisamente o contrário, a duvidar, a pedir dados, a utilizar critérios de verdade fiáveis, pretende em todo caso ensinar a como pensar. Este, e somente este, “deveria ser o objetivo da educação” (J. Beattie).

Contudo, para esses indivíduos, não somente a ciência é um monólito, um mistério (antes que um método), senão que fazem caso omisso, por princípio, do fato de que há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade moral de nossos argumentos. Em realidade, temos a impressão de que os gurus “de moda”, pelo menos em sua grande maioria, não são capazes de reconhecer uma história verdadeiramente científica nem que esta baile desnuda ante eles[9].

Resultado: as pessoas que crêem equivocamente que os conselhos otimistas e pseudocientíficos, as receitas mágicas e as promessas de êxito divulgadas por algum “especialista no assunto” são um meio eficaz para superar as dificuldades podem estar investindo uma grande quantidade de tempo, dinheiro e recursos (cognitivos e emocionais) em uma atividade inútil. Também podem estar desaproveitando outros meios efetivos para aprender e que poderiam ser-lhes realmente importantes e mais benéficos. Já sabem o que dizem: “As oportunidades marcam nossa vida, inclusive aquelas que não criamos ou as que deixamos passar”[10].

Entendemos que no gosto de cada pessoa entram muitos ingredientes distintos, que a mente humana sempre busca algo mais acariciador que a verdade e que a importância das coisas que experimentamos é sempre uma questão de interpretação e valoração pessoal. Há receitas, promessas e conselhos divertidos, atraentes e otimistas que servem para levantar o ânimo, motivar, alegrar o dia e dar certa segurança. Mas não há que fazer-se demasiadas concessões, posto que estudar e aprender não guarda uma relação muito estrita com esse tipo de prática. 

Além disso, se alguém se expressa com um tom de certeza absoluta ao falar destes temas (ensino, aprendizado, memorização, técnicas, métodos, “turbinagem”, “autoajuda cerebral”...), lhes estará dizendo algo basicamente incorreto, pois as provas de causas e efeitos neste âmbito são quase sempre débeis e circunstanciais, e as diferenças de personalidade de cada indivíduo (tanto as relativas ao “caráter” como as vinculadas com o “temperamento”) podem não ter relação alguma com os problemas que afirmam “tratar”. Somos o que somos. E aqui vai outro conselho: embora cada pessoa ajuste sua visão do mundo e da vida à medida de seus desejos, cuidado com os indivíduos que carecem de “ouvido” para as coisas da ciência, porque a mais cega subjetividade é o mais daninho e perverso “critério de verdade”: dado que o sinto assim, assim é; marca de fábrica do pensamento infantil.

Por último, diremos que não nos surpreende que haja empreendedores e gurus (indivíduos, em definitiva) que se dediquem a vender suas experiências, técnicas, métodos e ideias no mercado livre. Em certo (ainda que estranho) sentido, respeitamos e admiramos sua tenacidade. O que de verdade nos tem assombrado é que as instituições de ensino, que (pelo menos em teoria) são depositárias de um conjunto muito distinto de responsabilidades, acolham e incentivem esses profissionais que enganam, confundem e “deslumbram” com explicações de pretendida cientificidade, como o mais condescendente dos doutores vitorianos imaginável.

E, sobretudo, que o façam em um campo como a educação, donde o perigo é muito concreto, fomentando um tipo de prática levada a cabo por indivíduos impelidos em todo momento pelo desejo de criar um mercado para si mesmos, em que eles são os “expertos” nessa classe de enfoque e nós os engambelados e os ignorantes; isto é, levando-nos a pensar que sabem algo que em realidade desconhecem: sujeitos adictos a encontrar as justificações e argumentos que lhes convêm para afilar, limar e alterar seletivamente a mensagem que desejam transmitir através do uso indiscriminado e vicioso da (neuro) ciência. Assim se fabricam os pesadelos.

O que queremos dizer é que, pelo menos diante das atuais limitações e carências da investigação neurobiológica, parece de todo razoável evitar deixar-se seduzir pelas licenças poéticas ou pelo uso abusivo e charlatão de quimeras acerca do poder da mente, da capacidade do cérebro para aprender e memorizar, do controle motivacional, etc., sob pena de corrermos o risco de descaminhar-nos nos delírios de uma mente vadia ou de perder-nos em uma selva de falsas ideias.   

Da mesma forma como a religião condena aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também muitos dos grandes mitos sobre “como aprende o cérebro” não somente podem fazer-nos perceber como irrefutavelmente reais as mais disparatadas e nauseabundas fábulas sobre nosso cérebro, senão que também podem levar-nos a tomar decisões poucos acertadas em nossa vida cotidiana de estudantes. Neste preciso momento, basta com saber que já contamos com um cérebro/mente com todo o imprescindível para desenvolver nossa capacidade de aprender e memorizar o que necessitamos e, dessa forma, aprovarmos em qualquer concurso público. Só é necessário um pouco mais de atenção, de entrega pessoal e uma firme disposição para atuar livremente e fazer nosso próprio cérebro.


Notas

[1] E isso por uma razão muito simples: como cada pessoa é distinta, nem a todos satisfaz as estratégias de outros como tão pouco são adequadas (a todos) as mesmas coisas. Assim que querer e insistir tanto em que todos deveríamos seguir determinadas métodos, técnicas ou regras de estudo “corretos” e “universais” é simplemente uma falácia. Independentemente de qual seja a estratégia que se utilize, seu êxito dependerá fundamentalmente de duas coisas: as circunstâncias em que se apresentam os desafios e a personalidade de quem os enfrenta. (J. K. Norem, 2002)

[2] De fato, o pior e mais daninho de todos é aquele tipo que se considera e se autoproclama, ao mesmo tempo, “triunfador”, “motivador” e “turbinador”. Neste caso, repetindo a José Saramago, a ignorância manifesta um de seus mais graves e perversos inconvenientes: quando se junta com a estupidez, não tem remédio.

[3] Em conjunto, resume à perfeição Mahzarin Banaji, “la visión de la naturaleza humana que ha ido evolucionando durante las cuatro últimas décadas ha cambiado sistemáticamente la explicación de lo que somos y por qué hacemos lo que hacemos.”  (A. Fernandez, 2006)

[4] Não temos nenhuma dúvida de que, a longo prazo, as ciências do cérebro e da mente, com seus instigantes, extremamente inovadores e em certa medida distantes e perturbadores descobrimentos, nos brindarão relevantes e esclarecedoras respostas ao “problema” do processo de aprendizagem e trarão consigo a promessa de cruciais aplicações práticas no âmbito da educação. Por outro lado, também diremos que parece-nos insensato esperar até que toda a investigação esteja concluída e ter a “certeza absoluta” de como funciona o cérebro para começar a operar com o que já sabemos acerca de  “como aprendemos”. Nossa compreensão atual, embora parcial, imperfeita e revisável, do modo como funcionam determinados mecanismos cognitivos e emocionais de aprendizagem já nos capacita, desde agora, a delinear e aplicar algumas estratégias compatíveis com o modo como o cérebro aprende melhor. Mas sempre com uma condição: que em um terreno tão delicado como o da investigação neurocientífica haverá de tomá-los em conta com muita seriedade e prudência, porque, às vezes, o que “nos mete em problemas não são as coisas que ignoramos; são as coisas que sabemos e não são assim” (Artemus Ward).

[5] Ninguém expressou melhor a eficácia dos chamados métodos de leitura dinâmica que Woody Allen: “Fiz um curso de leitura rápida e li “Guerra e Paz” em apenas vinte minutos. Tem a ver com  a  Rússia”.  Um conselho de cautela epistemológica: antes de entregar-se a esses tipos de promessas ou receitas milagrosas, tenha em conta que sendo o cérebro humano produto de um desenho acidental, limitado pela evolução, nossa própria humanidade limita a percepção, o processamento e o armazenamento indiscriminado de toda informação que processamos, que nossa capacidade de memorização têm limites e que esquecer não somente é normal e inevitável, senão que é igualmente recomendável e saudável. Aliás, ao igual que a maioria dos matrimônios felizes e duradouros, podemos assegurar que um dos segredos de nossas reiteradas e persistentes tentativas de aprovar em um concurso é (precisamente) ter uma memória limitada. Dito de outro modo, se são os recordos que fazem a vida mais bela, somente o olvido a faz suportável.

[6] Todas as propostas sérias para desenvolver o cérebro dão por sentado a eficácia da prática e do esforço pessoal. Até há pouco tempo isto era mais um artigo de fé que uma hipótese demonstrável. Não obstante, graças ao trabalho de K. Anders Ericsson (2007), hoje sabemos que a “prática deliberada” melhora o rendimento do cérebro. Por prática deliberada Ericsson entende a prática realizada com plena consciência (e intensa concentração) com o fim de evitar ruídos indesejáveis e resultados negativos. Sem prática deliberada (isto é, sem atenção plena, propósito e sentido de direção) o esforço nunca será suficiente. Trata-se, em síntese, de um ponto crucial, porque a energia mal gastada em práticas que não estão bem dirigidas equivale a estar drenando o cérebro em atividades desnecessárias ou secundárias para nossos objetivos. Nas palavras de Ericsson: “O trajeto até o desempenho verdadeiramente superior não é para os pusilânimes nem para os impacientes; o desenvolvimento de uma genuína preparação requer luta, sacrifício e um grande esforço pessoal, honrado e com fequência doloroso. Não há atalhos”. 

[7] O que implica que podemos (e devemos) cultivar nosso cérebro, que gozamos da capacidade de adaptar-nos a novas circunstâncias e de adquirir informação até a etapa final da vida (ainda que essa capacidade diminua com a idade). E mais: a plasticidade do cérebro depende do quanto se usa e em que sentido, com o qual trabalhá-lo não somente é possível, senão também recomendável. E uma vez que os mecanismos de aprendizagem e memória são os que fazem que tal coisa ocorra, pode-se dizer que as estruturas do cérebro tornam possível o aprendizado e, ao mesmo tempo, que o aprendizado modifica essas estruturas e também seu funcionamento. Em questão de aquisição de sólidos conhecimentos o cérebro se fortalece principalmente durante e mediante o aprendizado contínuo e atento: somos e aprendemos aquilo que nos interessa.

[8] Aos que D. Chabris e D. Simons (2011) denominam “neurocháchara” ou “porno cerebral”; um conjunto de ideias “que pueden inducirnos a pensar que hemos aprendido sobre el cerebro más de lo que en realidad lo hicimos, [...] y que pueden servir más como una herramienta  de ventas  para su ´ciencia´ que como verdadero instrumento cognitivo”.

[9] É certo que alguns deles têm credenciais acadêmicos e outros não; mas isto, no fundo, não é o fundamental. O substancial é que a grande maioria deles oferecem fórmulas para estudar e aprender melhor, mas poucas dessas fórmulas têm uma base científica ou estão rigorosamente baseadas em uma investigação séria e robusta. De toda forma, em defesa de quase todos os gurus, nós mesmos sustentaríamos que talvez careçam da experiência acadêmica (científica) necessária e adequada para que possamos chamar-lhes de mentirosos. Harry Frankfurt analisou de modo largo e detido essa questão em seu clássico ensaio On Bullshit. Segundo seu modelo, o “bullshit” constitui uma forma de falsidade distinta da mentira. O mentiroso conhece a verdade e esta lhe importa, mas se propõe deliberadamente induzir ao erro; o veraz conhece a verdade e trata de transmiti-la; mas o bullshitter não lhe importa a verdade e o único que pretende é impressionar-nos. “Es imposible que nadie mienta a menos que sepa la verdad. Pero para producir bullshit no se precisa de tal convicción. […] Cuando un hombre honesto habla, sólo dice lo que cree que es verdad. Igualmente, para el mentiroso es indispensable en la misma medida considerar falsos sus propios enunciados. Para el bullshitter, sin embargo, nada de eso tiene importancia: no está del lado de lo verdadero ni del de lo falso. Su ojo no mira para nada los hechos, como lo hacen los ojos del hombre honesto y del mentiroso, salvo en la medida en que puedan serle de utilidad para salirse con la suya diciendo lo que dice. No le incumbe que las cosas que dice describan correctamente la realidad o no. Solamente las selecciona a su antojo —o se las inventa—según convenga a sus fines.” (H. Frankfurt, 2006)

[10] Tenha sempre em conta o fato de que não somente é de vital importância não permitir que os dados inúteis apartem (da mente) aos úteis a empurrões, senão que, às vezes, o mais recomendável é atuar como na fábula de Ulisses e as Sereias e, da mesma forma que o ator, atar-se a algo mais sólido e útil para não cair seduzido pelas doces palavras e sedutoras promessas das atuais “sereias do êxito”. Depois de tudo, e não parece demasiado recordar, quem se limita a seguir aos demais, nada segue, nada encontra e, pior ainda, nada busca.

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Sobre os autores
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Cognición y Evolución Humana pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Teoría del Derecho pela Universidad de Barcelona- UB (Espanha). Pós-doutorado (Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica) pelo Laboratório de Sistemática Humana- UIB (Espanha). Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB pelo Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog (Espanha). Membro do Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB) do Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa ; FERNANDEZ, Marly. Concurso público e cérebro: Pseudociência e (neuro) estafa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3635, 14 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24680. Acesso em: 4 nov. 2024.

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