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Proporcionalidade e prisão preventiva compulsória: o STF e a não recepção do art. 81 da Lei 6.815/80

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18/06/2013 às 10:25
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3 DA PRISÃO PREVENTIVA COMPULSÓRIA

3.1 NECESSÁRIA INTRODUÇÃO

Aqui se abordará asprisões preventivas impostas compulsoriamente, independentemente de qualquer condenação ou da análise de casos concretos. De pronto, então, exclui-se a situação da antiga prisão preventiva decretada em face de decisão de pronúncia (mitigada com a Lei 5.941, de 23 de novembro de 1973, que acrescentou um § 2º ao art. 408, CPP; extirpada do ordenamento jurídico pela minirreforma do Código de Processo Penal, promovida pela Lei 11.689, de 09 de junho de 2008, que alterou o art. 408, caput, CPP e lhe retirou os parágrafos). De igual modo, retira-se a primitiva hipótese de prisão preventiva em decorrência de sentença condenatória recorrível – que, para alguns, teria natureza jurídica de execução penal provisória (Jardim, 1995, p. 375) –, que, tal qual a outra situação, remonta a redação originária do Código de Ritos Penais (art. 393, I, c/c art. 594, CPP). Não obstante seus efeitos já estivessem paralisados pela jurisprudência das Cortes Superiores, o art. 393, CPP, só veio a ser retirado com a recente Lei 12.403, de 04 de maio de 2011 (o art. 594, ao contrário, foi revogado pela Lei 11.719, de 26 de junho de 2008, uma das leis que integrou o pacote de reforma do CPP em 2008).

Os casos analisados, inicialmente, limitar-se-ão àqueles pós Constituição Federal de 1988. Dentre os casos, o destaque irá para os considerados de maior relevância para o estudo do tema, quais sejam: o art. 2º, II, da Lei 8.072/1990 (crimes hediondos); o art. 21, da Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento); art. 44,caput,Lei 11.343/2006 (drogas). Há razões, moderadamente ligadas, para se encarar essas três leis: 1) todas surgiram após a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88; 2) todos os casos se ligam, com menor ou maior intensidade, à situação da inafiançabilidade constitucionalmente prevista; 3) todas as situações são hipóteses de prisão preventiva compulsória onde a inafiançabilidade esteve direta ou indiretamente ligada. Por se encontrarem estritamente ligadas (em virtude de se tratar de crimes hediondos e equiparado a hediondo – tráfico de entorpecentes), os casos da Lei 8.072/90 e da Lei 11.343/06 serão tratados simultaneamente. O art. 3º da Lei 9.613/1998 (“Lavagem de Dinheiro”) poderia ser incluído nessa apreciação, se não tivesse sido recentemente revogado pela Lei 12.683, de 09 de julho de 2012. De igual modo, há quem coloque (SANGUINÉ, 2010, p. 127-136) o art. 7º, Lei 9.034/95 (Crime Organizado) no mesmo patamar daquelas outras citadas. Data maximavenia, aqui, assim não se entende, posto que o art. 7º, da mencionada lei, indica conteúdo passível de enquadramento no art. 312, CPP (manutenção da ordem pública).

O derradeiro (posto que abandonado, como se verá) caso será o do art. 81, da Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro). A doutrina deixou de lado a situação do extraditando preso; a jurisprudência seguiu esse desprezo. Por essa razão, o STF convive com uma Desproporcionalidade nas suas decisões. Ao passo que atacam a desproporcionalidade das leis editadas pelo Poder Legislativo[24], o Judiciário não consegue imprimir uma mesma linha de raciocínio aos seus julgados e, por essa razão, mantém uma insustentável incoerência argumentativa, perceptível na aplicação do Postulado da Proporcionalidade.

Para explicar a relação de todos esses casos com a fiança, faz-se mister uma explicação do instituto.

3.2 A FIANÇA NA NORMA NORMARUM DE 1988

Pode-se definir a fiança (MARQUES, 2000) como: caução (definição de “caução” em Marques, (2000, p. 167)), garantia real prestada em juízo para assegurar a liberdade provisória (esta, em sua modalidade vinculada); um acessório, por vezes necessário, da liberdade provisória que o réu obtém; uma garantia outorgada ao réu pela Constituição, de defender-se solto mediante caução (p. 143); trata-se de direito (em sentido amplo, visto que se trata, em verdade, de uma garantia) público subjetivo, constitucionalmente garantido (p. 145); medida substitutiva do Estado coercitivo prisional (p. 157); diz-se de uma providência cautelar(p. 172), com fito de garantir o status libertatis.

Há quem defenda a que a fiança seria uma “contracautela” (POLASTRI, 2011, p. 159), e não uma “cautelar” (FERNANDES, 1991, p. 31; MARQUES, 2000, p. 172). Todavia, oportunas são as palavras de Calamandrei (apud MARQUES, 2000, p. 13), ao definir, quanto à finalidade, as cautelares, incluindo a fiança, como “strumentidellostrumento” (1936, p. 22). De fato, se o Processo Penal é um instrumento para aplicação da pena (dentre as finalidades garantistas positivas), as cautelares, que lhe garantem a perfectibilidade (acautelam o processo), não deixam de ser, também, um instrumento. Logo, a ideia de “contracautela”, “instrumento do instrumento”, volta à lume, sem prejuízo das ideias dos autores que sustentam a natureza cautelar. Tem-se, neste caso, uma questão de vertente de análise, que, em parte, soluciona esta divergência acerca da natureza da fiança.

A fiança (ou seu oposto, a inafiançabilidade) sempre foi lembrada pelas Constituições brasileiras, em menor ou maior grau. Desde a Constituição do Império (art. 179, IX, CI/1824), passando por todas as outras[25], o Brasil, ainda que minimamente, sempre tratou da garantia da fiança em sua Lei das Leis (nem que fosse para restringi-la). O mesmo serve para legislação infraconstitucional (v.g., Código Criminal do Império, de 1830, arts. 32 e 181). Ainda assim, como lembra Araujo(2011, p. s.n.), “os doutrinadores do direito processual penal já há muito tempo a tratam [a fiança, diga-se] com certo desdém, e os constitucionalistas tampouco a veem com grande estima”. De fato, o tema é dotado de apatia doutrináriae, talvez por isso, a jurisprudência (principalmente a dos tribunais superiores) tanto tenha judiado do instituto em suas decisões.

Para que não haja injustiças, é bom que se diga que esta “cegueira”, “apatia”, pode ser notada na doutrina mais moderna. Estudando os clássicos, é possível que se encontre vastas referências ao estudo da fiança. É caso, por exemplo, de Marques (2000) e Barros (1982), que destinam amplo espaço de suas obras para tratar do tema. Essa tendência restritiva, no que tange a abordagem do tema, veio acompanhada do ocaso do instituto, como se demonstrará mais a frente[26].

O problema que passou despercebido (rectius, “tratado com naturalidade”) por muito tempo, agora, com a Constituição de 1988[27], não pode dispensar esse debate, visto que ganhou novos ares. Trazendo a fiança em seu texto, de forma até então não vista na história constitucional nacional, a CRFB/88 elencou-a (mas não apenas ali) no rol “dos direitos e deveres individuas e coletivos” (art. 5º, XLII, XLIII, XLIV, LXVI).

A CRFB/88 foi responsável por intermediar o total esquecimento da fiança e o seu renascimento; curiosamente, o renascimento modificou drasticamente a natureza jurídica da fiança: de garantia constitucional da liberdade, para óbice constitucional da liberdade. Perceba-se.

O findar do instituto começa com a Lei 6.416, de 24 de maio de 1977, ainda sob a égide da CF/67 (ou 69, para aqueles que consideram a EC 1/69 c/c AI 12, de 31.08.1969, uma nova Constituição, como Bastos(1997, p. 143) e Barroso, (2006b, p. 38-40)). Alterando a sistemática da fiança no Código de Processo Penal, o legislador promoveu verdadeira confusão de termos. Isso porque, ao expandir as situações insuscetíveis de fiança, o legislador abarcou uma infinidade de crimes, dentre os quais aqueles considerados de maior gravidade. Era uma clara tentativa de potencializar o repúdio a certas condutas, como se vedação à fiança fosse sinônimo de vedação à liberdade provisória. Aparente e surpreendentemente, a intenção do legislador era, através de vedação abstrata, antecipar a análise concreta do caso por parte do Judiciário e, diante disso, vedar a liberdade provisória para certas pessoas acusadas de condutas destacadas como infames ao extremo (v.g., estupro e homicídio). Para tanto, afirmou-se que a fiança não seria concedida, como se vê nos seguintes tópicos do artigo 312, CPP:

- nos crimes punidos com reclusão em que a pena mínima cominada for superior a dois anos;

- nas contravenções tipificadas nos artigos 59 e 60 da Lei das Contravenções Penais;

- nos crimes dolosos punidos com pena privativa da liberdade, se o réu já tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado;

- nos crimes punidos com reclusão, que provoquem clamor público ou que tenham sido cometidos com violência contra a pessoa ou grave ameaça.

- aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se refere o art. 350;

- em caso de prisão por mandado do juiz do cível, de prisão disciplinar, administrativa ou militar;

- ao que estiver no gozo de suspensão condicional da pena ou de livramento condicional, salvo se processado por crime culposo ou contravenção que admita fiança;

- quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva.

Todavia, diante da interpretação jurisdicional, a situação ficouda seguinte forma: quem cometesse crime tido como inafiançável, não poderia ter direito à liberdade provisória mediante fiança (na época, a principal – para não dizer “verdadeiramente única”, já que todas estas imposições secundárias também se aplicavam à liberdade provisória mediante fiança – medida cautelar[28]). Então, se este acusado comparecesse aos atos do processo (antigo art. 327, CPP), poderia ter a sua liberdade independentemente de caução, inclusive das hipóteses insuscetíveis de fiança. Era o conhecido “livrar-se solto” (revogado artigo 321, CPP).

Essa interpretação foi aúnica solução encontrada pelo Poder Judiciário, diante da aberração legislativa que se colocava diante dele (Judiciário) e da vedação donon liquet. O Postulado da Proporcionalidade, inclusive, albergava esse entendimento, ainda que, por outro lado, houvesse, por parte do Poder Legislativo, uma clara violação à Proibição de Insuficiência/de Proteção Insuficiente – estando essa diretamente relacionada com a violação à Proibição de Excesso/Intervenção, como constatou o STF[29]. Aqui, uma pequena explicação sobre a Proibição de Excesso.

Tanto a Proibição de Excesso quanto a Proibição de Insuficiência (termo cunhado por Claus Wilhelm-Canaris) derivam do Postulado da Proporcionalidade. Há quem considere a proibição de insuficiência a própria proibição de excesso, mas visto sob outro ponto de vista (a visão positiva e a visão negativa). Aliás, é por conta dessa dualidade que, hoje em dia, há doutrinadores (como se disse logo no começo deste trabalho) que evitam fazer uma total equiparação entre o Postulado da Proporcionalidade e a Proibição de Excesso (Ávila, inclusiva, o coloca como um Postulado autônomo – cf. ÁVILA, 2011, p. 157-162 –, mas não o faz por conta da distinção entre excesso e insuficiência). Para maiores detalhes sobre essa distinção, as lições de Canaris(2010, p. 205-220), Sarlet(2004, p. 60-122; in NOVELINO, 2009, p. 269-276; 2010, p. 141-155),Streck(2007, p. s.n., 2008, p.s.n) eFeldens(2012, p. 164-166) são imprescindíveis, uma vez que são os precursores do debate no plano nacional.

Retornando à inafiançabilidade, destaque-se que esta era prevista para os crimes tidos como os mais graves; todavia, para se esquivar de uma prisão cautelar, o tratamento mais rígido era dado aos crimes afiançáveis. Note-se (e repita-se) que, para corrigir essa falha legislativa, o STF teve que promover uma interpretação completamente desarrazoada (no sentido da razoabilidade mesmo). Irresignado, dizia Barros (1982, p. 1):

Criou-se uma verdadeira disparidade entre a fiança e essa contracautela [qual seja, o comparecimento aos atos processuais], quando nesta os deveres e encargos processuais deveriam ser mais severos; tendo em vista que ela se aplica de forma mais ampla, atendendo a casos em que as infrações são de maior gravidade do que aqueles afiançáveis. (BARROS, 1982, p. 1).

O legislador quis se antecipar ao magistrado. Sua intenção, claramente, era privar da liberdade provisória aqueles que cometessem certos delitos (os ditos inafiançáveis).Nucci (2012, p. 19), sobre isso, manifesta-se criticamente:

Quer-se crer tenha sido o intuito do constituinte dizer a todos que lessem a Constituição e fossem, basicamente, ignorantes em Direito, ao menos quanto à prática processual penal brasileira o seguinte: somos um País extremamente rígido com esses criminosos [referindo-se ao art. 5º, XLII, XLIII e XLIV, CRFB/88], pois todos eles, uma vez presos, assim ficarão, já que tais delitos são inafiançáveis. (NUCCI, 2012, p. 19)

Aliás, a própria ideia de liberdade provisória é bastante censurada na doutrina. Pacelli (2011), por exemplo, critica, afirmando que:

[…] não é porque o constituinte de 1988, desavisado e desatualizado com a legislação processual penal de sua época, tenha se referido à liberdade provisória, com e sem fiança, que a nossa história deve permanecer atrelada a este equívoco. O que é provisório é sempre a prisão, assim como todas as demais medidas cautelares, que sempre implicarão restrições a direitos subjetivos. A liberdade é a regra; mesmo após a condenação passada em julgado, a prisão eventualmente aplicada não será perpétua, isto é, será sempre provisória. (PACELLI, 2011, p. 4; anexo de atualização do livro)

Certo é que a “inafiançabilidade”, durante a história do direito penal brasileiro, sempre correspondeu a uma severidade do Poder legiferante, ainda mais quando cumulada com o estado de flagrância. Mas, diante da ampliação do rol dos crimes inafiançáveis (promovida pela Lei 6.416/77), o equívoco da prisão cautelar compulsória tornou-se retumbante, somando-se a isso a evolução do Garantismo no Direito Penal/Processual Penal daquela época; a desproporcionalidade passou a ser evidente.

Através de um juízo de valor a priori, a lei tentava segregar acusados compulsoriamente, ainda que não houvesse qualquer condenação (que dirá trânsito em julgado). Para tanto, confundiu-se “inafiançabilidade” com “vedação à liberdade provisória”, como se as duas fossem pressupostos intrínsecos uma da outra, numa relação que, se filtrada pelo Postulado da Proporcionalidade, não resistiria. Se não houve uma tentativa de tomada da competência do magistrado (na análise da necessidade da prisão cautelar; é dizer, na aplicação da lei ao caso concreto), houve, claramente, um monumental equívoco terminológico.

Desta forma, acompanhou-se a falência do instituto da fiança. Se os acusados de crimes mais graves podiam obter liberdade provisória com menos empecilhos o ligando ao processo, se comparados àqueles acusados de crime de menor repulsa social, não havia mais interesse em estudar um instituto legislado de maneira francamente contraditória[30]. De forma esdrúxula, a mesma lei (6.416/77) que pretendia aprimorar o instituto da fiança foi a que causou o seu fim.

Com a Constituição de 1988, pôde-se perceber que um “erro” (ou não, se for aceita a crítica supratranscrita de Nucci, (2012)) pode ser cometido por doutos várias vezes, até mesmo no texto jurídico mais importante de uma nação. Repetindo o equívoco da Lei 6.416/77, o Poder Constituinte Originário, na ânsia de repudiar condutas ilícitas, fez uma coisa atípica para uma Constituição Nacional: menção expressa a delitos tidos como dignos de sanção mais rígida, tachando-os de inafiançáveis.

Essa tarefa (elenco de crimes inafiançáveis), geralmente delegada ao Poder Constituinte Derivado Decorrente[31], foi desempenhada pelo Constituinte Originário, no art. 5º, incisos XLII, XLIII, XLIV, CRFB/88. Assim, atacou-se o racismo, a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes, o terrorismo, os crimes hediondos (a serem definidos pelo legislador ordinário) e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Todos esses seriam inafiançáveis, uma vez que se encontravam (e se encontram) sob a ordem de um mandado expresso de criminalização[32][33], ou seja, teoricamente falando, esse seria o “núcleo duro” de segurança exigido pelo Constituinte perante tais condutas. Em outras palavras, o poder de conformação discricionário (CANOTILHO, 2007) do Legislativo estaria mantido; só que ele não poderia “suavizar” o jus puniendi diante de tais condutas, contrariando a Lex Mater.

Como se vê claramente,o Constituinte não acompanhou a evolução da jurisprudência do STF, que, por razões óbvias, dissociou liberdade de fiança (no sentido negativo da associação). Como já se mostrou, o STF vinha dizendo que o fato de o crime ser inafiançável não redundaria na vedação à liberdade provisória. Estava para se repetir a cizânia instalada em 1977, solucionada (ainda que em parte)com muito “sangue” de coerência pelo Supremo, quando, em 1990, editou-se a Lei 8.072, que elencava o rol de crimes hediondos. Essa lei passou a prever a impossibilidade de liberdade provisória para os acusados de cometer os delitos lá elencados (art. 2º, II).

Agora se tinha uma norma infraconstitucional prevendo a vedação à liberdade provisória. Claramente, o que se pretendia era evitar a mesma discussão que se teve em torno da Lei 6.416/77 – é dizer, inafiançabilidade e prisão preventiva compulsória se confundem?

O quadro formado por essa lei (e repetido pelas outras que serão abordadas), para ser colocado diante do Postulado da Proporcionalidade, deve ser encarado pela vertente dos princípios que a cerca. Primeiro, deve-se achar o princípio que informou a edição do art. 2º, II, da Lei 8.072/90: direito fundamental à segurança (art. 5º, caput, CRFB/88). Não se tratou de observância de mandado expresso de criminalização[34],visto que ultrapassou o mandamento do Constituinte (que apenas falava em inafiançabilidade, não em prisão preventiva compulsória). Segundo passo, ver qual é o princípio que está colidindo, no espaço jurídico-abstrato, com essa tentativa de consagração do direito à segurança: direito fundamental à liberdade (art. 5º, caput, CRFB/88)[35].Nucci (2012) muito bem trabalha com essa colisão no Direito Penal e Processual Penal:

É inviolável o direito à vida, liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5º, caput, CF). Observa-se, então, o natural confronto entre a liberdade e a segurança, quando se trata de aplicar, na prática, as normas penais e processuais penais. Porém, não havendo direito absoluto, flexibilizando-se cada um deles na medida exata da necessidade de aplicação dos demais, tem-se que a liberdade individual é de suma relevância, desde que não deva abrir espaço para a aplicação da pena – sanção fixada em decisão definitiva, respeitado o devido processo legal. Do mesmo modo, a liberdade individual cede espaço, também individualizada, sob o ângulo de cada cidadão beneficiado, abrindo caminho para a aplicação da prisão cautelar. (NUCCI, 2012, p. 13)

O resultado da análise dos elementos (Adequação, Necessidade e Proporcionalidade em Sentido Estrito) do Postulado da Proporcionalidade, tomando como base esta colisão de princípios, será mostrado mais adiante, quando as outras leis forem trabalhadas.

Todavia, já neste quadro abstrato de total supressão de um direito fundamental em prol do outro, qualquer um diria, “mas essa norma (art. 2º, II, Lei 8.072/90) é inconstitucional!”; inesperadamente, não egrégio Tribunal Supremo.

3.3 PRISÃO PREVENTIVA COMPULSÓRIA NO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. O ARTIGO 21, DA LEI 10.826/03

O Estatuto do Desarmamento, seguindo a linha simbólico-repressiva de outras legislações (já citadas anteriormente), trouxe, em seu artigo 21, uma vedação genérica e absoluta da liberdade provisória, para aqueles incursos nos arts. 16, 17 e 18. Além disso, o parágrafo único do art. 14 e o do art. 15 previam a inafiançabilidade dos delitos do caput (respectivamente, porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e disparo de arma de fogo).

Tal estatuto conseguiu ser mais incongruente (o que não quer dizer “mais equivocado”) do que a Lei de Crimes Hediondos. Isso porque os enquadrados na restritiva norma do Estatuto do Desarmamento poderiam passar pela seguinte situação: passar todo o processo preso e, ao final, ter sua pena substituída por alguma(s) restritiva de direito (art. 43, CP) ou, ainda, serem condenados a cumprir a pena em regime aberto. Essas possibilidades eram inexistentes na Lei de Crimes Hediondos (como se verá), que possuía dispositivo que tornava compulsória o cumprimento de toda a pena em regime fechado. Como se disse, tratava-se de uma lei mais congruente, tendo em vista que o sujeito preso no começo do processo, assim permaneceria ao final (exceto se fosse absolvido – e aqui está o absurdo de uma vedação genérica e absoluta à liberdade provisória).

Dentre os dispositivos que foram declarados inconstitucionais pelo STF, em 02 de maio 2007, após o julgamento da ADI 3.112, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, destaque-se os arts. 14, p. ú. 15, p. ú e 21. O relator aduziu que “o texto constitucional não autoriza a prisão ex lege, em face do princípio da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da CF), e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente (artigo 5º, LXI, da CF)”, bem como que a “prisão obrigatória, de resto, fere os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, LV), que abrigam um conjunto de direitos e faculdades, os quais podem ser exercidos em todas as instâncias jurisdicionais, até a sua exaustão” (voto do Relator; destacado).

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Nesta ADI, o STF teve a oportunidade de separar definitivamente a fiança da liberdade provisória, através da construção de argumentos separados para cada um dos dispositivos acima. É dizer, uma construção de razões para a inconstitucionalidade dos artigos 14, p. ú. e 15, p. ú. (que versa sobre a fiança) e outra (construção) para o art. 21 (que versava sobre a liberdade provisória). Mesmo o fazendo[36], o problema se estendeu para as Leis 8.072/90 e 11.343/06, onde, inexplicavelmente[37], o STF não reproduzia o mesmo entendimento.

3.4 PRISÃO PREVENTIVA COMPULSÓRIA NA LEI DE CRIMES HEDIONDOS E NA LEI DE DROGAS. O ARTIGO 2º, II, DA LEI 8.072/90 E O ARTIGO 44, DA LEI 11.343/06.

A Lei de Crimes Hediondos é um típico caso de (mais) uma lei que “nasceu” problemática no Brasil (o que costuma ocorrer com certa frequência). Vedando institutos clássicos do Direito Penal, como a progressão de regime (art. 2º, § 1º), e do Processo Penal, como a liberdade provisória (art. 2º, II), a lei passou por intensos debates no Supremo Tribunal Federal – STF. Em outras, palavras, pode-se dizer, sem exageros, que se trata de lei cunhada pela jurisprudência do STF (ainda que mais tarde o Poder Legislativo tenha formalizado – legalmente falando – algumas dessas alterações). O mesmo pode ser dito da Lei de Drogas que, por ser mais recente, não repetiu certas falhas da Lei 8.072/90, como a vedação à progressão de regime, mas, por outro lado, manteve o óbice em abstrato para a concessão de liberdade provisória (art. 44). Problemas? Não para o STF.

A primeira teratologia legislativa, da Lei 8.072/90, foi combatida no HC 82.959/SP, julgado no dia 23 de fevereiro de2006, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, case da progressão de regime para condenados por crimes hediondos. Neste caso, o STF declarou a inconstitucionalidade, incidenter tantum, do § 1º, do art. 2º, da Lei 8.072/90. Para tanto, estribou-se no art. 5º, XLVI, CRFB/88, que dispõe sobre a individualização da pena, e na Dignidade da Pessoa Humana[38]. Certo é, todavia, que, para o trabalho ora desenvolvido, tal decisão não merece maiores destaques aqui, fora o fato de que, mais uma vez, o STF limitou a discricionariedade legislativa, mostrando que essa, antes de ser absoluta, deve atuar no espaço de conformação permitido pela Constituição (como costuma propalar o Professor Gomes Canotilho). Além do mais, o que sobreveio a essa decisão, legislativamente falando, merece, também, destaque. In casu, fala-se na Lei 11.464, de 28 de março de 2007, que dentre outras modificações, alterou a redação do mencionado § 1º, do art. 2º, da multicitada lei. Mas não foi só. Alterou, também, inciso II, do art. 2º. Esse dispositivo previa que os crimes hediondos eram insuscetíveis de liberdade provisória e fiança. Depois dessa alteração, retiraram-se as palavras liberdade provisória.

A mencionada lei modificadora, especificamente ao mexer no inciso II, do art. 2º, nada mais fez, senão adequar a Lei de Crimes Hediondos à Magna Carta. Poder-se-ia dizer, “adequar em relação ao art. 5º, XLIII, CRFB/88”, mas esta resposta estaria incompleta. Sim, porque, nesse caso, estar-se-ia dizendo que, literalmente, o dispositivo foi alterado para apenas prever vedações que já constavam no texto magno: 1) vedação à fiança; 2) vedação à graça (em sentido amplo, ou seja, abrangendo o indulto e o perdão); 3) vedação à anistia. Assim, neste caso, dir-se-ia que a Lei 11.464/07 apenas respeitou o mandado expresso de criminalização constitucional (anteriormente abordado, ainda que resumidamente).

De igual modo, ela também não apenas adequou a norma aos incisos LIV, LV, LVII e LXVI, todos do art. 5º, CRFB/88. Ela fez mais do que isso. Ela observou o Postulado da Proporcionalidade, inerente à estrutura dos princípios (e do próprio Direito, pode-se dizer). Mas isso não foi visto pela Suprema Corte e, de modo equivocado, através de um tremendo retrocesso jurisprudencial, passou a equiparar inafiançabilidade à vedação à liberdade provisória, tal como pretendia o Constituinte, naqueles dispositivos individualizados[39]. Em outras palavras, o fato de a Lei 11.464/07 ter alterado o texto do inciso II, art. 2º, Lei 8.072/90, retirando a vedação expressa à liberdade provisória, não foi o suficiente para alterar o entendimento do STF. Veja-se:

HABEAS CORPUS. PRISÃO EM FLAGRANTE. PACIENTE PRONUNCIADA PELO CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO (CRIME HEDIONDO). CUSTÓDIA CAUTELAR MANTIDA. OBSTÁCULO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL: INCISO XLIII DO ART. 5º (INAFIANÇABILIDADADE DOS CRIMES HEDIONDOS). SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 11.464/2007. IRRELEVÂNCIA. MANUTENÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF.

1. Se o crime é inafiançável e o acusado foi preso em flagrante, o instituto da liberdade provisória não tem como operar. O inciso II do artigo 2º da Lei nº 8.072/90, quando impedia a "fiança e a liberdade provisória", de certa forma incidia em redundância, dado que, sob o prisma constitucional (inciso XLIII do artigo 5º da CF/88), tal ressalva era desnecessária. Tal redundância foi reparada pelo legislador ordinário (Lei nº 11.464/2007), ao retirar o excesso verbal e manter, tão somente, a vedação do instituto da fiança.2. Manutenção da jurisprudência desta Primeira Turma, no sentido de que "a proibição da liberdade provisória, nessa hipótese, deriva logicamente do preceito constitucional que impõe a inafiançabilidade das referidas infrações penais: (...)” seria ilógico que, vedada pelo art. 5º, XLIII, da Constituição, a liberdade provisória mediante fiança nos crimes hediondos, fosse ela admissível nos casos legais de liberdade provisória sem fiança..."(HC 83.468, da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence). No mesmo sentido: HC 93.302, da relatoria da ministra Cármem Lúcia. […]. (Processo: HC 92924 SP. Relator (a): Min. CARLOS BRITTO. Julgamento: 01/04/2008. Órgão Julgador: Primeira Turma. Publicação: DJe-216 DIVULG 13-11-2008 PUBLIC 14-11-2008 EMENT VOL-02341-02 PP-00339 LEXSTF v. 30, n. 360, 2008, p. 340-354).

Em relação ao tráfico de entorpecentes ou drogas afins, deve-se lembrar de que este é um dos delitos equiparado a hediondo. Isso ajuda a compreender a discussão que se instalou após a Lei 11.464/07. Questionava-se se, após a retirada da expressa vedação à liberdade provisória da Lei 8.072/90, o art. 44 da Lei de Drogas não teria sofrido ingerência ideológica, ou, até mesmo, ter sido revogado (tendo em vista a especialidade das duas leis) do novel inciso II, art. 2º.

O fato é que a discussão perdeu seu interesse, quando, como se mostrou acima, o STF passou a dizer que inafiançabilidade e a vedação à liberdade provisória eram institutos sinônimos, perfeitamente cambiáveis, então. A Suprema Corte nacional passou a andar em caminho diametralmente oposto àquele por ela trilhado antes da CRFB/88, desconsiderando qualquer tipo de racionalidade e aproveitando-se do entendimento de que o Pretório Excelso não se submete (em absoluto) aos efeitos vinculantes de suas decisões, muito menos aos fundamentos adotados. Por isso,esse posicionamento, tido aqui como incoerente, se repetiu inúmeras vezes, veja-se:

HABEAS CORPUS. PACIENTES DENUNCIADOS POR TRÁFICO DE ENTORPECENTE E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO (ARTIGOS 12 E 14 DA LEI Nº 6.368/76). PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO. EXCESSO DE PRAZO. TEMA NÃO DISCUTIDO NO TJ/SP E NÃO CONHECIDO PELO STJ. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. CRIME HEDIONDO. CUSTÓDIA CAUTELAR MANTIDA. OBSTÁCULO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL: INCISO XLIII DO ART. 5º (INAFIANÇABILIDADADE DOS CRIMES HEDIONDOS). JURISPRUDÊNCIA DO STF. […] 2. Se o crime é inafiançável, e preso o acusado em flagrante, o instituto da liberdade provisória não tem como operar. O inciso II do art. 2º da Lei nº 8.072/90, quando impedia a "fiança e a liberdade provisória", de certa forma incidia em redundância, dado que, sob o prisma constitucional (inciso XLIII do art. 5º da CF/88), tal ressalva era desnecessária. Redundância que foi reparada pelo legislador ordinário (Lei nº 11.464/2007), ao retirar o excesso verbal e manter, tão somente, a vedação do instituto da fiança. 3. Manutenção da jurisprudência desta Primeira Turma, no sentido de que "a proibição da liberdade provisória, nessa hipótese, deriva logicamente do preceito constitucional que impõe a inafiançabilidade das referidas infrações penais: ...seria ilógico que, vedada pelo art. 5º, XLIII, da Constituição, a liberdade provisória mediante fiança nos crimes hediondos, fosse ela admissível nos casos legais de liberdade provisória sem fiança..." (HC 83.468, da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence). Precedente: HC 93.302, da relatoria da ministra Cármem Lúcia. […]. [STF - HC 95060 / SP - SÃO PAULO. Órgão Julgador: Primeira Turma. Relator (a): Min. CARLOS BRITTO. Julgamento: 16/12/2008]

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. PRISÃO EM FLAGRANTE POR TRÁFICO DE DROGAS. LIBERDADE PROVISÓRIA: INADMISSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. 1. A proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (Constituição da República, art. 5º, inc. XLIII): Precedentes. O art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.072/90 atendeu ao comando constitucional, ao considerar inafiançáveis os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Inconstitucional seria a legislação ordinária que dispusesse diversamente, tendo como afiançáveis delitos que a Constituição da República determina sejam inafiançáveis. Desnecessidade de se reconhecer a inconstitucionalidade da Lei n. 11.464/07, que, ao retirar a expressão ‘e liberdade provisória’ do art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.072/90, limitou-se a uma alteração textual. A proibição da liberdade provisória decorre da vedação da fiança, não da expressão suprimida, a qual, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, constituía redundância. Mera alteração textual, sem modificação da norma proibitiva de concessão da liberdade provisória aos crimes hediondos e equiparados, que continua vedada aos presos em flagrante por quaisquer daqueles delitos.2. A Lei n. 11.464/07 não poderia alcançar o delito de tráfico de drogas, cuja disciplina já constava de lei especial (Lei n. 11.343/06, art. 44, caput), aplicável à espécie vertente. […]. 4. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que as condições subjetivas favoráveis do Paciente, tais como emprego lícito, residência fixa e família constituída, não obstam a segregação cautelar. Precedentes. 5. Ordem denegada. [STF - HABEAS CORPUS: HC 104337 PE. Relator (a): Min. CÁRMEN LÚCIA. Julgamento: 01/02/2011. Órgão Julgador: Primeira Turma]

Absurdamente, a mesma ideia podia ser encontrada de forma dominante na jurisprudência do STF. Confira-se, por exemplo: 1) STF, HC 104.616/MG, 1ª T., rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 21.09.2010, DJe n. 215, de 10.11.2010; 2) STF, HC 102.715/MG, 1ª T., rel. Min. Dias Tóffoli, j. 03.08.2010, DJe n. 200, de 22.10.2010; 3) STF, HC 101.259/MS, 1ª T., rel. Min. Dias Tóffoli, j. 01.12.2009, DJe n. 22, de 05.02.2010; 4) STF, HC 98.548/SC, 1ª T., rel. Min. Cármen Lúcia, j. 24.11.2009, DJe n. 232, de 11.12.2009; 5) STF, HC 103.399/SP, 1ª T., rel. Min. Ayres Britto, j. 22.06.2010, DJe n. 154, de 20.08.2010; 6) STF, HC 95.671/RS, 2ª T., rel. Min. Ellen Gracie, j. 03.03.2009, DJe n. 53, de 20.03.2009; 7) STF, HC 102.558/PR, 2ª T., rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 09.02.2010, DJe n. 45, de 12.03.2010.

Mas esse entendimento da 1ª Turma do STF convivia com o da 2ª Turma que, de maneira coerente, repudiava totalmente a solução dada pela outra Turma, não aderindo, expressamente, aos fundamentos trabalhados por ela (1ª Turma):

HABEAS CORPUS. PENAL, PROCESSUAL PENAL E CONSTITUCIONAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. SEGREGAÇÃO CAUTELAR. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE SITUAÇÃO FÁTICA. LIBERDADE PROVISÓRIA INDEFERIDA COM FUNDAMENTO NO ART. 44 DA LEI N. 11.343. INCONSTITUCIONALIDADE: NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DESSE PRECEITO AOS ARTIGOS 1º, INCISO III, E 5º, INCISOS LIV E LVII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. EXCEÇÃO À SÚMULA N. 691/STF.  1. Liberdade provisória indeferida com fundamento na vedação contida no art. 44 da Lei n. 11.343/06, sem indicação de situação fática vinculada a qualquer das hipóteses do artigo 312 do Código de Processo Penal. 2. Entendimento respaldado na inafiançabilidade do crime de tráfico de entorpecentes, estabelecida no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição do Brasil. Afronta escancarada aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana. 3. Inexistência de antinomias na Constituição. Necessidade de adequação, a esses princípios, da norma infraconstitucional e da veiculada no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição do Brasil. A regra estabelecida na Constituição, bem assim na legislação infraconstitucional, é a liberdade. A prisão faz exceção a essa regra, de modo que, a admitir-se que o artigo 5º, inciso XLIII estabelece, além das restrições nele contidas, vedação à liberdade provisória, o conflito entre normas estaria instalado4. A inafiançabilidade não pode e não deve – considerados os princípios da presunção de inocência, da dignidade da pessoa humana, da ampla defesa e do devido processo legal – constituir causa impeditiva da liberdade provisória. 5. Não se nega a acentuada nocividade da conduta do traficante de entorpecentes. Nocividade aferível pelos malefícios provocados no que concerne à saúde pública, exposta a sociedade a danos concretos e a riscos iminentes. Não obstante, a regra consagrada no ordenamento jurídico brasileiro é a liberdade; a prisão, a exceção. A regra cede a ela em situações marcadas pela demonstração cabal da necessidade da segregação ante tempus. Impõe-se porém ao Juiz o dever de explicitar as razões pelas quais alguém deva ser preso ou mantido preso cautelarmente. […]. [HC 100745 / SC - SANTA CATARINA. Relator (a): Min. EROS GRAU. Julgamento: 09/03/2010. Órgão Julgador: Segunda Turma; também: HC 93115; HC 99278; HC 101718; HC 100733].

O acórdão supra muito bem demonstra a questão de a inafiançabilidade não se confundir com prisão preventiva compulsória. Ainda, destaca a latente colisão de princípios existente (afronta escancarada aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana), quando uma norma prevê hipótese de prisão cautelar automática.

Como se vê, além da loteria jurisdicional que já conseguia ser vista, a situação criada pelo Constituinte de 1988 e defendida pela colenda 1ª Turma do STF trouxe uma nova aberração, muito bem explicada por Araujo (2011, p.s.n.):

Passaram a existir então duas distintas classes de crimes inafiançáveis. Na primeira delas, os crimes inafiançáveis por disposição do Código de Processo Penal, não se obstava a concessão de liberdade provisória sem fiança, em conformidade com as alterações introduzidas na legislação ordinária em 1977. Já na segunda categoria, a dos crimes inafiançáveis previstos na Constituição da República, resgatava-se o significado primitivo de prisão inarredável. Criou-se no Brasil a situação estapafúrdia na qual um instituto não era igual a ele mesmo, exigindo que se buscassem distintas fundamentações para o que era em essência a mesma coisa, ou seja, a inacessibilidade da fiança, a depender da fonte da proibição. (ARAUJO, 2011, p. s.n.)

Tanto as divergências das Turmas, quanto esses absurdos jurisprudenciais, já vinham sendo denunciados, com maior ou menor intensidade (no sentido de não encarar o entendimento – ou o fazer de modo equivocado – propalado pelo STF), por alguns doutrinadores, como Lopes Jr (2011, vol. II, p. 188-192), Polastri (2011, p. 198-199), Távora e Alencar (2011, p. 615-616), Pacelli (2011, p. 66-71), Moreira (2012, p. 77-78), Nucci (2012, p.18-24), Brasileiro (2012, p. 468-469) e Bianchini e outros (in GOMES; SANCHES, p. 280-281, 2010), não obstante contar com expresso apoio de outros (GRECO FILHO; RASSI, 2009, p. 165-168). Foi quando em 10 de maio de 2012, no HC 104.339/SP, relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o STF uniformizou o entendimento de suas Turmas, ao, incidentalmente, declarar inconstitucional a expressão “e liberdade provisória”, constante no art. 44, caput, da Lei 11.343/2006. O acórdão ainda não foi publicado. Todavia, já se encontra veiculado por meio do Informativo 655 daquela Corte.

No informativo acima citado, destacou-se que a “vedação conflitaria com outros princípios também revestidos de dignidade constitucional, como a presunção de inocência e o devido processo legal”, uma vez que esse “empecilho apriorístico de concessão de liberdade provisória seria incompatível com estes postulados”. Afinal de contas, “a disposição do art. 44 da Lei 11.343/2006 retiraria do juiz competente a oportunidade de, no caso concreto, analisar os pressupostos de necessidade da custódia cautelar, a incorrer em antecipação de pena”. Frisou-se, ainda:

[…] que a inafiançabilidade do delito de tráfico de entorpecentes, estabelecida constitucionalmente, não significaria óbice à liberdade provisória, considerado o conflito do inciso XLIII com o LXVI (“ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”). (Inf. 655, STF).

O Ministro Dia Toffoli, focando exatamente na distinção da fiança e da liberdade provisória, ressaltou:

[…] que a fiança, conforme estabelecido no art. 322 do CPP, em certas hipóteses, poderia ser fixada pela autoridade policial, em razão de requisitos objetivos fixados em lei. Quanto à liberdade provisória, caberia ao magistrado aferir sua pertinência, sob o ângulo da subjetividade do agente, nos termos do art. 310 do CPP e do art. 5º, LXVI, da CF. Sublinhou que a vedação constante do art. 5º, XLIII, da CF diria respeito apenas à fiança, e não à liberdade provisória. (Inf. 655, STF).

Esse entendimento do STF pode ser explicado pelo Postulado da Proporcionalidade que, com toda certeza, se fosse aplicado da maneira correta, atalharia essa interpretação retumbantemente correta, ainda mais por já ter sido tomada na ADI 3.112, anteriormente tratada. Veja-se.

Têm-se dois direitos fundamentais em jogo: 1) segurança; 2) liberdade. Primeiro lugar, é bom que se lembre de que o Direito à Segurança é tão fundamental quanto o de Direito à Liberdade (o caput, do art. 5º, CF, deixa isso bem claro). Em verdade, foram descobertos (como preferem dizer alguns, que afirmam que os Direitos Humanos – tratando-se de direitos de primeira dimensão, esses direitos já podem receber esse título, na visão de Sarlet (2010, p. 27-35) – não são criados, mas descobertos com o passar do tempo) simultaneamente, se se pensar na primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aquela de 1789. Em outras palavras, fazem parte de uma mesma família: direito de primeira dimensão (geração) – ou, se preferir, direitos liberais, direitos burgueses, direitos negativos (de todos, o termo mais inapropriado, como se verá). É só atentar para o seu art. 2º: “os direitos naturais e imprescritíveis do homem são a liberdade, a propriedade, a segurança [claramente um direito positivo, e não negativo] e a resistência à opressão” (colchete acrescentado). Inexplicavelmente, esse direito costuma ser esquecido pelos aderentes do Garantismo Hiperbólico Monocular. Reforça essa ideia o fato de ele (direito) ter sido reforçado na segunda Declaração, em 1793, nos artigos 2º e 8º e, posteriormente, na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, em 1948, no artigo 3º. Portanto, isso tudo autoriza trabalharcom a colisão dos dois direitos fundamentais, na forma realizada no começo.

Para que se faça um exame à luz do Postulado da Proporcionalidade, deve-se promover o exame dos três subelementos que lhe integram, destacados no começo deste trabalho. Primeiro plano, Adequação. Questionar-se-ia: a vedação em abstrato da liberdade provisória é apta à promover a segurança? Forçoso seria reconhecer que sim. O meio se adequa ao fim, tendo em vista que é apto a realizar (promover [Silva, 2002 e 2003], se preferir) o valor segurança. No segundo plano, ter-se-ia a Necessidade: dentre todos os meios a disposição e de igual eficácia, há algum outro apto a promover o valor segurança, que importe menor restrição ao direito de liberdade em abstrato? Por óbvio que sim. A medida é extrema e desnecessária. Ela não mitiga o direito a liberdade; ela simplesmente o extirpa. É claro que a segregação provisória compulsiva é um meio apto a promover o fim segurança. Mas, assim como ela, há outras medidas aptas a promover o mesmo fim, sem o custo social de vedação absoluta do fundamental direto à liberdade. Claro, é possível que, no caso concreto, ela seja necessária; mas caberá ao magistrado, na trincheira dos fatos, dizer se é ou não. Não cabe ao Poder Legislativo fazer essa antecipação de valor em totalmente detrimento ao direito de liberdade. O exame da Proporcionalidade, em sentido estrito, sequer seria alcançado, seguindo a ideia da subsidiariedade dos três planos de análise.

O Postulado da Proporcionalidade deveria afastar de vez as prisões provisórias compulsórias, previstas, em abstrato, pelo Legislador. Aliás, após duas decisões nesse sentido, ambas em controle de constitucionalidade (ainda que em concreto), qualquer (em sentido generalizante, apenas para focar a necessidade de coerência; sempre haverá, por óbvio, espaço para posicionamentos divergentes) entendimento que escudasse a privação imediata da liberdade, sob o simples argumento de que alguém supostamente teria cometido um delito, deveria ser de pronto repudiado. Mas não o fez e o STF, agora, se coloca frente à terceira contradição seguida de seu entendimento em relação a um mesmo tempo: legitimidade das prisões preventivas compulsórias.

3.5 PRISÃO PREVENTIVA COMPULSÓRIA NO ESTATUTO DO ESTRANGEIRO. O ARTIGO 81, DA LEI 6.815/80

Extradição é um “ato por meio do qual um indivíduo é entregue por um Estado a outro, que seja competente para processá-lo e puni-lo” (ALBUQUERQUE, 2011, p. 1019). É dizer,a extradição é um ato pelo qual certo Estado entrega a outro Estado indivíduo que tenha, em tese, violado as leis do país requerente, para que neste (Estado requerente) responda pelo ilícito que supostamente cometeu. Trata-se, assim, de ato de cooperação internacional no campo penal (PORTELA, 2010, p. 265). Aqui, o que interessa neste trabalho é o art. 81, do Estatuto do Estrangeiro (EE), que versa sobre a prisão do extraditando.

A prisão preventiva compulsória do extraditando é de peculiaridade ímpar. Vem sendo tratada com naturalidade há anos. Poder-se-ia dizer “desde que a Constituição de 1988 foi promulgada e passou a valer”, mas, para ser menos radical, pode-se fixar como ponto de referência temporal a decisão do STF na ADI 3.112, em 2007.

A solução poderia ser de fácil resolução, se o Postulado da Proporcionalidade fosse aplicado. Ademais, se se entendesse que inafiançabilidade e vedação à liberdade provisória, são, de fato, sinônimos, e que aquele rol constitucional de crimes inafiançáveis é taxativo, o trabalhado artigo 81 deveria ser declarado inconstitucional, pois traz mais uma hipótese de inafiançabilidade/vedação à liberdade provisória.

De igual modo, caso se entendesse que os institutos acima não são a mesma coisa, a simples aplicação do entendimento exarado na ADI 3.112, bem como, agora, no HC 104.339/SP, bastaria para solução do caso. É dizer, poder-se-ia dizer que a prisão preventiva compulsória “conflitaria com outros princípios também revestidos de dignidade constitucional, como a presunção de inocência e o devido processo legal” (Inf. 655, STF). Ou, ainda que “o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente” (ADI 3.112, ponto V da ementa). Mas o STF não fez isso, e abandonou a situação do extraditando. Note-se:

Trata-se de pedido de prisão preventiva para extradição, formulado pelo Governo da Espanha, por via diplomática, do nacional espanhol José Emilio Rodriguez Menéndez. Mediante o Aviso n. 2900-MJ, de 22.12.2011, o Ministro de Estado da Justiça informa, por meio da Nota Verbal n. 427/2011, que o Governo requerente manifesta não persistir interesse no pedido de extradição do referido estrangeiro. Assim, julgo prejudicado o pedido, por perda superveniente de objeto. Revogo o decreto de prisão preventiva e determino o recolhimento do respectivo mandado. [PPE 616. Relator (a): Min. GILMAR MENDES. Julgamento: 19/01/2012. Publicação: DJe-053 DIVULG 13/03/2012 PUBLIC 14/03/2012].

Perceba a situação acima. O sujeito teve sua prisão decretada em 22.12.2011. Três meses depois, o Governo que requereu sua extradição simplesmente desistiu da extradição. É de sabença que três meses de prisão nas masmorraspenitenciarias do Brasil é tempo mais que suficiente para corroer o espírito daqueles que lá foram colocados (situação que, com certeza, deve ser potencializada pela ausência de motivos). Fora simplesmente encarcerado, sem qualquer formação de culpa ou, ainda, sem qualquer análise da necessidade da prisão preventiva. Apenas houve um solicitação internacional, que facilmente poderia ser atendida sem que o extraditando fosse posto numa cela. Exemplos como esse se repetem cotidianamente no Pretório Excelso. Confirme-se:

O Diretor Técnico III, Ademir Muniz de França, do Centro de Detenção Provisória III de Pinheiros, acusa o recebimento do alvará de soltura expedido em favor de Assaad Khalil Kiwan ou Assad Khalil Kiwan. Ao fazê-lo, questiona se o referido alvará de soltura é mesmo de ser cumprido, diante do Mandado de Prisão Preventiva nº 006/2009, expedido em 20 de março de 2009, no processo 2009.61.19.003208-3, pela 5ª Vara Federal de Guarulhos. 2. Decido. De saída, anoto que o mencionado processo (2009.61.19.003208-3) foi anexado a este pedido de prisão para extradição, havendo o Juízo de origem declinado da competência para o Supremo Tribunal Federal. Oportunidade em que a ministra Cármen Lúcia decidiu nos seguintes termos: "6. Pelos elementos agora carreados aos autos no Pedido de Prisão para Extradição, decreto a prisão preventiva do nacional libanês, naturalizado brasileiro, ASSAD KHALIL KIWAN ou ASSAD KHALIL KIWAN, nos termos do art. 82 da Lei n. 6.815/80, para fins de estudo da possibilidade jurídica de sua extradição, encarecendo a prevalência do presente decreto ante a notícia de que o Extraditando está preso na cidade de São Paulo, desde 20 de março de 2009, em razão do decreto de prisão preventiva expedido pelo Juízo da 6ª Vara Federal de Guarulhos-SP nos autos da Petição n. 4551." 3. Nessa contextura, tenho que a decisão proferida pelo Plenário desta Casa de Justiça na Prisão Preventiva para Extradição 623 (cf. ata de fls. 722) superou o decreto prisional do Juízo Federal de Guarulhos. Motivo pelo qual é de se dar o devido cumprimento ao alvará de soltura, salvo se por outro motivo o extraditando não estiver preso. [PPE 623. Relator (a): Min. CÁRMEN LÚCIA. Julgamento: 03/07/2012. Publicação: DJe-151 DIVULG 01/08/2012 PUBLIC 02/08/2012].

No caso supra, ficou consignado, no voto da relatora, que não havia elementos suficientes para manter a prisão preventiva do extraditando, “pelo não atendimento das requisições do STF pelo Estado requerente, e pelo longo prazo de determinação da prisão”. Três anos de segregação para, no final das contas, ser posto em liberdade; dispensam-se comentários. Mas três anos não foi tudo que o STF conseguiu:

Trata-se de pedido de prisão preventiva para extradição, formulado pelo Governo da Espanha, por via diplomática, do nacional espanhol Javier Anastácio de Espona, contra quem foi expedida ordem de detenção internacional por suposta prática de homicídio. Em 29.9.1989, o então relator, Min. Celso de Mello, decretou a prisão preventiva do referido estrangeiro (fl. 11). Posteriormente, em 18.3.2010, o Min. rel. Cezar Peluso determinou a expedição de ofício consultando o Governo requerente acerca de eventual interesse na manutenção do pedido (fl. 27). Mediante o Aviso n. 2118-J, de 23.9.2011, o Ministro de Estado da Justiça informa: "a referida indagação sobre persistência no interesse foi reiterada por diversas vezes ao Governo espanhol, não tendo havido resposta por parte deste" - (fl. 36). Em 10.10.2011, determinei a reiteração do Ofício n. 3.019/R para que, no prazo de 30 dias, o Governo requerente esclarecesse sobre a persistência no interesse de prosseguimento do feito, sob pena de negativa de seguimento. A Embaixada foi regularmente notificada em 8.11.2011, contudo, até a presente data, não apresentou resposta (fl. 46). Assim, em razão da manifesta falta de interesse do Governo requerente em relação ao presente pedido, nego seguimento ao feito (RI/STF, art. 21, § 1º). Revogo o decreto de prisão preventiva e determino o recolhimento do respectivo mandado. [PPE 62. Relator (a): Min. GILMAR MENDES. Julgamento: 27/03/2012. Publicação: DJe-065 DIVULG 29/03/2012 PUBLIC 30/03/2012].

Mais vinte anos de prisão (da decretação à revogação). Qual é o condenado por homicídio que permanece, no Brasil, preso por mais de vintes anos, diante de tantos obséquios conferidos pela LEP – Lei de Execuções Penais(Lei 7.210/84)? Combinando o art. 81 com o art. 84, parágrafo único, verifica-se que, a prisão do extraditando “perdurará até o final do julgamento do Supremo Tribunal Federal, não sendo admitidas a liberdade vigiada, a prisão domiciliar, nem a prisão-albergue”. Num período de completo abarrotamento do Poder Judiciário, verifica-se que a prisão pode durar por vários anos, sem que isso seja considerado desproporcional pelo Pretório Supremo – que, inclusive, reitera a necessidade da prisão, bem como a sua manutenção até o fim do julgamento, em seu próprio Regimento Interno (art. 208 c/c art. 213, RISTF[40]).

Ninguém consegue perceber a monstruosidade jurídica que é o ar. 81, Lei 6.815/80, ao enquadrar prisão como requisito de procedibilidade da extradição? Até o prazo máximo para a prisão cautelar de urgência é absurdamente elevado (90 dias – art. 82, EE). Aparentemente, a resposta é mesmo não. A situação é, também, de total desamparo dogmático. A doutrina deixou de lado o tema[41], até mesmo os grandes defensores da liberdade no Direito Penal (em sentido estrito, é claro, pois, se assim não fosse, a situação do extraditando seria notada), que repudiavam peremptoriamente a legitimidade das prisões preventivas compulsórias. NUCCI, um dos poucos a enfrentar o assunto, é um exemplo claro disso. Ao tratar da prisão cautelar do extraditando, assim dispôs:

É condição para que o STF se reúna e verifique se os requisitos estão presentes, deferindo, então, a extradição. Não teria mesmo sentido fazer com que os onze Ministros do Pretório Excelso se reunissem, votassem e decidissem uma causa, cujo agente criminoso está foragido, vale dizer, a decisão do STF nenhuma consequência prática geraria. Em nosso ponto de vista, cuida-se de prisão administrativa, embora deva ser decreta, à luz do novo texto constitucional (art. 5º, LXI, CF), por autoridade judiciária (e não mais pelo Ministro da Justiça), no caso o Ministro-relator do Supremo Tribunal Federal. Entretanto, está Corte vem denominando a prisão do extraditando como preventiva, muito embora seja automática, bastando ingressar o pedido de extradição, e não seja submetida aos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. (NUCCI, 2009, p. 420).

A feroz crítica do ilustre professor, assíduo combatente das prisões preventivas (cautelares, se preferir) compulsórias, desapareceu. Não por acaso, aqui, optou-se por fazer transcrições de excertos da obra deste autor, para se mostrar essa dualidade de suas conclusões e o desleixo com que a doutrina encara o tema, até as mais consagradas. Em relação aos argumentos de Nucci(2009),acerca da necessidade da automaticidade da prisão, data maximavenia, não podem ser escudados.

Dizer que “não teria mesmo sentido fazer com que os onze Ministros do Pretório Excelso se reunissem, votassem e reunissem uma causa, cujo agente criminoso está foragido, vale dizer, a decisão do STF nenhuma consequência prática geraria” é temerário, já que o mesmo argumento foi utilizado para defender a manutenção da prisão para recurso. Afinal de contas, qual seria a finalidade prática de se reunir Desembargadores de algum Tribunal de Justiça local, se, ao final das contas, a decisão não geraria consequências práticas nenhuma, se o réu (o Recorrente) se encontra foragido? O raciocínio é idêntico e não passa pelo filtro do Postulado da Proporcionalidade. Confirme-se.

De um lado, o princípio da liberdade. De outro, o princípio da cooperação internacional. No exame da Adequação, questionar-se-ia: a restrição da liberdade do extraditando é adequada para que se promova a extradição, aqui entendida como uma ramificação do princípio da cooperação internacional? Ainda que possa haver divergência, ao que tudo indica a relação de Razoabilidade (nos moldes propostos por SILVA e trabalhados, no limite do possível, anteriormente) entre extradição, na figura da cooperação internacional, e a necessidade da prisão cautelar compulsória, como hipótese de restrição ao direito de liberdade, é inexistente. Entrementes, caso se considere razoável essa relação meio-fim, é dizer, caso seja, de fato, adequada a prisão preventiva automática para que haja a extradição, passa-se, então, para o exame da Necessidade. Aqui, deve-se perguntar: dentre todos os meios disponíveis e igualmente eficazes para a realização do fim “extradição”, há algum menos invasivo do que a “prisão cautelar automática”? Desafia-se alguém a dizer que não há. O exame da proporcionalidade em sentido estrito não chega sequer a ser alcançado.

Baltazar Junior (2010), ao tratar do mesmo tema, também não demonstra maiores preocupações. Justifica a medida com os seguintes argumentos: 1) a extradição é medida compulsória que pressupõe a extradição (p. 194); 2) é compatível com a CF/88 e não se confunde com outras formas de prisão cautelar reguladas pelo CPP (p. 195); 3) presume-se que o extraditando esteja se evadindo da aplicação da lei (p. 195). Trata-se de mera explicação da medida, sem qualquer análise interna dela.

Aparentemente, poder-se-ia pensar que a prisão para extradição é requisito de ordem internacional e, portanto, o Brasil nada mais faz que segui-lo (não cabe discutir, aqui, a recepção dos diplomas internacionais pelo Brasil, bem como a validade de dispositivos que contrariem a Norma Normarum nacional). Mas essa premissa também seria falsa (o que se corrobora a tese da falta de Adequação ou, se preferir, da Necessidade). Verifique-se:

EXTRADIÇÃO. NOTA VERBAL DO REINO DA ESPANHA. DESISTÊNCIA DO PEDIDO DE EXTRADIÇÃO. PRESCRIÇÃO DA PENA DO EXTRADITANDO. PEDIDO DE DESISTÊNCIA HOMOLOGADO. EXPEDIÇÃO DO ALVARÁ DE SOLTURA. ARQUIVAMENTO DOS AUTOS. […] Solicitou, ainda, "providências no sentido de, se julgar cabível, determinar a prisão para fins de extradição do referido estrangeiro" (fl. 2). 2. O pedido foi instruído com documentos que noticiam ter sido o Extraditando condenado por "sentença transitada em julgado de 6 de junho de 2006 a (...) duas penas de 3 anos de prisão e duas penas de multa de 10 e 16 meses", pelo cometimento "de um delito contra o direito dos trabalhadores pelo artº. 312.2 segunda premissa do Código Penal e de um delito de prostituição pelo artº. 188.1 do mesmo Código" (fl. 6). Em razão daqueles fatos, o Juízo da Audiência Provincial de Valencia - Primeira Seção decretou, em 23.10.2006, a prisão para fins de execução do Extraditando, conforme documentos constantes dos autos (fls. 65-66 e 78-79 -traduzido). 3. Em 29.10.2009, decretei a prisão preventiva de JUAN MARTINEZ RAMON, nos termos do art. 82 da Lei n. 6.815/80, para fins de extradição. […]. 5. Em 12.1.2012, o Ministro de Estado da Justiça informou que "em 25 de outubro de 2012, a Embaixada da Espanha foi regularmente notificada acerca das exigências formuladas por essa Suprema Corte" (fl. 246). 6. Em 9.4.2012, o Ministro de Estado da Justiça comunicou "que o mandado de prisão, para fins de extradição, do nacional espanhol JUAN MARTINEZ RAMON foi cumprido positivamente no dia 26 de janeiro de 2012" (fl. 303). 7. Em 9.8.2012, o Ministro de Estado da Justiça encaminhou a "Nota Verbal nº 138/2012, regularmente apresentada pela Missão Diplomática da [Espanha], por meio da qual confirma a prescrição da pena imposta ao nacional espanhol JUAN MARTINEZ RAMON, bem como informa o cancelamento do pedido de extradição do nominado" (fl. 322). Este o teor da Nota Verbal espanhola, verbis: […]. 8. A Procuradoria-Geral da República manifestou-se "pela extinção do feito e arquivamento dos autos". Examinada a matéria posta à apreciação, DECIDO. 9. A última nota verbal encaminhada pelo Governo da Espanha tem como objeto a desistência do pedido de extradição, caso em que, na linha da jurisprudência sedimentada deste Supremo Tribunal, a homologação é irrecusável. […]. Ante o exposto, tendo o Estado requerente manifestado, expressamente, seu desinteresse na extradição e retirado o pedido antes formulado, homologo o pedido de desistência formulado, revogo o decreto de prisão preventiva expedido contra JUAN MARTINEZ RAMON e determino o arquivamento dos autos. […].[Ext 1179. Relator (a): Min. CÁRMEN LÚCIA. Julgamento: 11/09/2012. Publicação: DJe-185 DIVULG 19/09/2012 PUBLIC 20/09/2012][42].

Aqui, muitos pontos são dignos de destaque. Todavia, para que se mantenha a relação entre o julgado e o Postulado da Proporcionalidade, em seu subelemento Adequação (ou Necessidade, a depender do ponto de vista, frise-se), foque-se na Nota Verbal do Reino da Espanha supracitado: “[…] providências no sentido de, se julgar cabível, determinar a prisão para fins de extradição do referido estrangeiro”. A prisão é possível, mas se o Brasil “julgar cabível”. Não é um requisito indeclinável para que haja a extradição, bem como a Cooperação Internacional.

Diante disso tudo, o que se nota é que para aqueles que cometeram crimes marcados pela frieza e crueldade e que estão na quarta instância (aqueles que conseguem alcançar o STF) é garantido a presunção de inocência/não culpabilidade, com muito mais razão há de ser garantida para aquele que não possuem qualquer condenação sob suas costas. Note-se que, diante de simples fatos indicados por outro país[43], o Brasil já promove o cerceamento da liberdade daquele que, no final das contas, pode não ter feito nada (ou, ainda que tivesse, pode não representar qualquer risco social ou processual). Há um claro privilégio, por parte do STF, de veracidade das informações veiculadas por autoridades internacionais que pretendem obter a extradição de certo individuo, quando cotejadas (as informações) com aquelas de índole interna, é dizer, propaladas pelo próprio Poder Judiciário. A mesma presunção de veracidade não é verificada naquelas decisões de instâncias nacionais inferiores (juízes, TJs, TRFs, STJ etc) que, reiteradamente confirmam a culpabilidade daquele sujeito que insiste no seu direito de recorrer. E não há problema que assim seja, desde que o recebimento do pedido de extradição não redunde na segregação compulsória de individuo, se assim não for necessário, tal como ocorre com aqueles que exercem o seu direito de recorrer em liberdade.

Apesar de alguns defenderem que o STF abraça a proporcionalidade (em letra minúscula mesmo) nos seus julgados, certo é que isso só ocorre quando é conveniente. Repudia, portanto, a natureza de Postulado da Proporcionalidade, que rejeita peremptoriamente o seu manejo apenas quando conveniente, impondo sua aplicação diante de qualquer colisão de direitos fundamenteis. De igual modo, afasta a sua origem/fundamentação, ligada logicamente ao Direito, à estrutura dos Princípios, ao Estado de Direito ou, ainda, ao Devido Processo Legal Substancial (como prefere a Suprema Corte). Qualquer um desses fundamentos é o bastante para se aplicar incondicionalmente o Postulado da Proporcionalidade. Infelizmente, esse entendimento não é trilhado pelo STF e, em 25.09.2012, outra vítima foi feita por um julgamento inconstitucional do STF:

[…] O impetrante/paciente narra, inicialmente, que em 17/11/2010, o Ministro de Estado da Justiça encaminhou a este Tribunal pedido de prisão preventiva para extradição formulado pelo Governo da Itália em seu desfavor. Diz, em seguida, que, em 22/11/2010, a Ministra Cármen Lúcia decretou a custódia cautelar, sendo o mandado cumprido em 30/11/2010. A Ministra Relatora estabeleceu, ainda, o prazo de 40 dias para que o estado requerente apresentasse a documentação formalizadora do pedido de extradição, o que, sustenta o impetrante/paciente, não ocorreu até a data desta impetração. É contra essa prisão que se insurge o impetrante. Alega, em síntese, que, em função do não cumprimento da determinação de entrega dos documentos necessários à formalização do pleito extradicional e exaurido o prazo estabelecido para tanto, mister se faz a extinção do procedimento distribuído como PPE 654/IT e, por conseguinte, a expedição do competente alvará de soltura em seu favor. Aduz, também, que, não obstante o esforço da defesa e das inúmeras súplicas de revogação de sua prisão, a Ministra Relatora manteve sua custódia, que se estende por 23 meses. […]. Requer, ao final, liminarmente, a expedição de alvará de soltura em seu favor e, alternativamente, a concessão de prisão domiciliar até o julgamento do mérito desta impetração. É o relatório suficiente. Decido. Bem examinados os autos, entendo que, no caso sob exame, não há qualquer ato praticado pelas autoridades apontadas como coatoras, que configure ilegalidade flagrante ou abuso de poder, pressupostos que autorizariam o conhecimento do habeas corpus. […] o impetrante/paciente formulou pedido de refúgio, o que suspende o curso do procedimento extradicional, mas não implica na revogação da prisão preventiva ou na concessão de prisão domiciliar. […]. Não há, nesses atos, nenhuma ilegalidade ou abuso de poder.[…].[HC 115253 RJ. Relator (a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Julgamento: 25/09/2012. Publicação: DJe-192 DIVULG 28/09/2012 PUBLIC 01/10/2012].

Nesta mais recente teratologia extradicional, percebe-se que a custódia cautelar de 23 (vinte e três) meses não foi o suficiente para o reconhecimento da ilegalidade da prisão, mesmo sem a formalização, por parte do Estado requerente, do pedido de extradição. Trata-se de um descaso duplo: do Brasil, que mantem a prisão sem analisar a sua necessidade; da Itália, que, não obstante requere a extradição, não encaminha os documentos aptos a formalizar o pedido. Essa história se repete (como se pôde ver nos casos anteriormente citados), aparentemente sem reação de alteração. Dentre as várias possibilidades (já trabalhadas) para se consertar esse entendimento, a simples obediência ao Postulado da Proporcionalidade bastaria (como já se mostrou); perceber-se-ia que o art. 81 do Estatuto do Estrangeiro não foi recepcionado pela Magna Carta de 1988, por ser flagrantemente desproporcional a supressão absoluta do Princípio da Liberdade e do Devido Processo Legal[44] em prol do Princípio da Cooperação Internacional.

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Sobre o autor
Gabriel Andrade Figueiredo

Estudante de Direito do Centro Universitário Jorge Amado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Gabriel Andrade. Proporcionalidade e prisão preventiva compulsória: o STF e a não recepção do art. 81 da Lei 6.815/80. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3639, 18 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24736. Acesso em: 22 dez. 2024.

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