1 – Introdução à situação-problema
Não é de hoje a discussão, acalorada, diga-se, sobre como os órgãos e entidades da Administração Pública devem proceder para contratar para os servidores de seu quadro de pessoal, cursos de graduação, de pós-graduação, palestras, treinamentos específicos, conferencistas e instrutores, conciliando as normas legais para contratação de serviços (CF, art. 37, XXI e Lei 8.666/93) e as peculiaridades inerentes a essa espécie de prestação de serviço. As dificuldades são inúmeras, e diversos são os fatores que contribuem para aumentar a insegurança no momento de celebrar tais contratos.
O primeiro ponto diz respeito à obrigação de realizar licitação. Como o dever de licitar é imperativo e fazê-lo pelo critério de menor preço é regra geral, o problema advém da imensa dificuldade (adiante veremos que na maioria dos casos haverá impossibilidade) de se estabelecer critérios de aferição idôneos que apontem com segurança a proposta efetivamente mais vantajosa, o que eleva sobremaneira o risco de insucesso na contratação. A experiência tem demonstrado que contratos dessa natureza, quando licitados, não raro, anotam má prestação de serviço e não atendimento aos objetivos traçados.
Por lado outro, os contratos celebrados com fundamento nas exceções ao dever de licitar (dispensa e inexigibilidade de licitação) geram enorme desconfiança quando submetidos ao controle de legalidade. É que os procedimentos de contratação sem licitação costumam fornecer aos órgãos de controle rica fonte de irregularidades e falhas processuais. Isso acarreta maior rigor na investigação por parte desses órgãos. Esse rigor provoca certo melindre, uma espécie de “temor geral” nos setores responsáveis em instruir os processos de dispensa e inexigibilidade de licitação, que acabam sendo também mais rigorosos do que o necessário, vendo embaraço onde ele não existe.
Outro fator que acaba soando negativo é a existência de sortida variedade de profissionais e empresas para o segmento de ensino e capacitação. Provocado pelo “temor geral” acima referido, o fato de haver, no mercado, grande variação de soluções para uma mesma demanda de treinamento, torna nebuloso o correto entendimento sobre questões como singularidade e notória especialização. Assim, uma característica do segmento que deveria ser considerado salutar e proveitoso, no atual cenário, termina por dificultar a instrução dos processos.
A falta de orientação adequada aos servidores envolvidos no processo de contratação, que costumam não possuir conhecimentos básicos sobre as normas que regem as contratações governamentais, como também, o distanciamento entre os setores responsáveis pelas contratações e os órgãos de assessoramento, aumenta ainda mais o abismo existente na maioria dos órgãos e entidades públicas entre os setores de capacitação de pessoal e aqueles ligados diretamente às contratações (setores responsáveis pela elaboração de editais e redação de contratos, assessorias e procuradorias jurídicas). A falta de comunicação entre esses segmentos trava a marcha processual, adiando a providência, além de criar um ambiente organizacional desfavorável à solução dos impasses surgidos no curso de sua instrução. Não é incomum os processos serem desenvolvidos nos departamentos de capacitação (esse desenvolvimento sempre consome precioso tempo) e, ao chegar às mãos da Assessoria Jurídica ou Controle Interno, ser contra indicada ou mesmo indeferida a contratação, retornando o processo para reiniciar a instrução sob novas bases.
Em que pese haver na doutrina alguns excelentes trabalhos de grandes mestres do Direito Administrativo tratando do assunto em apreço, procuraremos, neste trabalho, a partir de uma visão mais pragmática, lançar um pouco mais de luz sobre esse intrincado tema, enfrentando as questões mais delicadas que o envolvem, a fim de ofertar às escolas de governo e setores responsáveis pela capacitação e desenvolvimento de pessoal, bem como às assessorias jurídicas, novos parâmetros para melhor realizar seus respectivos processos de contratação de treinamentos, utilizando de forma segura os mecanismos que a lei põe à disposição do agente público.
2 – A importância e o papel da capacitação continuada na organização
Nos dias de hoje a competição entre as empresas e a evolução tecnológica predeterminam, a cada dia, novos rumos nas organizações. Fatores como qualidade e produtividade passam a ser perseguidos com maior afinco pelas corporações de maneira que possam acompanhar o ritmo dessas mudanças. É unânime entre os estudiosos da Ciência da Administração que uma entidade, seja ela pública ou privada, para alcançar resultados cada vez mais positivos, necessita dar atenção ao seu corpo de funcionários. Tratá-los como verdadeiro capital da empresa; capital que precisa ser preservado e mantido atualizado em relação ao seu “valor patrimonial”. Afinal, qualquer instituição é feita de pessoas; por mais mecanizada ou automatizada ela seja, sempre serão as pessoas que farão a diferença no alcance dos objetivos institucionais. Como bem assevera Ulrich[1],
“O diferencial competitivo para as empresas se constitui de seu capital humano e intelectual, uma vez que o capital humano é a fonte de criação e de inovação. As pessoas compõem a riqueza e o poder das organizações. As máquinas trabalham, mas não inventam”...Como o ser humano é o principal insumo responsável pela competência e sucesso das organizações, torna-se necessário entender como extrair das pessoas seus mais altos níveis de criatividade, inovação, participação e engajamento.
Assim, manter o corpo de funcionários motivado e atualizado com novas tecnologias, novas metodologias e, mais ainda, mantê-los agregados à organização é meio hábil para que esta se mantenha em um ciclo de melhoria contínua, atraindo, via de consequência, melhores resultados. Dentro desse perfil cultural, a medida que mais agrega valor ao capital humano, sem sombra de dúvida, é a capacitação. Por meio dela, a entidade passa a se servir de profissionais mais qualificados, aptos a melhor desempenharem seus papéis, proporcionando ganho de produtividade. Ademais disso, um bom plano de capacitação também funciona como elemento motivador. O profissional submetido à capacitação continuada se sente mais bem cuidado pela instituição que serve; passa a se enxergar peça relevante no processo produtivo na medida em que é tratado como investimento daquela. Se sente responsável por esse investimento e em troca o devolve com seus maiores esforços e com entusiasmo. Profissionais com visão moderna já avaliam o investimento em capacitação feito pelas empresas como um diferencial positivo no momento de optar por uma vaga no mercado de trabalho.
No serviço público não poderia ser diferente, pois a única distinção que se faz em relação às empresas privadas é que estas visam lucro. O avanço dos meios de comunicação, o acesso à informação, o aumento da consciência do cidadão em relação aos seus direitos, bem como o papel que deve desempenhar o gestor público, entre outros fatores, passou a exigir das entidades públicas maior comprometimento com os processos de gestão, pois cumprem funções que interessam a toda sociedade. Ora, nunca se disse que órgão público não precisa ser moderno e eficiente só porque não gera lucro. Ao contrário, é dever do Estado garantir à coletividade cada vez melhores serviços.
Nesse contexto, a capacitação dos servidores representa, tal qual nas empresas privadas, elemento essencial ao alcance desse objetivo. E, penso, no serviço público, essa necessidade é mais gritante, não só pela importância acima referida, mas também pelo fato de que o ritmo da rotatividade profissional é muito inferior do que o anotado nas empresas privadas. De um modo geral, a maioria das carreiras públicas, prende o servidor por décadas, e em boa parte dos casos, vai até a aposentadoria. Por isso, um quadro de servidores que provavelmente receberá pouca oxigenação, precisa estar submetido a programas de treinamento contínuo a fim de que ele seja dotado de condições que lhe permitam, de um lado, acompanhar a evolução da atividade estatal, e do outro, manter-se motivado apesar dos vários anos a serviço do órgão.
3 – Licitação: regra geral e exceções
Dito isto, cada órgão ou entidade pertencente ao Poder Público precisa dotar-se de meios que lhes permita cumprir essa missão, promovendo ações de capacitação interna em caráter continuado, criando programas de qualificação profissional entre outras medidas. Para isso, por óbvio, deve se servir da gama de serviços da área de ensino que o mercado oferece. Todavia, não será suficiente apenas planejar de forma coerente as ações de capacitação. Será igualmente importante selecionar o prestador de serviços que atenda aos anseios da Administração.
Conforme visto no capítulo introdutório, na Administração Pública, essa não é uma tarefa das mais fáceis, pois ao contrário dos particulares, o Administrador Público não possui a mesma liberdade de escolha quando necessita realizar compras, contratar serviços e obras ou alienar bens. Para fazê-lo, necessita obedecer a um rigoroso procedimento preliminar preestabelecido na forma da lei. Isto porquanto, na eventualidade de sua escolha vir a ser equivocada, os prejuízos da má gestão serão sentidos por toda a sociedade. Daí porque, a lei impõe a partir de quais critérios serão escolhidos os “parceiros” mais adequados para Administração Pública. Tal comando encontra seu fundamento na Carta Magna de 1988. O art. 37, XXI da Constituição Federal fixa o que chamamos de Princípio do Dever Geral de Licitar:
Art. 37 – Omissis
...
XXXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Trata-se de regramento geral, mas que, conforme o próprio dispositivo indica no início da sua redação, admite exceções.
Concordando, pois, com a existência de excepcionalidades casuísticas, o Constituinte atribuiu competência para que norma infraconstitucional pudesse discorrer sobre as possíveis hipóteses nas quais seria aceitável o afastamento do dever de licitar. Vez ou outra uma determinada situação de fato poderá indicar que a realização da licitação pública poderá não satisfazer de forma adequada justamente o bem jurídico que visa tutelar, que é o interesse público. Assim, são previstas na Lei Geral das Licitações e Contratos Administrativos, Lei Federal nº. 8.666/93, em seus artigos 24 e 25 as situações em que a Administração poderá deixar de promover o certame licitatório para a contratação de obras, serviços e para as compras, celebrando o contrato de seu interesse por via de adjudicação direta da pessoa do contratado. No primeiro dispositivo, temos os casos de dispensa e, no segundo, o que interessa diretamente a este estudo, os de inexigibilidade de licitação.[2]
Ao contrário das situações de dispensa, em que é possível desenvolver o procedimento licitatório, há casos nos quais, mesmo que se pretendesse realizá-lo, este seria inviável. Essas situações são caracterizadas pela norma licitatória como licitação inexigível. A inexigibilidade de licitação se configura num cenário em que a competição se revela impossível de ser realizada, sendo esta sua marca nodal.
A impossibilidade de submeter o objeto à disputa licitatória não é decorrente de fato externo como nos casos de dispensa. Na contratação emergencial (art. 24, IV), por exemplo, o objeto pode ser perfeitamente licitável, sendo o condutor do afastamento da licitação a situação emergencial (fato externo) e a necessidade de abreviar a providência a fim de evitar-se dano relevante para a Administração; na dispensa para contratação de instituição sem fins lucrativos (art. 24, XIII), o afastamento da licitação deriva da natureza da pessoa do contratado, e não do objeto do contrato, que também poderia ser submetido à disputa. Ao contrário disso, a inexigibilidade surge sempre a partir do específico objeto. O objeto, em si, é ilicitável. Nos casos de dispensa, a autoridade competente pode optar pelo afastamento; na inexigibilidade, não há essa opção.
É verdade que muitas vezes, o objeto é determinado em razão de sua finalidade ou da natureza do negócio[3], e, nesse compasso, um objeto, em princípio, licitável, pode assumir características que venham a inviabilizar a licitação. A construção de um museu, por exemplo, que em princípio não guarda peculiaridade alguma, podendo ter seu projeto licitado normalmente, poderá ganhar contornos especiais se o Município que pretende construí-lo tiver por escopo torná-lo capaz de dar visibilidade e prestígio internacional ou que ele se transforme no novo símbolo da cidade, de forma a incrementar o turismo na cidade. Essa finalidade impõe uma característica que torna o projeto especial, atribuindo-lhe uma marca singular. Assim, a natureza do negócio tornou o objeto — projeto arquitetônico para construção de um museu — peculiar e, consequentemente, ilicitável por impossibilidade de comparação objetiva de propostas. A inviabilidade, portanto, é própria do objeto; em qualquer caso nasce com o objeto a ser contratado. Essa é a lapidar lição de Celso Antônio Bandeira de Mello[4], in verbis:
“São licitáveis unicamente objetos que possam ser fornecidos por mais de uma pessoa, uma vez que a licitação supõe disputa, concorrência, ao menos potencial, entre ofertantes... Só se licita bens homogêneos, intercambiáveis, equivalentes. Não se licitam coisas desiguais. Cumpre que sejam confrontáveis as características do que se pretende e que quaisquer dos objetos em certame possam atender ao que a Administração almeja”.
Considerando, pois, que a inviabilidade de licitação decorre das características do próprio objeto ou do negócio (o que dá no mesmo), seu reconhecimento não será fruto de decisão discricionária do agente competente, como ocorre nos casos de dispensa de licitação. O senso de oportunidade e conveniência da autoridade incidirá apenas na decisão de celebrar ou não o contrato. Caso decida pela contratação, outra alternativa não lhe restará senão reconhecer ser impossível submeter a oportunidade de contratação à competição.
4 – A inexigibilidade de licitação fundada no art. 25, II: requisitos e traços marcantes
Importante novamente frisar que é a impossibilidade de submeter à competição que afasta o dever geral de licitar. Essa impossibilidade sempre decorre do objeto, seja porque único, como nos casos de produto exclusivo[5], seja porque, mesmo não sendo exclusivo, se mostra inconciliável com a ideia de comparação objetiva de propostas. E é essa última em que justamente se amolda a hipótese ora em exame. Vejamos o que diz a legislação:
Art. 25 – É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
...
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
Art. 13 – Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:
I – estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou executivos;
II – pareceres, perícias e avaliações em geral;
III – assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;
IV – fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços;
V – patrocínio de causas judiciais ou administrativas;
VI – treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;
VII – restauração de obra de arte ou bem de valor histórico.
VIII – (Vetado)
Como se vê, o art. 25, II da Lei Geral de Licitações reconhece que determinados serviços, os “técnicos especializados”, quando “singulares”, são incomparáveis entre si, ainda que haja pluralidade de soluções e/ou executores. O artigo 13 acima transcrito oferece uma lista de quais serviços são tratados como sendo “técnicos especializados”. O elemento central dessa hipótese de afastamento da licitação é: possível presença de vários executores aptos, mas inviável a comparação objetiva de suas respectivas propostas.[6]
A singularidade é o elemento que torna o serviço peculiar, especial. Não será suficiente que o serviço esteja descrito no art. 13, pois, de per si, não o faz especial (singular). Deve haver, na execução ou em suas características intrínsecas, algo que o torne inusitado. Não se pode confundir singularidade com exclusividade, ineditismo ou mesmo raridade. Se fosse único ou inédito, seria caso de inexigibilidade por ausência de contendores, fulcrada no caput do art. 25, e não pela natureza singular do serviço. O fato de o objeto ser prestado por poucos profissionais ou empresas não impede que estes disputem o objeto. Logo, o fato de haver muitos ou poucos profissionais aptos a executarem o serviço é indiferente para a configuração da singularidade. A inviabilidade de competição decorre, invariavelmente, do objeto.
A despeito de haver opiniões em sentido contrário[7], outro conceito que entendemos equivocado é a de que a singularidade pode decorrer da notória especialização de seu executor. Para essa corrente doutrinária, a notória especialização envolveria uma singularidade subjetiva. Todavia, se imaginarmos que a inviabilidade pode decorrer da pessoa do contratado, teríamos que admitir a absurda ideia de que um mesmo objeto seria, a um só tempo, singular e usual, conforme a pessoa que o executar. Ora, o serviço é ou não é singular. Um projeto arquitetônico para casas populares, desprovido de qualquer complexidade ou vanguardismo técnico, não pode ser classificado como singular apenas porque sua contratação recaiu no escritório de Oscar Niemeyer. O projeto, em si, continuaria usual. Jacoby[8], de forma bastante arguta, salienta que o processo de contratação de obras e serviços inicia-se, necessariamente, pela definição do objeto, o que envolve a elaboração do projeto básico e/ou executivo, e não pela escolha do executor. Acrescenta que “quando os órgãos de controle iniciam a análise pelas características do objeto, percebe-se quão supérfluas foram as características que tornaram tão singular o objeto, a ponto de inviabilizar a competição.”
Enfim, a caracterização da singularidade do objeto dependerá exclusivamente do exame de seu núcleo, isto é, daquele elemento central que materializa a própria execução. Se este se mostrar especial, será considerado como de natureza singular.
Todavia, para configuração da inviabilidade de competição, não bastará que a contratação se amolde em um dos serviços arrolados no art. 13 e que o possa ser caracterizado como singular. Além disso, será imprescindível que o mesmo seja prestado por profissional ou empresa que detenha notória especialização. Somente na presença desses três requisitos, e nessa ordem, é que estará configurada a inviabilidade de competição. A doutrina e a jurisprudência não destoam desse enunciado[9].