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Contratação de serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal na Administração Pública

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9 – Impossibilidade de utilização de dispensa em substituição à inexigibilidade de licitação

Nos processos de contratação direta, não é incomum a ocorrência de casos em que uma mesma demanda de interesse público possa vir a ser atendida por meio de mais de uma hipótese legal de afastamento do certame obrigatório. Se há um vazamento em uma parede de um banheiro, seu reparo, sem dúvida, é um caso emergencial (art. 24, IV), pois a considerar que o vazamento aguarde a deflagração e conclusão de um torneio licitatório, os prejuízos decorrentes podem se tornar insuportáveis. Mas esse reparo pode não ser tão dispendioso e seu custo permanecer no limite da dispensa de licitação em razão do valor (art. 24, I). A contratação do reparo poderia ser formalizada por qualquer um dos dois fundamentos. Salientamos acima que um curso aberto a terceiros é inexigível por não haver como ser cotejado com outro, por tratar-se de objeto único, mas também não se afasta a idéia de que pode tratar-se de um curso cuja intervenção do instrutor seja determinante para o alcance dos objetivos e ser apresentado por profissional notório especialista. A inscrição do servidor poderia ser amparada tanto no art. 25, caput como no art. 25, II c/c art. 13, VI, todos, da Lei 8.666/93. A despeito disso, não será possível que um caso inexigibilidade também possa ser enquadrada como dispensa de licitação. Uma não pode ser alternativa à outra. Em um exemplo prático, não é correto contratar a inscrição de um servidor em um curso aberto na dispensa de licitação em razão do baixo valor (art. 24, II). A razão é simples.

Já dissemos que o traço distintivo entre os institutos da dispensa e da inexigibilidade de licitação reside no fato de que, no primeiro, a licitação é uma opção, ou seja, é perfeitamente viável; no segundo, ela é impossível. Por isso é correto afirmar que, nos casos de dispensa, a licitação chega a ser instaurada, para, caso a autoridade assim decida, ser afastada (dispensada) por decisão de mérito administrativo. Na inexigibilidade, a licitação sequer é instaurada, pois impossível. Portanto, um objeto cuja licitação é inexigível não pode ser contratado, alternativamente, por dispensa de licitação posto que esta admite a licitação. Ora, ou a licitação é impossível, ou é possível. Ambos, jamais! Veja-se o perspicaz apontamento de Celso Antônio Bandeira de Mello[17], ao conceituar a inexigibilidade de licitação, verbis:

“Segue-se que há inviabilidade lógica deste certame, por falta de seus ‘pressupostos lógicos’, em duas hipóteses: a) quando o objeto pretendido é singular, sem equivalente perfeito...b) quando só há um ofertante. Em rigor, nos dois casos cogitados, não haveria como falar em ‘dispensa’ de licitação, pois, só se pode dispensar alguém de um dever possível. Ora, em ambas as situações descritas a licitação seria inconcebível.” Celso Antônio Bandeira de Mello, p.498.

Nada obstante, é fato corriqueiro nos órgãos públicos a inscrição de servidores nos cursos abertos com fundamento no art. 24, II, isto é, na dispensa de licitação em razão do valor, o que vem a ser completamente equivocado, além de atrair alguns inconvenientes operacionais.

Uma das irregularidades mais encontradas pelo controle externo é a dispensa de licitação com a caracterização do chamado “fracionamento ilegal de despesa”, no qual o órgão realiza diversas contratações, deixando de por em prática a licitação que seria correspondente ao conjunto de contratos que poderiam ser contratados concomitantemente. Como os limites financeiros da dispensa do art. 24, I e II são de observância rigorosa, ao sustentar a inscrição nesse fundamento legal, o órgão fica impedido de formalizar despesa superior ao limite legal, impedindo, o mais das vezes, a capacitação do número de servidores que o órgão necessita qualificar.

Em muitos casos esse procedimento é desenvolvido apenas e tão somente em virtude da menor burocracia exigida para esse caso de dispensa em relação aos demais casos de contratação direta, sobretudo, os de inexigibilidade. De um modo geral, as dispensa de licitação para contratos de pequena monta, encontram caminhos mais facilitados nas rotinas administrativas, o que não ocorre para o restante dos casos de contratação direta. A principal delas é a isenção da obrigação de publicação do ato de ratificação na imprensa oficial, conforme redação do art. 26, da L. 8.666/93[18], que além de muito dispendiosa, poderia se tornar um entrave na contratação.

A respeito desse aspecto, o Tribunal de Contas da União, ao apreciar representação[19] interposta pela Secretaria de Material, Patrimônio e Comunicação Administrativa do TCU- SEMAT, contestando orientação da Secretaria de Controle Interno do TCU - SECOI, ambos os setores internos da própria Corte de Contas, firmou entendimento no sentido de que não faria sentido que os contratos celebrados com dispensa de licitação ou inexigibilidade que permanecessem abaixo dos limites financeiros da dispensa dos incisos I e II do art. 24, tivessem sua eficácia condicionada a um procedimento cujo valor seria incompatível com a despesa em si, decidindo da seguinte forma:

(...) 9.2. determinar à Secretaria de Controle Interno do TCU que reformule o “SECOI Comunica nº 06/2005”, dando-lhe a seguinte redação: “a eficácia dos atos de dispensa e inexigibilidade de licitação a que se refere o art. 26 da Lei 8.666/93 (art. 24, incisos III a XXIV, e art. 25 da Lei 8.666/93), está condicionada a sua publicação na imprensa oficial, salvo se, em observância ao princípio da economicidade, os valores contratados estiverem dentro dos limites fixados nos arts. 24, I e II, da Lei 8.666/93”.

Assim, todo contrato amparado em um dos dispositivos legais que autorizam o afastamento do dever geral de licitar cujo valor total não ultrapassar os limites do art. 24, I e II ficam desobrigados da publicação de que trata o art. 26 da mesma Lei. Via de consequência, não se deve concluir, do julgado acima, que o TCU reconhece a possibilidade do duplo enquadramento, como muitos ainda pensam, ou seja, sempre que a despesa ficar abaixo dos limites financeiros ditados no art. 24, I e II, neles poder-se-ia fundamentar a contratação, qualquer que fosse o pressuposto da contratação direta. Errado. O que é inexigível deve continuar sendo tratado como tal; a contratação emergencial, como emergencial deve ser instruída, e assim por diante, não importando o valor do contrato. Nesse diapasão, colhemos trecho da Declaração de Voto no mesmo precedente da lavra do Min. Augusto Scherman Cavalcanti que põe uma pá de cal sobre o assunto, verbis:

“Assim, ante as mesmas razões, concordo com o nobre Relator em privilegiar a economicidade também nos casos de dispensa previstos nos incisos de III a XXIV e de inexigibilidade previstos no art. 25 da Lei 8.666/93, cujos custos se encontrem dentro dos limites prescritos nos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei. Penso, contudo, deva restar claro que, nas hipóteses de dispensa (incisos III a XXIV do art. 24) e de inexigibilidade (art. 25) de baixo valor, embora a eficácia do ato, em face do princípio da economicidade, não fique vinculada à publicação dele na imprensa oficial, os demais requisitos do art. 26 e de seu parágrafo único (como a apresentação de justificativas e o encaminhamento do ato à autoridade superior no prazo indicado para ratificação), bem como os requisitos específicos que caracterizam as aludidas espécies de dispensa e a inexigibilidade, devem ser mantidos e criteriosamente observados.”

Para os serviços de que se cuida o presente trabalho, não se deve utilizar a dispensa do art. 24, I e II para contratar inscrição de servidores em cursos abertos. A acomodação legal correta é o art. 25, caput. Esse posicionamento poderá suscitar uma reflexão sob o prisma da aparente fuga ao dever de licitar, ou violação ao princípio da moralidade, pois, adotando a tese ora defendida, um órgão poderá inscrever em um único curso aberto número ilimitado de servidores, o que é verdade. Mas esse não seria o argumento válido para obstar a inscrição abrigada no art. 25, caput, mas sim o exame de razoabilidade do ato da autoridade competente, que deverá vir balizada por análise de oportunidade e conveniência em encaminhar muitos servidores a um curso aberto, diante da alternativa de realizar treinamento fechado, inclusive sob o especial apreço ao impacto financeiro de ambas as possibilidades. Muito embora seja regra excepcional, os dispositivos que permitem a não licitação foram inseridos no ordenamento jurídico para serem utilizados sem receio do agente público, apenas com os devidos cuidados. Com essa inclinação, veja-se o teor da lição de Jacoby[20] em excelente trabalho disponibilizado na rede mundial de computadores:

“Não é vedado contratar notórios especialistas: ao contrário, em várias é a única hipótese em que o interesse público poderá ser efetivamente satisfeito, residindo nesse ponto angular a força imanente do comando legal, justificadora da exceção ao princípio constitucional da licitação.”

Do mesmo modo, se o objeto apresentar as características que o torne singular, não será viável, também sob o aspecto lógico, a utilização do art. 24, VIII ou XIII[21] para contratação dos serviços aqui estudados, ainda que a pessoa do contratado seja, no primeiro caso, órgão ou entidade pertencente à Administração Pública, ou, no segundo uma instituição sem fins lucrativos com objetivo social voltado ao ensino ou pesquisa, porquanto ser ilógico admitir que algo possa ser, a um só tempo, singular ou exclusivo e licitável.


10 – Conclusão

Com base no que foi aqui exposto, podemos sintetizar a contratação de serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, nas mais variadas formas, no âmbito dos órgãos e entidades da Administração Pública, com as seguintes conclusões:

a) a inexigibilidade fundada no art. 25, II da Lei 8.666/93 depende da conjugação de três requisitos, a saber: ser um dos serviços arrolados no art. 13 da mesma Lei; possuir características que o torne singular; e ser prestado por notório especialista;

b)  os serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal encontram-se discriminados no inciso VI, do art. 13;

c)  nos serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, a determinação da singularidade está relacionada ao núcleo do seu objeto, que é a aula;

d) como a aula é uma atividade humana (não mecânica) e os variados docentes são incomparáveis entre si, sempre que a intervenção destes for determinante para a obtenção dos resultados pretendidos, o serviço será singular;

e) tais serviços são, em regra, singulares, salvo aqueles cujo método supere o docente na obtenção dos resultados esperados;

f)  na contratação de cursos, a escolha da pessoa responsável por ministrá-los é ato discricionário e exclusivo da autoridade competente, que deverá apontar as razões que o fizeram inclinar-se por este ou aquele profissional ou empresa;

g) cursos abertos a terceiros são sempre ilicitáveis pelo fato de ser objeto único que se esgota com a execução, devendo ser contratados com base no art. 25, caput da Lei Geral de Licitações;

h) não é viável contratar por dispensa de licitação um objeto que, por sua natureza, seja exclusivo ou singular, ainda que aparentemente presentes os requisitos da hipótese de dispensa;

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Acrescento, por fim, que o presente trabalho foi desenvolvido a partir da experiência que vivencio diuturnamente, tanto na qualidade de palestrante e docente em cursos abertos e na modalidade in company, como na de servidor público incumbido das funções ligadas às contratações governamentais. Como testemunha das enormes dificuldades encontradas pelos servidores que exercem, em suas respectivas unidades administrativas, a função de planejar e executar as ações de capacitação de seu quadro de pessoal vi-me no dever de debruçar-me nestas laudas as quais, espero, ao menos ser capaz acrescentar elementos positivos ao debate e à evolução da matéria.

Essa foi a visão que me serviu de norte.


Notas

[1] ULRICH, Dave. Os campeões de Recursos Humanos: Inovando para obter os melhores resultados. 6. ed. São Paulo: Futura, 1998

[2] A doutrina reconhece ainda uma terceira modalidade de afastamento do dever geral de licitar, fulcrada no art. 17, da Lei, chamada de licitação dispensada. Deixamos de fazer referência a essa por tratar-se de desobrigação de licitação para as alienações de imóveis.

[3] Nesse sentido, FIGUEIREDO, Lucia Valle e FERRAZ, Sérgio, Dispensa e Inexigibilidade de Licitação. São Paulo: Malheiros, 1994, p.102. Vera Lúcia Machado D´Avila, in DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (org.) Temas Polêmicos sobre Licitações e Contratos. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 127 admite que a inexigibilidade pode também advir da pessoa do contratado, com o que discordamos.

[4] Curso de Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 497.

[5] Sobre o tema, vide nosso Contratação por inexigibilidade de licitação com fornecedor ou prestador de serviço exclusivo. Breve análise do art. 25, I da Lei 8.666/93. RJML de Licitações e Contratos, n.26, p. 3 usque 12

[6]Quando a doutrina fala em impossibilidade de comparação objetiva entre as propostas, está se referindo, não ao preço, mas ao objeto material da proposta. O preço, entre os vários possíveis executores até pode (deve) ser colocado lado a lado para fins de comparação e estipulação de faixa de mercado, no intuito de justificar a contratação sob o aspecto da economicidade; mas, como o objeto é singular, não há um igual ao outro. Por isso não comporta comparação.

[7] Reconheço que parte da doutrina entende que a singularidade pode estar vinculada à notória especialização. Nesse sentido: MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro. 19ª.ed. Malheiros. São Paulo, 1994, p. 258; MUKAI, Toshio, A natureza singular na contratação por notória especialização, RJML de Licitações e Contratos, n.26, p. 13/15

[8] JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses, Contratação Direta sem Licitação. 9ª ed. Fórum. Belo Horizonte, 2011, p.604.

[9] Vide: TCU, Súmula 252; JUSTEN FILHO, Marçal, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14ª. ed. Dialética. São Paulo, 2010, p. 367; MELLO, Celso Antônio bandeira de, Op. Cit., p.508; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. 5ª. ed., Atlas. São Paulo, 1995, p. 273; CARVALHO FILHO, José dos Santos. 11ª ed. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2004, p. 226; JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses, Op. Cit. p. 605; MUKAI, Toshio, Op. Cit.

[10] CHIAVENATO, Idalberto, Gestão de Pessoas. 3ª. ed. Elsevier. Rio de Janeiro, 2008, p.402. TEIXEIRA, Gilberto Explica que a expressão capacitação tornou-se uma espécie de jargão, pois no atual paradigma de ensino e aprendizagem, “capacitar” o outro é questionável. (O processo-ensino aprendizagem e o papel do professor como gestor d  pensar. disponível em www.serprofessoruniversitario.pro.br/modulos).

[11] Disponível em www.kumon.com.br

[12] Op. Cit., p.371.

[13] Manual de Direito Administrativo. 11ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 36

[14] Op. Cit., p. 507.

Nos referimos a “empresa de organização de eventos” sem deixar de reconhecer que muitas delas são especializadas em eventos de ensino e capacitação, tais como seminários, congressos, work shops, cursos abertos a terceiros e in company. De qualquer forma, não são responsáveis por produção técnica ou científica, nem tampouco executam serviços de natureza singular.

[16] Sobre credenciamento, vide o excelente artigo de DALLARI, Adilson Abreu, Credenciamento. RDE n. 05/2006, Salvador, BA

[17] Op. Cit., p. 498.

[18] Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2o e 4o do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8º desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos.

[19] TCU, Acórdão 1.336/2006-Plenário, Rel. Min. Ubiratan Aguiar.

[20] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. A contratação direta por notória especialização.Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 38, 1º jan. 2000. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/428. Acesso em:16 abr. 2013.

[21] Art. 24 – É dispensável a licitação:(...)VIII – para aquisição por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde que o preço contratado seja compatível com o mercado; (...) XIII – na contratação de instituição brasileira incumbida regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional, ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos.

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Sobre o autor
Luiz Claudio de Azevedo Chaves

Graduado em Administração e Direito, especialista em Direito Administrativo pela UCAM. É Consultor Técnico da o Andreatta & Hinrichsen Advogados Associados e do Instituto Brasileiro de Administração Municipal-IBAM. Professor da FGV, da PUC-RIO, Escola Nacional de Administração Pública – ENAP, Escola de Administração Judiciária – ESAJ/TJRJ, Escola Nacional de Serviços Urbanos – ENSUR/IBAM. Autor da obra: Curso Prático de Licitações, os segredos da Lei 8.666/93, Lumen Juris/IBAM 2011.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Luiz Claudio Azevedo. Contratação de serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal na Administração Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3643, 22 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24763. Acesso em: 16 abr. 2024.

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