7 – Inscrição em cursos abertos a terceiros
Esse tema quase não encontra tratamento específico na doutrina. No âmbito do Tribunal de Contas da União, os precedentes não chegam a esgotar o assunto. A referência mais importante que se tem junto à Corte Federal de Contas é a do já referido Acórdão 439/1998-Plenário. No voto da lavra do Min. Adhemar Paladini Guisi, restou consignado que:
“Retomando à proposta de decisão em estudo, consideramos desnecessário firmar entendimento quanto à inexigibilidade de licitação para inscrição de servidores em cursos abertos a terceiros. Os cursos abertos para os quais não cabe licitação são aqueles inusitados, quer por não haver previsão de sua repetição, quer pela indiscutível notoriedade do instrutor, ou ainda aqueles oferecidos por uma única empresa. Em todos os casos o texto da Lei é suficientemente claro: há inviabilidade de competição. Para os cursos regularmente oferecidos por mais de uma empresa, não há que se falar em inexigibilidade, pois não há singularidade no objeto e, portanto, a competição é perfeitamente possível. O que pode ocorrer é o desinteresse dos prestadores do serviço em participarem de certame licitatório, o que caracterizaria a hipótese de dispensa de licitação prevista no inciso V do, art. 24 (licitação vazia).”
Nada obstante o reconhecido saber do ilustrado Ministro, sou forçado a discordar em parte. Estou de pleno acordo com o trecho em que diz que “...Em todos os casos o texto da Lei é suficientemente claro: há inviabilidade de competição.” Mas entendo que por motivos outros, não aqueles expostos no douto voto.
Em primeiro lugar, não é correto afirmar que há inviabilidade de competição para cursos abertos a terceiros “...quer por não haver previsão de sua repetição...”, porque há numerosos casos de cursos que se repetem ao longo do ano em várias cidades e com várias empresas. Também é equivocado reconhecer que a inviabilidade de competição é fruto da “...indiscutível notoriedade do instrutor...”, em virtude de tudo o que já foi dito acima sobre o fato de que a notória especialização não precede a singularidade do objeto, mas o contrário. Quanto aos cursos “...oferecidos por uma única empresa...” estar-se-ia falando de inviabilidade por ausência absoluta de competidores, com fundamentação legal no art. 25, caput, mas com procedimentos de justificativa análogos ao do art. 25, I, o que exigiria da empresa organizadora uma declaração ou certidão de exclusividade. Não é o que está sendo aqui tratado.
Realmente, o texto da Lei é suficiente para a hipótese de inscrição de servidores em cursos abertos. É inviável a competição em razão de ser, aquele evento, específico, único. Pode haver programação do mesmo tema, com o mesmo instrutor, pela mesma empresa, na mesma cidade, mas ainda sim, cada qual será único. Os vários cursos, ainda que idênticos, representam objetos apenas assemelhados, porém, distintos. Não se pode cogitar no sentido de que há várias opções intercambiáveis. Argumentar que o curso pretendido se repetirá ao longo do ano, não é convincente, pois constituem objetos não cotejáveis. Uma prova disso é que não é possível garantir que um curso aberto venha a ser realizado, pois depende de quórum mínimo para sua confirmação. Portanto, jamais poderiam ser postos em comparação e disputa.
Assim, para cursos abertos a terceiros, penso que a fundamentação correta é na cabeça do art. 25 da lei geral das licitações e não em seu inciso II c/c art. 13, VI. Antes mesmo de ser caso de singularidade e de demonstração de notória especialização, é hipótese de inviabilidade absoluta de competição. A notória especialização do palestrante/instrutor pode servir de lastro para a justificativa da escolha daquele específico evento, para acomodação do ato em relação aos princípios de direito a que se submetem todos os agentes públicos. Mas não integra, necessariamente, a fundamentação jurídica do afastamento do dever geral de licitar.
Diante disso, podemos afirmar que é inexigível a licitação para inscrição de servidor em curso aberto a terceiros, por absoluta inviabilidade de competição, na esteira do art. 25, caput, da Lei 8.666/93.
8 – Entendimento do TCU sobre o tema
O dilema da contratação de cursos, professores, conferencistas no âmbito da Administração Pública não é recente e há muito vem sendo alvo de debates no meio doutrinário e no âmbito do controle externo.
O primeiro enfrentamento de maior destaque junto ao Tribunal de Contas da União está consignado na Decisão 535/1996, cuja relatoria ficou a cargo do Min. Paulo Afonso. Provocada por meio de representação interposta pelo Instituto Sezerdello Correa-ISC, escola de contas do TCU, o Plenário deliberou autorizar o ISC a promover o procedimento conhecido como credenciamento[16], visando pré-qualificação de professores para contratações futuras, nas vezes em que a escola necessitar, com arrimo no art. 25, caput:
“O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE: 1 - autorizar o Instituto Serzedello Corrêa a proceder ao cadastramento de docentes para ministrarem treinamento/aperfeiçoamento na área-fim do Tribunal; 2 - autorizar o ISC a proceder, sempre que necessário, à contratação direta, por prazo determinado, dos docentes previamente cadastrados e selecionados de acordo com o currículo, dando-se preferência aos professores do local onde será realizado o treinamento/aperfeiçoamento; 3 - autorizar o Instituto a proceder, nos demais casos, a licitações para a contratação de instrutores, realizando, dado o conteúdo didático de cada disciplina, um certame licitatório para cada conjunto de cursos de uma mesma disciplina; 4 - determinar a inclusão da presente Decisão, bem como do Relatório e Voto que a fundamentam, na Ata da Sessão Ordinária realizada nesta data.”
Como se vê do decisum acima transcrito, naquela assentada, o Relator houve por bem distinguir duas espécies de treinamento: a) cursos área-fim; e, b) cursos área-meio. Desse modo restou consignado que os cursos que fossem destinados aos servidores atuantes da área-fim do Tribunal, deveriam ser contratados sem licitação fulcrado no art. 25, II e §1º. c/c art. 13, VI da Lei 8.666/93, por reconhecer, somente a estes treinamentos, a característica da singularidade, bem como a necessidade de serem ministrados por profissionais de notória especialização. Já os cursos destinados à área-meio deveriam ser ordinariamente licitados, segundo o entendimento do relator, em síntese, por não apresentarem nenhuma característica que os torne singular.
Essa divisão em categorias como elemento justificador do afastamento do dever geral de licitar não resolve o impasse. Basta imaginar que o mesmo curso seria ilicitável em um órgão, em virtude de ser-lhe específico de sua área finalística e, em outro, seria cabível a licitação, por ser relativo à atividades auxiliares. Sob essa visão, um treinamento destinado aos médicos e enfermeiras de um hospital público, visando capacitação na triagem e diagnóstico da dengue seria singular a exigir a contratação de notório especialista; mas se o mesmo curso fosse ministrado para os médicos e enfermeiras do Departamento de Saúde, de um Tribunal de Justiça, o curso seria licitável. Já vimos e revimos que a singularidade dos serviços se prende ao próprio objeto. Ora, ou o objeto é singular ou não é. Não é possível imaginar o mesmo treinamento, destinado ao mesmo público alvo, possa ser, ao mesmo tempo, licitável e inexigível.
Posteriormente, a Corte Federal de Contas voltou a enfrentar o problema a partir de denúncia sobre eventuais ilegalidades cometidas pelo TRT da 16ª Região na contratação de cursos para seus servidores nos anos de 1995 e 1996. Na oportunidade, o eminente, Min. Carlos Átila, abandonando a tese da relativização dos cursos em relação à sua área de aplicação, passa a enxergar a questão sob outro ângulo, inclinando-se pela não adoção de procedimento licitatório para contratos dessa natureza, conforme o excerto extraído de seu voto, abaixo transcrito:
“(...)Considero muito pouco razoável fixar, mediante interpretação rígida e estrita da Lei, barreiras convencionais desnecessárias para o trabalho dos administradores dos programas de capacitação dos servidores públicos. Bastam as enormes dificuldades naturais que já se antepõem à sua tarefa - como é o caso, precisamente, da escassa disponibilidade de mestres e instrutores qualificados, experientes, e com boa didática para transmitirem conhecimentos aos treinandos. Assim, tanto para a contratação de professores e instrutores para ministrar aulas em cursos organizados pelo próprio órgão, quanto para pagar a matrícula e participação de servidores em cursos especializados, organizados por terceiros e abertos à inscrição de outros interessados - em ambos os casos - entendo que se caracteriza a inviabilidade de competição prevista no item II do art. 25, combinado com o item VI do art. 13 da Lei das Licitações, sendo assim facultado aos administradores considerar, se assim o entenderem, inexigível o processo de licitaçäo.(...)” (TCU, Decisão 747/1997, Rel. Min. Carlos Álvares da Silva)
Encaminhou seu voto ao Plenário da Corte com a seguinte proposta de decisão:
“(...)8.2. considerar enquadramento na hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso II do art. 25, combinado com o inciso VI do art. 13, da Lei nº 8.666/93, a contratação de professores, conferencistas ou instrutores, para ministrar aulas em cursos de treinamento, de formação ou de complementação de conhecimentos especializados de servidores, bem como para sua inscrição em cursos abertos a terceiros, destinados ao ensino de matérias especializadas, sempre que não se trate de treinamento baseado em técnicas e métodos padronizados de ensino;(...)”
O Plenário, mesmo não acolhendo a proposta de decisão, deliberou da seguinte forma:
“O Tribunal Pleno, ante as razões expostas pelo Relator, DECIDE: 1. conhecer da denúncia em pauta por atender aos requisitos de admissibilidade previstos no caput do art. 213 do Regimento Interno para, no mérito, considerá-la improcedente; 2. remeter cópia do Relatório e Voto, da Decisão não acolhida, bem como desta Decisão, à SEGECEX, para que, no prazo de até sessenta (60) dias, coordene estudo e apresente conclusões sobre a matéria constante do item 8.2 da Decisão não acolhida, para posterior deliberação do Tribunal;(...)”
A decisão acima gerou estudos que culminaram na Decisão 439/1998, cuja relatoria coube ao Min. Adhemar Paladini Ghisi, e que se tornou um divisor de águas sobre a matéria. A Secretaria Geral de Controle Externo do Tribunal, unidade técnica designada para conduzir os estudos, chegou à conclusão de que, na imensa maioria dos cursos, a intervenção do instrutor é determinante para a obtenção dos resultados pretendidos, sugerindo, ao final, como proposta de decisão, que a Corte fixasse o entendimento de que “...se enquadra na hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso II do art. 25, combinado com o inciso VI do art. 13, da Lei 8666/93 a contratação de professores, conferencistas ou instrutores, para ministrar aulas em cursos de treinamento, de formação ou de complementação de conhecimentos de servidores especializados,...”. Mas assim o fez limitando o entendimento apenas em relação àqueles treinamentos que fossem desenvolvidos de modo específico para a unidade contratante, ou ainda aqueles voltados para as peculiaridades dos prováveis treinandos. Prosseguindo na proposta de encaminhamento, também entendeu ser perfeitamente possível a realização de certame licitatório nos casos de cursos “...baseados em programas convencionais ou dirigidos a servidores não especializados...”, por entender que, nestes casos, não existe o elemento da singularidade.
Nada obstante, o entendimento do relator foi ainda mais longe, aduzindo que
“...a inexigibilidade de licitação, na atual realidade brasileira, estende-se a todos os cursos de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal..e que a inexigibilidade de licitação para contratação de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal, na atualidade, é regra geral, sendo a licitação exceção.”
Acompanhado à unanimidade pelo Pleno, o TCU fixou o seguinte entendimento:
“O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE: 1. considerar que as contratações de professores, conferencistas ou instrutores para ministrar cursos de treinamento ou aperfeiçoamento de pessoal, bem como a inscrição de servidores para participação de cursos abertos a terceiros, enquadram-se na hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso II do art. 25, combinado com o inciso VI do art. 13 da Lei nº 8.666/93; 2. retirar o sigilo dos autos e ordenar sua publicação em Ata; e 3. arquivar o presente processo.
Em que pese a força dos argumentos expendidos ao longo do extenso e brilhante voto em apreço, bem como dos luminares mestres citados no relatório que lhe deu supedâneo, enxergo, com as devidas vênias, que este entendimento merece as pequenas reformas aqui propostas.
Como dito antes, também partilhando do entendimento de que na contratação de cursos, a regra é a inexigibilidade e a licitação a exceção, penso que o ponto de referência deva ser o grau de interferência do instrutor para o alcance dos resultados pretendidos no treinamento. Reconhecendo a existência (em via de exceção) de cursos cuja metodologia didático-pedagógica torna a intervenção do instrutor menos determinante na obtenção dos resultados, penso que não se deva generalizar da forma como decido pelo Egrégio Tribunal de Contas da União. Todo o processo de contratação de cursos deve exigir da autoridade competente seu correto enquadramento legal, com demonstração da presença inequívoca de todos os requisitos legais (explicitação da característica singular do serviço, demonstração de notória especialização e justificativa da razão da escolha do executor dentre as alternativas possíveis). A generalização reconhecida na Decisão 439/1998, que considera presumidamente singulares todos os cursos, pode conduzir ao enfraquecimento da instrução do processo na medida em que torna quase desnecessária a caracterização do serviço como sendo singular.
Também considero pouco correta a fundamentação no art. 25, II c/c 13, VI da Lei 8.666/93 para inscrição de servidores em cursos abertos. Como suso defendido, a licitação para os cursos abertos é inviável, antes, pelo fato de que, cada um, é único. Claro que em boa parte dos casos, o curso aberto também poderá ser enquadrado no dispositivo acima quando prestado por notório especialista. Mas sendo ou não singular, sendo ou não prestado por notório especialista, por exemplo, um curso aberto na metodologia Kumon, este seria ilicitável pelas extensas razões aqui já defendidas. Daí porque a melhor solução para contratos dessa natureza é fundamentar o afastamento no art. 25, caput.
Por fim, é bom que fique claro que apesar de ter sido proferida há mais de 14 anos, a Decisão 439/1998 ainda continua balizando as decisões da Corte Federal de Contas, como se vê, apenas a título de ilustração, os seguintes precedentes: Acórdão 654/2004 - Segunda Câmara Rel. Min. Lincoln Magalhães da Rocha; Acórdão 1886/2007 - Segunda Câmara Rel. Min. Marcos Bemquerer; Acórdão 1247/2008 – Plenário Rel. Min. Marcos Bemquerer; Acórdão 1762/2011 - Segunda Câmara Rel. Min. Augusto Sherman