"Em regra o Delegado de Polícia é o primeiro jurista a ter acesso ao fato criminoso, ou seja, é o primeiro receptor do caso concreto, tendo a atribuição de analisar juridicamente os fatos ocorridos e promover eficiente Investigação Criminal. Precisa agir com atenção e cautela diante da iminência de suas atribuições com o direito fundamental de liberdade da pessoa humana, pois muitas vezes terá o dever de cercear o direito à liberdade do indivíduo, como no caso da prisão em flagrante". (SOUZA FILHO, Gelson Amaro; COIMBRA, Mário)
Publicada, na presente data, no Diário Oficial da União, a Lei 12.830, de 20 de junho de 2013, oriunda do Projeto de Lei da Câmara nº 132/2012, ao dispor sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia, para além de regulamentar as atribuições inerentes ao cargo, assegurou-lhe maior autonomia e garantias na presidência dos inquéritos policiais e demais procedimentos previstos em lei.
Voltadas, precipuamente, à atividade investigativa da Polícia, no exercício do chamado filtro processual, tendente à busca pela reprodução fotográfica dos episódios criminais, restaram asseguradas as garantias da essencialidade das funções de polícia judiciária e de apuração das infrações penais, finalidade dualista das funções de polícia relativas à autoria e à materialidade; o poder requisitório do Delegado de Polícia; a isenção e a imparcialidade nas investigações, por interpretação extensiva; a garantia do Delegado de Polícia natural, todavia, com roupagem mitigada; a inamovibilidade relativa; o indiciamento privativo; a isonomia protocolar com outras carreiras jurídicas, dentre outras.
Senão, vejamos:
Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
Art. 2º. As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 1º. Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
§ 2º. Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.
§ 3º. (VETADO)
§ 4º. O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação.
§ 5º. A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.
§ 6º. O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.
Art. 3º. O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados.
Art. 4º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
O § 3º vetado dizia respeito ao princípio do livre convencimento técnico-jurídico da autoridade policial, preceituando, ainda, expressamente, as já consagradas garantias da isenção e da imparcialidade, in verbis:
“O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.”
Em lúcido parecer, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania arrematou a matéria em apreço com extrema sabedoria:
"Assim, o inquérito policial, ainda que visto como procedimento administrativo pré-processual, é um instrumento prévio e de triagem contra acusações levianas e precipitadas, uma verdadeira garantia do cidadão e da sociedade, tendo dentro dele uma significativa parcela de procedimento jurídico, vez que poderá ensejar prisão e outras providências cautelares que afetam os direitos individuais. Um inquérito policial bem elaborado presta-se tanto à justa causa para a subsequente ação penal, quanto à absolvição do inocente".
E mais:
"O delegado de polícia não é um mero aplicador da lei, mas um operador do direito, que faz análise dos fatos apresentados e das normas vigentes, para então extrair as circunstâncias que lhe permitam agir dentro da lei, colhendo as provas que se apresentarem importantes, trazendo a verdade à tona".
"A atividade do delegado de polícia, por lidar diretamente com a proteção de direitos individuais especialmente tutelados pelo Estado, demanda profissionais qualificados e o seu reconhecimento em sede de legislação federal".
Como se vê, o texto da Lei 12.830, de 20 de junho de 2013, confere às funções de polícia judiciária e de apuração das infrações penais, exercidas pelo Delegado de Polícia, a natureza de atividades jurídicas, essenciais e exclusivas de Estado.
No mesmo sentido, à medida em que no curso da investigação criminal, compete ao Delegado de Polícia requisitar perícias, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos, a condução dos atos investigativos orientar-se-á pela isenção e imparcialidade, não sendo, por isso, facultado a nenhuma outra autoridade requisitar diligências protelatórias para a satisfação de caprichos individuais. O Delegado de Polícia, vê-se, pois, livre de interferências gratuitas.
Isso porque, nas palavras de Luiz Flávio Gomes, "o delegado de polícia não está a serviço do Ministério Público, mas do Estado, como autoridade investida de parcela do múnus público no escopo de esclarecer a existência de fatos ilícitos e sua autoria".
O sobredito poder requisitório permite à Autoridade Policial adotar todas as providências que se fizerem necessárias à coleta das provas, para a mais breve e salutar elucidação dos fatos em apuração, podendo assim requisitar a particulares, a agentes públicos, bem como a estabelecimentos públicos ou privados o auxílio necessário à identificação e instrumentalização das provas, a exemplo, da requisição de imagens registradas por circuito interno de gravação próprio e de informações não acobertadas por sigilo legal, materializando-as na investigação policial.
Trata-se, como se vê, de autorização originada da própria lei, independendo, por isso, de autorização judicial, salvo nos casos em que a prévia providência judicial é expressa, como na requisição de dados bancários ou fiscais e de interceptação telefônica, por exemplo.
O poder de requisitar atribuído ao Delegado de Polícia é também previsto a partir do artigo 31 e seguintes da Lei 11.343/2066, que versa sobre a possibilidade das Autoridades Policiais requisitarem o concurso de agentes sanitários para auxiliar na fiscalização que tratam os dispositivos da lei. No mesmo sentido, o artigo 7º da Lei 9.296/96, prevê ao Delegado de Polícia o poder de requisitar às concessionárias de serviço público o auxílio necessário, para execução da interceptação telefônica.
Diferentemente da mera solicitação, o poder de requisitar faz nascer para o particular e demais requisitados, o dever de colaborar com a Autoridade Policial, e não mera faculdade. De tal sorte que, o não cumprimento de requisição emanada do Delegado de Polícia, vez determinação legal, dá azo à incidência do crime de responsabilidade, nos termos do artigo 330 do Código Penal Brasileiro.
A despeito da garantia da inamovibilidade relativa, em prol dos interesses da própria sociedade, o Delegado de Polícia só poderá ser afastado da investigação sob sua presidência, se houver motivo de interesse público ou o descumprimento de procedimentos previstos em regulamento da corporação, passíveis de prejudicar a eficácia dos resultados de investigações. Assim sendo, mesmo que motivado, o afastamento, dependerá ainda de despacho do superior hierárquico, devidamente fundamentado.
E não é só. A partir de agora, o Delegado de Polícia, detentor de carreira jurídica e essencial à administração da Justiça passa a ter o mesmo tratamento protocolar dado aos magistrados e integrantes da Defensoria Pública e do Ministério Público, em homenagem ao conhecido e festejado princípio do ubi idem ratio ibieadem legis dispositio, mesmo porque, onde existir a mesma razão, aí se aplicará a mesma regra legal.
Com maestria, ensina o professor Luiz Flávio Gomes:
"a investigação preliminar cumpre a “função de filtro processual contra acusações infundadas”; embora a sua própria existência já “configure um atentado ao chamado status dignitatis do investigado”, e daí decorrem duas conclusões: a primeira é que a investigação prévia através do inquérito policial é uma garantia constitucional do cidadão em face da intervenção do Estado na sua esfera privada porque ela atua como salvaguarda do jus libertatis e dostatus dignitatis; a segunda é que a investigação prévia não é somente fase anterior do processo penal, porque mesmo quando não há processo a investigação terá cumprido um papel na ordem jurídica".
É consabido, a par dos princípios da igualdade e da separação de funções, que o exercício das atribuições da Polícia Judiciária reveste-se de autonomia em face do Poder Judiciário, do Ministério Público e até mesmo do poder hierárquico do Executivo.
Entrementes, é preciso reconhecer que o sistema é falho, no sentido de não ter o legislador dotado o Delegado de Polícia, presidente da investigação criminal, de garantias funcionais suficientes à concretude da sobredita autonomia, o que, todavia, o fez em relação aos membros da Magistratura e do parquet, ao conceder-lhes as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e do foro por prerrogativa de função.
Isso posto e muito embora com o nível de maturidade alcançada na hodiernidade, e com a solidez de caráter dos profissionais responsáveis pelas apurações, nos dias atuais não haja mais que se falar, quiçá admitir, ingerências políticas durante as investigações, que, ao revés, deverão pautar-se sempre na transparência, na ética e na lisura, reinantes na boa Administração Pública, é certo que amparados pelas garantias conquistadas, o Delegado de Polícia e sua equipe terão maior tranquilidade para o exercício das atribuições que lhes são inerentes.
À prenunciada e necessária autonomia do Delegado de Polícia a frente das investigações policiais, em decorrência da isenção e imparcialidade acresce-se a sociedade com preceitos confirmativos de justiça, lançando-se luz de bom senso e justiça aos profissionais Segurança Pública.
Isso porque, somando-se às atribuições decisivas dos Delegados de Polícia, os necessários e imprescindíveis esforços empreendidos pelos investigadores, escrivães, peritos e médicos-legistas, desempenha a Polícia Judiciária, a função essencial de promoção de justiça efetiva, apurando-se quaisquer tipos de delitos e não somente aqueles midiáticos e holofóticos, evitando-se, destarte, acusações levianas e açodadas, além de juízos errôneos e apressados quando ainda subsistem as acaloradas discussões e visões emotivas dos fatos jurídicos.
Por derradeiro, como se vê, a tão esperada e recente sanção presidencial Lei 12.830, de 20 de junho de 2013, tornou realidade o que era um sonho, estabelecendo no Brasil uma das leis mais justas de sua história, não obstante as infundadas e cabotinas críticas emanadas de alguns atores sociais, que insistem em exalar pirotecnia e arrogância em suas ações, colocando-se como manto protetor único, puro e inconcusso da sociedade e, portanto, beatificado para abençoar o bem e anunciar a cura milagrosa das misérias carneluttianas do processo.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2009.
BRASIL. Decreto nº 2848/1940. Define o Código Penal Brasileiro. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2009.
BRASIL. Lei n.º 12.830/2013. Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Acesso em: 21/jun/2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12830.htm