A investigação preliminar é peça fundamental no processo penal, representando um “filtro processual”, que tem como fundamento de existência subsidiar eventual ação penal.
No Brasil, o assunto veio à tona, assumindo enorme relevância quando nos deparamos com a discussão que se travou acerca da investigação a cargo do Ministério Público (MP).
A PEC 37 sugeria incluir um novo parágrafo ao artigo 144 da Constituição Federal, que trata da Segurança Pública. O item adicional traria a seguinte redação: “A apuração das infrações penais de que tratam os §§1º e 4º deste artigo, incubem privativamente às polícias federal e civil dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente”.
Antes de analisarmos os efeitos da alteração sugerida pela proposta, com devido respeito ao autor do projeto (deputado Lourival Mendes) e às instituições interessadas, crítica se faz ao reducionismo da discussão, que se preocupa apenas com sujeito ativo das investigações, quando muito mais importante seria analisar o objeto e a forma dos atos.
Feita esta consideração, observe, num primeiro momento, que o dispositivo retiraria do MP o poder de investigar.
Investigar nada mais é do que ouvir pessoas, juntar documentos, proceder à realização de perícias e outras diligências. A nosso ver, não há dúvidas de que os membros do MP são dotados de capacidade técnica para desenvolver essas atividades.
É sabido que como titular privativo da ação penal pública o MP exerce parcela de soberania, e que uma das finalidades da investigação é evitar acusações infundadas.
Também não se desconhece a teoria dos poderes implícitos que estabelece: quando uma Constituição atribui funções a seus órgãos, a eles são igualmente atribuídos os meios e instrumentos necessários para o cumprimento do que fora determinado.
Ocorre que, verdadeira queda de braços se trava pela disputa da titularidade das investigações preliminares em âmbito criminal.
Os argumentos favoráveis à proposta são os mais variados:
- A atividade de investigação é exclusiva da polícia (art. 144, §1º, da CF).
- A investigação criminal conduzida pelo MP carece de previsão legal.
- O MP investigando perde a imparcialidade.
- a investigação pelo MP provoca um desequilíbrio no sistema processual penal (quebra de paridade de armas).
Tais argumentos são rebatidos de forma bastante fundamentada:
- O referido dispositivo utiliza a expressão “exclusividade” com a finalidade de retirar das polícias estaduais a função de polícia judiciária da União. Aliás, a própria Constituição prevê que a investigação pode ser conduzida por outros órgãos. O entendimento é de que o inquérito policial é exclusivo, mas não a investigação (art. 4º, parágrafo único, CPP).
- A tese de falta de previsão legal ignora o art. 129, I, VI, VII e IX da CF; os artigos 7º, 8º e 38 da Lei Complementar nº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União); o art. 26 da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); todos conferindo ao Ministério Público a autorização para a condução de procedimentos investigatórios.
Tem-se, ainda, o art. 29 da Lei 7.492/86 (Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional), que dispõe: “O órgão do Ministério Público, sempre que julgar necessário, poderá requisitar, a qualquer autoridade, informação, documento ou diligência, relativa à prova dos crimes previstos nesta lei”.
O Código Eleitoral (Lei 4.737/65) não possui previsão de inquérito policial para investigação dos crimes nele previstos, alertando que a investigação será feita pelo MP (art. 356, §2º).
A Lei de Abuso de Autoridade prevê a atuação do MP na apuração dos crimes de abuso de poder (art. 2º).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90 – art. 201, VII) e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03 – art. 74) conferem a mesma atribuição ao MP.
E, por fim, a resolução nº 13 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que tem força normativa, disciplinou o procedimento investigatório criminal conduzido por seus membros.
- Quanto à tese da perda da imparcialidade, defendem que, no cível, o MP preside o inquérito civil. Logo, se preserva a imparcialidade na investigação extrapenal, não a perderia na criminal.
- Já a tese da quebra da paridade de armas é rebatida com o argumento de que o desequilíbrio é sempre em favor do autor do crime, pois este conhece a verdade dos fatos, e o Estado que o investiga não.
Mas a despeito de toda essa discussão já bastante conhecida, dada a repercussão na mídia, o objetivo é a abordagem de outro efeito que a alteração proposta traria, ainda acerca da investigação preliminar em âmbito criminal.
Um aspecto bastante importante, mas que escapou aos debates travados acerca do tema, certamente por não fazer parte do cotidiano da grande massa de brasileiros é que, ao acrescentar o §10º ao artigo 144 da Constituição Federal, a proposta não ressalvou a competência de investigação da polícia judiciária militar, regulada pelos artigos 7º e 8º do Código de Processo Penal Militar (CPPM).
Com isso, a competência para apuração dos crimes militares passaria a ser da Polícia Federal, o que, com a devida vênia, representaria enorme avanço na apuração de responsabilidades de crimes dessa natureza.
Atualmente, a investigação preliminar dos crimes militares (feita através de inquérito policial militar) é presidida por militar sem capacidade técnica para desenvolver essa atribuição, o que fatalmente culmina em sérias distorções no procedimento e, consequentemente, na ação penal.
A única exigência feita pelo CPPM é de que o encarregado das investigações tenha precedência hierárquica sobre o suposto infrator.
Àqueles que atuam na Justiça Militar ou a ela estão submetidos, é comum o conhecimento de teses que beiram o absurdo, a exemplo da sustentação de responsabilidade penal por “furto culposo”.
Conforme dito inicialmente, a investigação preliminar é peça fundamental para o êxito de uma ação penal, que tem como objetivo precípuo a busca da verdade real.
É incontroverso, portanto, que a sua realização por agente sem o mínimo de capacidade técnica, fatalmente concorrerá para a consagração de injustiças.
Considerando a importância atribuída à investigação preliminar no processo penal, não só no Brasil, mas em todos os sistemas acusatórios do mundo, o efeito do deslocamento da competência para investigar crimes militares, da autoridade militar (sem qualquer capacidade técnica) para a Polícia Federal, seria um ponto positivo da PEC 37.