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"Multilevel constitucionalism" e intervenções humanitárias: o constitucionalismo em trânsito

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22/08/2013 às 14:56
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Os avanços e desafios modernos de enfrentamento de problemas (políticos, econômicos, constitucionais, sociais, ambientais etc.), que ultrapassam as barreiras da soberania, devem ser enfrentados com a criação de pontes entre os Estados e não com a tumulação dos princípios da supremacia da Constituição nacional.

INTRODUÇÃO

A pós-modernidade parece novas formações relacionais não apenas entre os cidadãos, mas também entre os Estados. Isto não é aspecto inovador único dos séculos XX, XXI, pois há registros históricos de que esse espírito de formação de uma “aldeia global” é anterior a própria formação do conceito de Estado como hoje se concebe. Processo esse tão anterior que Marcos Kaplan chega a sinalizar seu início no período dos hominídeos:

La serie de fases precedentes de los fenómenos hoy agrupados bajo la rúbrica de “globalización” se inicia con el origen mismo de la especie humana. Los primeros hominidios inician el proceso integrador global al abandonar el hoy llamado Cuerno de África hacia la cobertura del planeta.[i]

Parece uma marcha irrefreável. O Estado vê-se cada vez mais impelido à aceitação de efeitos externos a ele, mas pulverizados em todas as suas esferas de atuação. O projeto de formação daquela “aldeia global” parece, de tempos em tempos, apenas tomar novos rumores de invencibilidade de seus efeitos, sejam eles positivos ou não:

Nos vemos metidos de lleno en los avatares de una geopolítica mundial cuyos efectos llegan a todos os rincones de la aldea global, aunque es verdad que no afectan a unos y otros de la misma manera: sobre las mayorías de la humanidad se concentran las consecuencias negativas de los procesos en los que todos estamos involucrados, mientras que son minoría quienes disfrutan los beneficios. [ii]

A afirmação dessa sociedade multicultural nada mais é que a afirmação de que se pretende criar um diálogo que supere as intransigências e tensões entre civilizações diversas. A sociedade multicultural é, pois, não a afirmação do crepúsculo da Soberania do Estado Nacional, mas de sua subsistência com uma perspectiva nova. Num diálogo interestatal não mais acessório, mas sim indispensável para evitar conflitos entre os Estados nacionais:

En  medio de todo ello, trata de abrir-se camino la propuesta ético-política del necesario diálogo intercultural. Sin embargo, le persigue el fantasma del “choque de civilizaciones”, que amenaza con hacer de este mundo un páramo de desencuentro e injusticia.[iii]

O “horizonte de expectativas”[iv] trazidos pela época revolucionária da Idade Moderna encontra-se em desafio expansionista. Mas o “espaço de experiências”[v] deve ser resguardado como meio de delimitação da vivência histórica. Ainda que a Idade Moderna abra horizontes de expectativas que podem ultrapassar previsões é certo que “[....] este espaço ainda não pode ser contemplado.”[vi]. Vive-se no auge da defesa dos Direitos Humanos, com as conflituosas Intervenções Humanitárias, mas não se sabe que tipo de Estado e Democracia se quer neste cenário. Portanto, tanto as previsões internacionalistas quanto as estatalistas serão aqui apresentadas como razões parciais que devem aprender a dialogar.


1 Sociedade Multicultural E "Multilevel constitutionalism". 

A Idade Moderna trouxe uma solução de defesa em troca da obediência: “Eu salvo a tua vida, que no estado de natureza está continuamente em perigo, mas tu te tornarás meu escravo.”[vii]. Este período, contudo, não trouxe o nascimento do constitucionalismo em seu início, já que começou de forma absolutista. Foram necessárias as revoluções francesas e americanas para formatação dos postulados democráticos do Estado nacional. Nesta época, Soberania popular confunde-se com um ato contratual fictício de delegação a um ente terceiro, neutro, que pudesse ser o reflexo dos anseios populares e, ao mesmo tempo, pudesse conter os conflitos. Soberania, Constituição e legitimidade popular estavam amplamente interligados:

[....] a ascensão da soberania popular representará a substituição da vontade, supra-assumida que será pela institucionalização do poder mediante a equiparação entre soberania popular e poder estatal.[viii]

Contudo, esta vinculação não residia apenas num aspecto provinciano, mas tinha aspirações mundiais: “[....] a sociedade moderna nasce como sociedade mundial,[....] Ela implica, em princípio, que o horizonte de comunicações ultrapassa as fronteiras territoriais do Estado.”[ix]

A formação do que hoje se denomina “sociedade multicultural” seguiu esse passo cosmopolita da Idade Moderna, mas foi além. Concebe-se aqui o fenômeno do Multiculturalismo como fenômeno político e social: “El multiculturalismo Es, por tanto, una corriente de pensamiento, a su vez internamente muy plural, que formula propuestas políticas en tal sentido.”[x]. Portanto, o multiculturalismo é uma espécie mais estrita do gênero “Globalização”.

O multiculturalismo não é a afirmação de uma ideologia de unificação mundial dos povos, ou de um Estado Mundial. Ele apenas pretende tornar o diálogo entre os Estados Nacionais menos tenso, evitando o “choque de civilizações”[xi]. É uma espécie desse emaranhado de entendimentos que se empresta ao fenômeno da Globalização, que nada conceitua e tudo justifica:

Término usado de modo exagerado y errático en los diversos léxicos generales o especializados, portador de una fuerte carga política e ideológica, la globalización se establece en campos diversos, como la economía, la geografía, la sociología, la ciencia política, las relaciones internacionales, el marketing, los medios de comunicación masiva.[xii]

Como então entender o modelo de Estado nacional nesse emaranhado de interpenetrações de todas as ordens no Estado nacional? É empiricamente comprovável a afirmação de que o Estado nacional e o modelo de soberania encontram-se em seu ocaso? Ou, apenas é chegada uma nova leitura dos institutos estatais, ante a nova forma de relação entre os povos nacionais?

A resposta internacionalista pós-moderna a estas perguntas tem sido a tese do Constitucionalismo de Níveis Múltiplos ou “Multilevel Constitutionalism”. Este instituto tem origem alemã, seu teorizador foi Ingolf Pernice, o qual começou sua análise em 1995 pela difícil tentativa de formação da União Europeia. Ingolf Pernice propôs um modelo diverso do até então proposto na UE: o “Vertfassungsverbund” em contraposição com o anterior modelo de alianças estatais denominado de “Staatenverbund”. O “Vertfassungsverbund” seria a expressão mais avançada de uma substituição da aliança por Estados, por uma aliança através de Constituições – seria o “código genético constitucional” na constelação supranacional:

Whereas Staatenverbund refers, roughly speaking, to a compound of states, Vertfassungsverbund seeks to capture the same sense of a composite arrangement, but one whose genetic code is constitutional rather than statal.[xiii]

O “Multilevel Constitutionalism” defende que o Constitucionalismo atingiu sua maioridade, e, com isso, tornou-se uma idéia autônoma e independente do modelo clássico de Estado Nacional existente da Idade Moderna. A justificativa é a afirmação da Globalização em todos os âmbitos e a inescapável interligação entre problemas que ultrapassam fronteiras. Esta tese defende o Constitucionalismo Pós-estatal. Ou, melhor afirmando, um Constitucionalismo pós-moderno que levaria a uma nova percepção da configuração do Estado nacional nesse novo ambiente multicultural e globalizado.

Para tanto, Neil Walker afirma que os defensores dos postulados clássicos do Estado nacional incorrem em três erros: o Essencialismo (só há constituição no recipiente do Estado); Culturalismo (só no Estado há energia para legitimidade social e política de uma Constituição) e o Epistemologismo (que afirma que a ideia de Constituição está imbricada a ideia de Estado, sendo formas inteligivelmente indissociáveis)[xiv]. Contudo, estas três posições não tiveram argumentos plausíveis que desbancassem sua importância. É este o problema dos defensores do constitucionalismo pós-estatal: não conseguem pontuar travas para o próprio projeto. A aliança de Constituições produzida pelo modelo constitucional de Níveis Múltiplos, de Ingolf Pernice, a troca do Staatenverbund pelo Vertfassungsverbund, é projeto que, como ideal, falha no método de construção desse novo ordenamento em forma de constelação.

O “Método Holístico” proposto por Neil Walker afirma um constitucionalismo de engajamento de afirmação da relevância dos vários Estados e suas respectivas Constituições Nacionais sem excluí-las ou dispensá-las. Ao propor a visão holística cria-se um espaço para o diálogo necessário, mas uma questão não é enfrentada: é um projeto de constelação ou de destruição das estrelas anteriores? No próprio texto Neil Walker afirma a necessidade de reconhecimento das diversas autoridades nacionais e a exigência de um entrelaçamento das diversas ordens constitucionais, mas não cita até que nível este se operará, nem o que ocorrerá com as ordens nacionais entrelaçadas:

In a nutshell, the holistic method is a method of constitutional articulation and engagement in which the authority and meaning of the various parts are understood and treated as dependent on the integrity of the whole.[xv]

Esta análise holística e não mais individualista, como era preconizado pela Idade Moderna, nada mais faz do que afirmar a importância dos Estados Nacionais, só que com uma perspectiva comunicativa constitucional.

Por mais que a sociedade multicultural tenha trazido desafios que não existiam à época da teorização do Estado Moderno ainda não se pode afirmar, sob pena de cair em vales de ingenuidade e pressa conceitual, que o Estado Nacional está em pleno ocaso. O conselho é: nunca perder o passo da desconfiança e da lucidez: “Parecen más pertinentes el pensamiento crítico, la lucidez, el realismo, la siempre válida combinación de ‘pesimismo de la inteligencia, optimismo de la voluntad’”[xvi].


2 Soberania e Constituição do Estado nUma perspectiva contemporânea.

Um Estado que se enxerga no âmbito multicultural é, necessariamente, aquele que afirma uma política dialogal. E não só comunicativa, mas também interdependente.

Tratar das formações de conversação supra ou internacionais é sinalizar para as pontes de diálogo entre os Estados nacionais que tornaram o valor “Soberania” um ente relacional e multicultural.

2.1 O que houve com a noção moderna de Supremacia da Constituição Nacional no cenário multicultural? UmaConstituição (in)suficiente?

O Estado e a Constituição, sozinhos, num mundo multicultural. É esta a impressão que os internacionalistas desejam imprimir aos defensores da importância da afirmação dos postulados clássicos do Estado como a Soberania e a Supremacia da Constituição Nacional. A afirmação de que os postulados do Estado Nacional encontram-se em lide com os valores impostos pela “aldeia global” é a bandeira do discurso que flamula pelos ideários de uma Constituição Mundial. Mas esta afirmação além de apressada é ingênua. Immanuel Kant chama o Estado Mundial de “cemitério de liberdades”[xvii]. Contudo, é favorável a uma formação de uma Confederação mundial dos Estados Soberanos: “[....] a qual corresponde a universalização global do princípio da soberania popular.”[xviii]. Ou seja, para Immanuel Kant a aliança entre os Estados Nacionais não dissolveria os mesmos, nem os seus atos constitutivos nacionais. Seria uma aliança política de entrelaçamento de Constituições e não a formação de uma “Super Constituição” nem de um “Super Estado”. 

O Princípio Supremacia da Constituição Nacional tem origem em Rousseau, mas ainda tratava-se não de uma ordem escrita, mas sim de uma supremacia do valor estatal sobre o privado. Com o Século XVIII e as revoluções burguesas, ganha fôlego o primado de um texto constitucional de valor supremo que contenha as aspirações populares e sirva de instrumento de garantia popular contra os devaneios estatais. Nesse sentido, a Supremacia da Constituição caracteriza-se por uma distinção entre o poder político e o jurídico, ainda que com influências recíprocas:

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A supremacia constitucional, portanto, resulta do fato de que, ao transformar Direito e política em fenômenos de mútua implicação, a Constituição representa uma estrutura normativa superior a todas as demais no interior da ordem jurídica, que estrutura juridicamente o Estado por meio de funções pelas quais ele atua e estabelece solenemente os fundamentos para a realização dos direitos fundamentais.[xix]

Com a formação do constitucionalismo na segunda fase da Idade Moderna rompe-se a era da tensão entre direito positivo e natural, pela concepção de que ambos encontrar-se-iam no cenário multicultural como direitos reconhecidos: “[....] o direito natural passou a ser um fato histórico – e que, portanto, são preceitos que se tornaram direito internacional positivo.”[xx]. O constitucionalismo é a marca do abandono da necessidade de fundamentação jusnaturalista: “Nesse sentido, a Constituição em sentido moderno implica a superação dos fundamentos jusnaturalistas, externos, do direito.”[xxi]. Nesse momento falar no Princípio da Supremacia da Constituição ultrapassara o nível do extrato jusnaturalista, para a camada positivista: a defesa de um texto autofundante. O qual só teve o viés de Lei Fundamental após a juridicização do mesmo.

O maior signo de superação da tensão entre as teses jusnaturalistas e juspositivistas é o reconhecimento jurídico dos Direitos Humanos, que seu deu principalmente através das Revoluções da Idade Moderna. Esse marco torna clara a intercessão que há entre valores históricos e as positivações decorrentes destes:

Direitos fundamentais – apesar das críticas quanto à sua indeterminação, seu conteúdo ideológico e suas conotações individualistas de posse – revelaram-se peça central normativa e ideológica das Constituições modernas.[xxii]

Ainda que haja um pequeno dissenso entre a prevalência ou não dos Direitos Humanos sobre as ordens jurídicas positivas em nome de valores superiores. Ambas a teses defendem a importância do reconhecimento desses direitos nas ordens jurídicas. Portanto, a afirmação de Direitos Humanos levará a formação de fontes de direitos em espaços externos aos limites do Estado nacional, mas que este reconhece como direitos compatíveis com as suas aspirações internas.

Cotejando a Supremacia da Constituição com a defesa e materialização dos Direitos Fundamentais não há como subsistirem teses extremadas, seja do Monismo kelseniano (o qual afirma que o Direito Nacional é mera delegação do Direito Internacional e que este prevalece sobre aquele), seja do Dualismo de Triepel (que defende a absoluta separação entre o ordenamento nacional e o internacional, admitindo a Soberania nacional como valor absoluto); a Tese da “Razão Transversal” apresenta-se como liame de conversação constitucional entre os Estados nacionais afirmando os papéis e criando a político do consenso mundial e não impositivo.

A proposta de uma “Razão Transversal” como defendida por Marcelo Neves com inspiração em Wolfgang Welsch rejeita decretos imperialistas, ou uma “Super Constituição”. Defende a importância das razões (Constituições nacionais) no diálogo internacional: “As diversas concepções não devem ser medidas, desacreditadas ou coativamente unidas em nome de um supermodelo – que, na verdade, só poderia ser um modelo parcial (correspondente a uma verdade particular).”[xxiii].

 Com base nesta “razão transversal” Marcelo Neves defende o Transconstitucionalismo o qual apregoa a integração da vontade nacional com as políticas internacionais mediante diálogos e cessões voluntárias da soberania nacional mediante atos expressos e formais; e vê na participação democrática dos Estados nacionais a solução para a eficácia do princípio do jus cogens internacional sem agredir a particularidade dos Estados partícipes, mas numa superação do modelo estatal nacionalista oriundo das revoluções modernas; ou seja: “[....] uma relação transversal permanente entre ordens jurídicas em torno de problemas constitucionais comuns. O direito constitucional, nesse sentido, embora tenha a sua base originária no Estado, dele se emancipa [....].[xxiv].

Portanto, esse liame entre o nacional e o supranacional não significa o estabelecimento do primado de nenhuma ordem sobre outra, mas sim na proposta de “pontes de transição”:

O Transconstitucionalismo não toma uma única ordem jurídica ou um tipo determinado de ordem como ponto de partida ou ultima ratio. Rejeita tanto o estatalismo quanto o internacionalismo, o supranacionalismo, o transnacionalismo e o localismo como espaço se solução privilegiado dos problemas constitucionais. Aponta antes para necessidade de construção de “pontes de transição”, da promoção de “conversações constitucionais”, do fortalecimento de entrelaçamentos constitucionais [....][xxv].

A Constituição Nacional não deixou de ser o texto supremo da nação com a afirmação de que há valores que reclamam uma leitura sistemática e além-fronteiras das normas nacionais. O desafio constitucional que se impõe é a amplificação dos valores, principalmente de Direitos Humanos, que possam estar sendo conquistados em diversas partes do mundo. O Princípio da Supremacia da Constituição nacional é signo que deve ser interpretado como valor em trânsito, mas não em ocaso.


3 INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E AS TENSÕES ENTRE AUTORIDADE E INTEGRAÇÃO.

“‘Constituição’ e ‘integração’ são conceitos que não se entendem por si, pois eles se subtraem de um acesso coloquial.”[xxvi]. Esta afirmação resume a crise entre os valores de Soberania nacional e integração dos Estados nacionais no plexo normativo e político internacional no ambiente multicultural. Devido a isto, muito se tem questionado sobre a subsistência ou não do modelo estatal e de seus pressupostos ante a época pós-moderna.

Tornou-se comum a defesa de várias metáforas para alegação de um novo momento do Constitucionalismo mundial, tais como: “Constelação Pós-nacional”[xxvii]; “Constitucionalismo de Múltiplos Níveis”[xxviii]; “Arquitetura de uma Constituição de Pluralidade”[xxix], etc. O que se quer traduzir com essa enxurrada de metáforas e neologismos no estudo constitucional? em rápidas palavras: que a Constituição nacional está em declínio.

A substancialização do modelo de Estado Nacional e com esta todas as formas elaboradas na Idade Moderna, como a Soberania e a Supremacia das Constituições Nacionais, teria levado à perda de sua razão de ser ante os novos desafios do constitucionalismo global. Ocorre que esta afirmação é ambígua. Já que a afirmação da morte do Estado e da Constituição nacional só seria, em verdade, uma mera substituição do Estado Democrático de Direito por um outro modelo estatal mundial onde as regras, basicamente, seriam de direito privado, o que Immanuel Kant denominou de: o “Estado de Direito Privado”[xxx].

qual o problema das teses internacionalistas que afirmam a superação do modelo de Estado Nacional? Precisamente este:

Uma sociedade que é pluralista de fachada corre continuamente o risco de transformar-se, atrás da fachada, em uma sociedade policrática, isto é, com muitos centros de poder, onde cada um faz valer suas próprias pretensões acima dos seus integrantes.[xxxi]

O grande paradoxo para as teorias internacionalistas metafóricas é que as tais tentam envolucrar o futuro do Estado através de modelos teóricos, afirmando razões “suprassuficientes” para os desafios da sociedade multicultural. A Supranacionalidade, o Supraconstitucionalismo e as Intervenções Humanitárias são grandes exemplos disto.

3.1 Intervenção Humanitária, Soberania e Autoridade nacional e(m) crise.

Em nome de valores tidos como “supranacionais”, o Direito Internacional Público, através de seus órgãos e países integrantes, tem promovido diversas autorizações e ações de promoção de uma denominada democracia “a fórceps”.

O ativismo político das camadas de organização do Direito Internacional Público chega à defesa de teses teoricamente imbatíveis, tais como: a defesa da interpretação effet utile (a interpretação dos Tratados Internacionais, principalmente de Diretos Humanos, deve ter a sua maior realização) e do Princípio do pro homine (tratando-se de Direitos Humanos, a interpretação e atuação dos DIP deve priorizar o indivíduo em detrimento do Estado).

Como então compatiblizar essas duas esferas: Soberania e autoridade dos Estados nacionais, com a Intervenção Internacional fulcrada em interpretações de realidades e Tratados Internacionais de Direitos Humanos?

Intervenção e Soberania são dois conceitos antagônicos. A permissão desregrada de um revelará a inexistência do outro. Intervenção Humanitária pode ser um rótulo de uma ditadura com viés internacionalista:

O crime de guerra agressiva, tal como aparece formulado na definição da ONU, é um crime de um Estado contra o outro. Cada Estado, segundo o direito internacional, tem o dever de não intervir nos assuntos de outros Estados; isso está incluídas não só a intervenção militar, mas também, conforme a definição de Lauterpacht, ampla e aceita, toda ‘ interferência ditatorial no sentido de ação que redunde em negar a independência do Estado.” Na base desse dever radica o conceito de soberania do Estado, da qual, de fato, o dever de não-intervenção é considerado um “corolário”[xxxii].

Este problema se torna mais claro quando os postulados clássicos do Estado nacional, ou os institutos do Direito Internacional tendem à desvirtuação.

Com esta afirmação chega-se a dois abismos: 1. O combate de Estados totalitários que, flagrantemente, descumprem os Tratados Internacionais de Direitos Humanos e destroem toda sorte de direitos dos indivíduos nacionais; 2. O perigo do uso arbitrário do instituto, com razões camufladamente mercantis, mas, discursivamente democráticas, pelas nações dominantes do cenário internacional. A tensão é esta: “Nossa preocupação consiste em que Estados, sob o disfarce do humanitarismo, venham a coagir e dominar seus vizinhos. Mais uma vez, não é difícil encontrar exemplos.”[xxxiii]

São esferas de desvios que não residem apenas na esfera da previsão, mas que, frequentemente, são observados nas desastrosas intervenções humanitárias já existentes da história da humanidade:

A propaganda e a retórica por trás das novas guerras de “intervenção humanitária” são muito interessantes. Esta justificativa foi usada quando eles entraram nos Balcãs. Lembrei na época que a propaganda dos britânicos quando se apoderaram de grande parte do continente africano também evocava a intervenção humanitária. Vamos entrar lá, os britânicos diziam, principalmente para destruir a escravidão – sendo que a Grã-Bretanha se beneficiou da escravidão.[xxxiv]

Os abusos tem sido tantos que já se prevê o dia em que nem as aparentes justificativas nem serão utilizadas: “O direito de intervenção humanitária será, provavelmente, invocado com mais freqüência nos anos vindouros – talvez com justificações, talvez sem elas – agora que os pretextos para a intensificação da repressão perderam sua eficácia.”[xxxv]. A sociedade multicultural, a globalização dos problemas não são soluções nem causas para abusos tanto nas esferas estatais quando nas intervenções externas. Mas há um fôlego de lucidez que deve animar esses discursos: o poder sempre se curva aos vícios. 

A solução apontada por Michael Walzer e exposta por Jürgen Habermas é de uma intervenção Humanitária com justificação não apenas na defesa dos Direitos Humanos em abstrato, mas por uma ingerência razoável e necessária que tenha sido primeiramente efetuada por revoluções civis nacionais contra aquela organização estatal. Caberia a intervenção internacional quando o titular do poder soberano nacional, o povo, estivesse em pleno estopim de rejeição clara ao governo instalado:

[....] uma intervenção humanitária contra a violação dos direitos humanos por parte de um regime ditatorial só é justificável se os cidadãos atingidos se insurgirem eles próprios contra a repressão política e comprovarem, mediante um ato nítido de rebelião, que o governo vai contra as verdadeiras aspirações do povo e ameaça a integridade da comunidade.[xxxvi]

A Soberania nacional pede a intervenção: seria este um parâmetro mais razoável. Já que a simples alegação de descumprimentos de cláusulas democráticas ou de Direitos Humanos, dada a extensão e abertura teleológica destes, levaria a uma ditadura de uma inexplicável “razão suprema mundial” traduzida pelo Direito Internacional, absolutamente inaceitável.

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Sobre a autora
Ileide Sampaio de Sousa

Mestra em Ordem Jurídico Constitucional pela Universidade federal do Ceará - UFC; <br>Pós graduada em Direito Processual pela Fa7 - bolsista integral;<br>Professora Universitária (Direito Constitucional; Filosofia do Direito; Hermenêutica Jurídica; Ciência Política e Teoria do Estado); e <br>Advogada.<br>e-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Ileide Sampaio. "Multilevel constitucionalism" e intervenções humanitárias: o constitucionalismo em trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3704, 22 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25031. Acesso em: 24 abr. 2024.

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