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Origens do processo penal brasileiro – um olhar sobre a atuação do Santo Ofício em Minas Setecentistas – seus valores e cultura

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Enquanto o ouro das Minas Setecentistas se perdeu pelo mundo afora, as marcas da opressão contra os judeus e os cristãos-novos, da desconfiança, da cobiça, da dissimulação continuam a luzir nos nossos usos e costumes.

Resumo: O objetivo deste artigo é traçar um retrato dos valores e cultura dos agentes da Inquisição que atuaram no Brasil Colônia, representados pelos Familiares e também pelos demais funcionários da estrutura inquisitorial. Buscaremos demonstrar que o padrão ético/religioso ditado pelo Santo Ofício moldou os costumes que nos expressam hoje. Se os preconceitos destes agentes perseguiam práticas consideradas impuras e, bem por isso, negavam a reiteração destas mesmas práticas, por outro lado, estimulavam rotinas que eram saudadas como afirmação de sua cultura e virtude, que deveriam transpassar às outras gerações. Nesta dinâmica, formou-se importante parcela do perfil da cultura brasileira. Sob o signo do pecado, a Igreja Católica impunha suas verdades, perseguia através do processo inquisitorial seus contrários, não restando aos marginais a seus cânones senão a dissimulação, como única fuga para a sobrevivência.

Palavras-chave: Inquisição – Tribunal do Santo Ofício – minas setecentistas – judeus - cristãos-novos – delação – processo inquisitorial – perseguição - familiares – valores - cultura

Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. O PECADO. 3. A PERSEGUIÇÃO. 4. A DISSIMULAÇÃO. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

Não existe pecado do lado de baixo do Equador

Chico Buarque


INTRODUÇÃO

A América Portuguesa não contou com a instalação de um Tribunal do Santo Ofício em seu território. Esta ausência não impediu que a Inquisição, desde Portugal, exercesse seu poder no Brasil, utilizando-se para tanto de vários mecanismos de afirmação de sua jurisdição[1].

Embora o Santo Ofício não tenha se estabelecido em caráter permanente no solo da Colônia, a partir de 1579 as visitações que se fizeram presentes no Brasil deixaram marcas indeléveis de sua passagem. Contabiliza-se que aproximadamente dois mil brasileiros foram presos, julgados e condenados em Portugal.

A presença da Santa Inquisição em solo brasileiro se dava através das Visitações Diocesanas, também conhecidas como Devassas ou Visitações Episcopais, bem como através das Visitações Pastorais.

As Visitações Diocesanas caracterizavam-se por poder receber denúncias, ouvir testemunhas e punir os contraventores das orientações da Igreja. As Visitações Pastorais, de caráter brando e admoestativo, tinham o condão de permitir orientações do bispado para seu rebanho[2].

A Inquisição Portuguesa, uma máquina em prol da ideologia da Igreja Católica e do domínio do Império Lusíada, buscava cumprir seu papel de formatação dos usos e costumes, negando o que fosse pernicioso para a continuidade do status quo, afirmando o que auxiliava na perpetuação de seu poder.

Foi assim que esta mesma Inquisição buscou alargar o número de agentes, permitindo que surgisse uma rede de funcionários civis[3] que fizessem as vezes da contenção da comunidade. Estes eram os Familiares do Santo Ofício. Ao lado dos homens do clero (comissários e notários), estes homens leigos formavam o braço do Sistema Inquisitorial. Era por meio deles que a Inquisição se ramificava e se fazia presente até nos confins das Minas[4].

Os Familiares do Santo Ofício assumiram papel de destaque na ação inquisitorial em Minas[5].

Atraídos pelo prestígio de pertencerem aos quadros da Santa Inquisição[6], por vezes; desejosos de encontrar no título de Familiar do Santo Ofício um remanso para se verem livres de perseguições e difamações, por outras; estes familiares exerciam com ardor a tarefa de condicionarem a sociedade aos parâmetros ditados pela Igreja.

Homens leigos e de “sangue limpo”, os Familiares permitiram a potencialização da presença da instituição em toda a esfera da comunidade setecentista. Por meio deles, transportando os limites rígidos ditados pelos normativos da instituição, o Santo Ofício conseguiu se estabelecer em cada veio da colônia em vias de civilização, moldando o que viria a ser a idiossincrasia de nossa gente.

Eram os Familiares, os funcionários da inquisição (inquisidores, comissários e notários) e os demais integrantes do clero a teia de vigília e punição criada pelo Vaticano. Para este ambiente de censura e repressão contribuía também o próprio povo, com suas confissões e delações das vicissitudes da carne.

Tenta-se demonstrar neste artigo que muitos costumes dos brasileiros do atual século XXI trazem o registro do que foi gravado à brasa no século XVIII e seus entornos[7], período também chamado de Setecentismo, com o auxílio do processo inquisitorial e sob o signo do pecado, da perseguição e da dissimulação.


2  O PECADO

As visitações do Santo Ofício na Colônia seguiam algumas rotinas burocráticas que serviram para registrar para a posteridade o seu funcionamento e abrangência. Um dos institutos da visitação era o edital de visita. Este importante documento destinava-se a declarar os solenes objetivos da visita aos “vigários, os curas, os coadjutores, os capelães curados, as demais autoridades eclesiásticas e seculares e o “povo” da freguesia a ser percorrida”[8].

O edital, por sua descrição minuciosa dos pecados a serem submetidos à devassa espiritual, possibilitava exame ímpar dos conceitos e parâmetros da ética religiosa dominante à época.

Caio Boschi[9], ao discorrer sobre as “Visitações Diocesanas e a Inquisição na Colônia”, cita emblemático edital datado do segundo semestre de 1733, onde são encontrados alguns “pecados públicos e escandalosos”: heresia, apostasia[10], leitura de livros hereges, blasfêmia contra a honra de Deus, feitiçaria, bigamia, crimes contra a dignidade sexual, simonia[11], incesto, falso testemunho, jogatina etc.

Observando o quadro extenso que elenca com antecipação as mazelas a serem perquiridas e punidas pela visitação do Santo Ofício, vê-se que a Igreja buscava o ideal da completa submissão às suas ordens e desígnios do que seria um bom fiel. Eram tantas as exigências para se adequar ao modelo de crente exemplar que seria honesto dizer que não existisse tal figura.

Neste sentido,

os interrogatórios da visita diocesana cobriam um amplo e diversificado elenco de delitos, passando em revista toda a vida social e cristã de cada paróquia, tanto quanto possível sondando a fundo a pureza da fé, da religião e dos costumes de cada igreja e freguesia visitadas[12].

Muitos imigrantes que no Brasil aportavam fugiam das perseguições sofridas além-mar e, por isso, já traziam o estigma da marginalidade. Outros se aventuravam no novo mundo e traziam consigo o impulso menos nobre da ganância, que alargava continuamente os limites dos princípios morais.

Neste contexto, o Santo Ofício tentava abraçar todas as possibilidades de transgressão à sua crença de mundo correto, criando a contradição de deixar a todos subjugados à sua sentença de pecado e castigo[13]. Se era improvável um temente se ver livre do pecado, menos improvável era se livrar da correção estipulada pelas ordens eclesiásticas. O manto do pecado e da reconciliação se estendia obrigatoriamente a todos.

Com a intenção institucionalizada de encontrar “bodes expiatórios” para as práticas mundanas, o abuso do poder inquisitorial sobressaia-se às pseudo-garantias dos inculpados:

Vê-se, pois, que o rito processual das visitas diocesanas era extremamente simples e sumário. Ao não questionar a confiabilidade e idoneidade das declarações do denunciante, o visitador eximia-se também de proceder às diligências indispensáveis à apuração da veracidade da denúncia. Uma só denúncia era suficiente para a formação da culpa, dispensando o exame de sua substância e sua qualificação. As particularidades e circunstâncias dos delitos eram desprezadas. Não se concedia ao acusado a faculdade de se defender. Por conseguinte, a pronúncia, literalmente, já era a sentença, isto é, a punição inexorável e inapelável. Cabe então indagar se nas visitas pastorais havia julgamento stricto sensu, quando nada porque, do ponto de vista formal, julgar pressupõe apresentar o libelo de acusação e oferecer o direito de defesa. Nas visitas, esse rito processual não existia em primeira instância. Em outras palavras, na maioria dos casos, o processo não ultrapassava a fase de instrução, de vez que a sentenciação era sumária[14].

Nesta dinâmica, o pecado era a regra para ser a regra a submissão do perdão. Quem pecava devia se sujeitar ao poder eclesiástico para ter a possibilidade de ver perdoadas suas ofensas. Pecado e perdão, “grilhões de falsos valores e palavras ilusórias”[15], eram certezas insofismáveis, nas sombras daquela época, conhecida como “século das Luzes”[16].

Assim é descrita a postura desta era dos pecados:

Quer seja para revigorar a fé, quer para redenção e alívio dos pecados, quer ainda para garantir a sua salvação e proteção divina, livrando-se da temível excomunhão, o homem colonial, particularmente aquele que vivia em uma sociedade tão promíscua como a da região mineradora, diante do tom ameaçador dos editais de visita, não titubeava em cumprir prontamente os ordenamentos prescritos naqueles termos[17].           

Mas, para que pecado houvesse, era necessário que estivesse o sujeito submetido à ordem de valores que assim classificava a conduta pervertida. Era preciso converter o maior número de não cristãos, para que estivessem todos sob os ditames da Santa Igreja e sob seu jugo.

Foi nesse sentido que, bem antes do século XVIII, ainda em 1497, em Portugal, o Rei D. Manuel converteu de uma só vez milhares de pagãos (judeus em sua maioria) em cristãos-novos, podendo, a partir daquele momento, afirmá-los hereges, quando não afinados com o propósito da fé reinante, quando assim exigisse a máquina de dominação do Santo Ofício.

Pecado era o ato que negava as práticas cristãs, mas, sobretudo, o ato que permitia a visão de que outras práticas religiosas coexistiam e eram possíveis de convivência ecumênica. Desta maneira, qualquer prática judaicizante era pecado do mais grave e poderia culminar na abjeta tortura ou na pena capital para a ovelha desgarrada.

Interessante notar que muitas vezes o poder do Santo Ofício ultrapassava o limite religioso para abarcar contravenções seculares. Não eram isoladas as punições levadas a cabo por clérigos a partir de comportamentos irregulares praticados por cristãos (novos ou velhos) em detrimento de valores materiais e não só espirituais.

Lembre-se aqui que esta conjunção entre Estado e Igreja restava óbvia no instituto do Padroado, assim delimitado:

O Padroado teria, em resumo, consistido no controle das nomeações das autoridades eclesiásticas pelo Estado, que deteria ainda a direção das finanças da Igreja, através da arrecadação dos dízimos. De tal forma a Igreja estaria envolvida nas malhas administrativas do governo, que, ao vulgo, seria difícil enxergá-la como entidade autônoma[18].

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Patrícia Ferreira Santos[19] argumenta que Estado e Igreja, “havendo alcançado, através do Padroado, o comum objetivo de complementariedade, talvez se confundissem institucionalmente”.

Frente a esta correlação, embora os visitadores tivessem os seus poderes de julgamento e punição circunscritos a pecados e crimes menores, os de maior gravidade eram encaminhados ao Tribunal do Santo Ofício em Portugal, instância superior do poder espiritual que, muitas vezes, se debruçava sobre causas laicas.

Desta forma,

Os visitadores episcopais, mesmo que não orientados diretamente pelas autoridades civis, prestavam a essas uma notável colaboração, pois que os delitos e faltas que descobriam e denunciavam – e mais do que isso, julgavam e condenavam [...] não eram de natureza exclusivamente espiritual.[20]

Esta promiscuidade entre o poder secular e espiritual na perseguição dos pecados e crimes, por vezes, chegava a criar atritos entre as duas esferas, quando abusos cometidos por visitadores eram motivo de forte reação dos governantes e população da capitania visitada[21].

Ao poder da Igreja e do seu braço inquisidor, o Santo Ofício, era permitido se imiscuir nas questões seculares talvez porque àquela época fosse conveniente ao Império Português esta simbiose na dominação dos povos. Também era conveniente à ideologia cristã conservadora manter-se sob e ao lado da força que detinha o domínio do território e das armas.

Desta maneira, o pecado se confundia entre a contradição com os mandamentos do espírito e com as regras do direito civil. Atentar contra o Império seria atentar contra a mesma ordem de dominação em que estava inserida a faceta religiosa[22].

Duas lutas havia nesta larga classificação das atitudes como pecado: a luta pela imposição da doutrina religiosa cristã católica no novo mundo e a luta de dominação territorial e política do Império Luso. Ambas se completavam.

Enquanto a Igreja lutava e queimava milhares nas fogueiras do Santo Ofício, para manter e infundir a sua dominação contra o judaísmo, o islamismo e um pequeno mosaico de outras crenças, a Metrópole Portuguesa buscava desvencilhar sua colônia das incômodas invasões dos reinos da França e Holanda e da perigosa vizinhança, formada pelos largos limites do reino de Espanha.

Segundo o dogma vigente, era tempo de buscar a pureza da alma, do sangue e a libertação dos pecados. Numa visão crítica, era tempo de buscar crime/pecado em tudo aquilo que não potencializasse a dominação do Império Português e da Igreja Católica sobre as riquezas da Colônia.


3 A PERSEGUIÇÃO

As Minas Setecentistas eram cobiçadas pela promessa de enriquecimento rápido e fácil. Era do conhecimento do mundo que aqui o ouro minava[23], para alegria e preocupação da Coroa.

João Antônio de Paula[24] nos conta que “a notícia dos achados auríferos espalhou-se, comoveu e arrastou grandes ondas migratórias em Portugal e na Colônia. Cabedais e pessoas deslocaram-se em função da mineração [...]”.  

Não foi sem razão que milhares de europeus tiveram aqui refúgio, desejando da bonança, que fazia história, seu quinhão.

No entanto, Luciano Figueiredo[25] relata que nem tudo reluzia, uma vez que:

Na altura em que chegam a Portugal as cartas com notícias de metais preciosos no sertão de São Paulo, no final do século XVII, o reino europeu estava calejado de guerras e quimeras. As minas gerais do sertão de São Paulo nascem sob o signo da resignação e da suspeita.

Contrapunha-se à constatação da farta oferta da natureza, a mísera condição daquela gente.

Junto à promessa de enriquecimento fácil, demonstrada falsa para muitos, havia questões opostas como a fome, trabalhando num mesmo contexto histórico. Neste sentido, “as crescentes levas de migrantes que chegavam às minas eram recebidas tanto com o sucesso dos achados preciosos, quanto, muitas vezes, com a fome”[26].

Apesar dos infortúnios, a cobiça, sede humana comum a todas as etnias, conseguia mover judeus e portugueses, em comuns desígnios:

A cobiça é uma entidade mórbida, uma doença do espírito, com seus sintomas, suas causas e evolução. Pode absorver toda a energia psíquica, sem remédios para o seu desenvolvimento, sem cura para os seus males. Entre nós, por séculos, foi paixão insatisfeita, convertida em ideia fixa pela própria decepção que a seguia. Absorveu toda a atividade dinâmica do colono aventureiro, sem que nunca lhe desse a saciedade da riqueza ou a simples tranqüilidade da meta atingida. No anseio da procura afanosa, na desilusão do ouro, esse sentimento é também melancólico, pela inutilidade do esforço e pelo ressaibo da desilusão[27].

Entre os judeus que se sentiram atraídos pela Colônia Portuguesa, fundiu-se o medo da perseguição que sofriam na Europa, a promessa de uma nova vida e a esperança da riqueza. Os judeus e cristãos-novos vieram aos montes para os arredores das Minas, ao ponto de despertarem a preocupação do Estado e da Igreja.

Muitas vezes convertidos ao catolicismo, infiltraram-se no clero, utilizando-o como salvo conduto e ponte para o estabelecimento na colônia aurífera. Não sem lógica, a Igreja, impulsionada por pressão do Império, excomungava e extirpava de seus quadros os reconhecidamente praticantes da simonia e apostasia. O cenário era propício para a incorporação ao clero de pessoas sem fé, que ali tão somente buscavam uma entrada nas minas.

Assim, nas palavras de Caio Boschi[28]:

[...] as determinações metropolitanas no sentido de proibir o estabelecimento de ordens religiosas ou de clérigos sem ocupação em atividades espirituais integram um conjunto de medidas que o Estado absolutista português tomou desde o momento em que, no início de Setecentos, resolveu estabelecer-se formal e ostensivamente na zona mineradora.

Neusa Fernandes[29] realça que, naquele momento, “os principais acusados de sonegação foram os frades franciscanos. Representantes das diversas ordens se tornaram mineiros, com o objetivo de adquirir cabedais, por quaisquer meios, ainda que ilícitos”.

Se, dentre os cobiçosos, muitos eram judeus e traziam consigo maestria no trato do capital, urgia persegui-los, reascendendo a crueldade atávica do antissemitismo. Assim, parecia conduzir a orientação do Império Lusitano e da Igreja.

Junto com a perseguição a pecados que atingiam também os cristãos-velhos, o rol de práticas destinadas a fulminar os cristãos-novos ou judeus era numeroso[30].

Perseguia-se a prática de qualquer atividade que lembrasse cultos judaicos, bem como demonstrações de ausente incorporação carola dos ritos católicos.

Além de viabilizar a aplicação das cruéis penas previstas, o sistema processual inquisitivo buscava algo mais que permitir a punição do herege, pois tinha como finalidade “a conversão e emenda do acusado de heresia (ad delinquentis correctionem)”[31].

Assim, a perseguição dos recalcitrantes se fazia com toda a instrumentação viável e possuía, como vítimas prioritárias, os filhos de Israel.

Interessante que a vigília dos costumes das pessoas suspeitas de serem praticantes do judaísmo era feita também e, sobretudo, sobre a rotina familiar, uma vez que:

No Brasil, como em Portugal, a casa foi, para conservação da religião judaica, mais importante que a escola e que a própria sinagoga. As condições históricas transformaram a família na principal responsável pela transmissão das cerimônias e pela manutenção das práticas religiosas. A família se mantinha reunida principalmente na prática do Shabat, quando a refeição era feita em conjunto, com velas acesas e preces oferecidas pela mulher. O Shabat judaico se inicia na sexta-feira e vai até sábado à noite[32].

A persecução patrocinada pela estrutura oficial do Santo Ofício (inquisidores, comissários e notários) era seguida em sua cartilha pelos Familiares daquela ordem. Muitos Familiares, depois de recebido o título, tornavam-se sedentos inquisidores a serviço da purificação.

Nesta época há a valorização extrema da delação. Ainda que com rechaço à falsa imputação de pecado ou heresia[33], a delação desenvolvia-se como poderoso aliado do Santo Ofício.

Sobre a cultura da denúncia, Caio Boschi[34] esclarece:

A denúncia estava na razão de ser da visita, dado o feitio intimidatório e ameaçador dos textos dos editais. Várias eram as razões que levavam os indivíduos a denunciarem, cabendo lembrar, dentre outras, a convicção, o zelo e a fidelidade religiosos; o temor da ira divina ou da excomunhão; o desencargo de consciência; o mero ímpeto colaboracionista com a Igreja; o desejo de vinganças pessoais; o ódio ou a simples inveja em relação ao denunciado.

Lembre-se que o sacramento da penitência e da reconciliação[35], instituído pelo Concílio de Trento no ano de 1546, trouxe o rito da confissão dos fiéis e criou rapidamente o maior meio de cooptação de informações em escala mundial. Pode-se dizer que a Igreja Católica tornou-se potencialmente a mais promissora das “agências de inteligência”. Em cada rincão passava a existir um pároco pronto a receber a confissão obrigatória do cristão, e guardar no seio da Igreja as informações pecaminosas daquela alma.

E nas Minas Setecentistas não havia pudor na utilização corriqueira da delação como forma de perseguição dos pecadores e hereges.

Não é de se espantar a cultura do povo mineiro, sobretudo em cidades menores, em perquirir a vida particular de seu vizinho. A valorização da delação entranhou-se de tal forma no imaginário do mineiro que se quer saber mais do que permite o singelo laço de vizinhança, numa intrusa insatisfação com o que é ofertado. O que seria a popular “fofoca” senão este exercício institucionalizado de investigar a vida alheia?

Lembre-se que, mais adiante, nos idos de 1789, a Inconfidência Mineira foi marcada justamente pela famosa delação do conspirador Joaquim Silvério dos Reis, eternizada por Cecília Meireles[36]:

Assim se forjam palavras,

assim se engendram culpados;

assim se traça o roteiro

de exilados e enforcados:

a língua a bater nos dentes...

Grandes medos mastigados...

O medo nos incisivos,

nos caninos, nos molares;

o medo a tremer nos queixos,

a descer aos calcanhares;

o medo a abalar a terra,

o medo a toldar os ares;

o medo a entregar amigos

à sanha dos potentados;

a fazer das testemunhas

algozes dos acusados.

Jonathan Schorsch[37] confirma esta hipótese, dizendo que “essas redes de comunicação pessoal, fofocas e rumores, que frequentemente cruzavam fronteiras de classe e de raça, contribuíram para a construção do conhecimento do qual se alimentaram as inquisições”.

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Sobre o autor
Johnny Wilson Batista Guimarães

Mestre em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, bacharel em Direito pela mesma Faculdade, especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera, com extensão universitária em formação para o magistério superior. Habilitado pela OAB/MG. Escrivão de Polícia Federal, classe especial, com ingresso na carreira em 1997, atualmente lotado e em exercício na Superintendência Regional da Polícia Federal em Belo Horizonte/MG na Delegacia de Prevenção e Repressão a Crimes Fazendários.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Johnny Wilson Batista. Origens do processo penal brasileiro – um olhar sobre a atuação do Santo Ofício em Minas Setecentistas – seus valores e cultura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3708, 26 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25044. Acesso em: 21 nov. 2024.

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