Resumo: Ao contrário do que ocorre em outros países democráticos, personalidades e artistas brasileiros têm o privilégio de proibirem a publicação de suas biografias. O presente artigo visa analisar justamente a importância do conhecimento da vida dessas celebridades, a fim de proteger as pesquisas históricas como processo de formação cultural da nação. Para tanto, buscar-se-á demonstrar que, diante de relevante interesse público e não mera curiosidade popular, o direito à informação pode se sobrepor aos direitos da personalidade, ainda que tal limitação não esteja expressamente positivada em regras jurídicas. Infelizmente, as discussões a respeito do artigo 20 do Código Civil, ao restringirema publicação da biografia à vontade do biografado, demonstram a supremacia do princípio da vida privada em detrimento à liberdade de informação.
1. INTRODUÇÃO
Os textos biográficos sobre personalidades célebres há muitos anos despertam os interesses das pessoas. Por meio do estudo de tal gênero literário é possível elucidar vários temas da história da humanidade, ultrapassando a mera curiosidade popular.
O artigo 20 do Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/2002) contemplou a utilização de biografias apenas em casos de permissão do biografado, quando necessárias à administração da justiça ou ainda à manutenção da ordem pública.
Em contraposição, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, garante tanto o direito à privacidade como à liberdade de expressão e informação. Dessa forma, fundada no princípio democrático, a CF/88 protegeu igualmente a liberdade de manifestação do pensamento, bem como o rol de direitos fundamentais, dentre estes, os direitos da personalidade.
Neste contexto, existe uma grande dificuldade de se estabelecer o que é direito à intimidade e o que é direito à vida privada. Tem-se, portanto, uma falsa impressão de que todos os direitos elencados no inciso X do art. 5º da CF/88 possuem o mesmo significado, o que na verdade é um equívoco. A distinção entre liberdade de expressão e direito à informação também se revela de grande importância para a delimitação das responsabilidades decorrentes do exercício desses direitos fundamentais.
Percebe-se, então, o quão envolvente torna-se o debate a respeito de biografias não autorizadas, já que protagonizam uma colisão entre os princípios constitucionais envolvendo a liberdade de expressão e informação em face da privacidade. É preciso compreender, que não se resolve a colisão entre dois princípios suprimindo um em favor do outro, como no caso de antinomias de regras jurídicas.
É preciso compreender que o limite à intimidade das pessoas célebres decorre do interesse público e das exigências de ordem histórica, uma vez que ultrapassa a mera curiosidade, alcançando, assim, projeção social.Com isso, quando a questão aborda a intimidade de uma pessoa pública, o limite imposto acaba decorrente do interesse público e das exigências de ordem histórica.
É neste contexto que se faz necessária a permissão do estudo de biografias, mesmo que não autorizadas, a fim de se proteger as pesquisas históricas, em meio a uma população deficiente de memória cultural.
2. BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA
2.1. Conceito de Biografia
Não há como negar o fascínio exercido pelas biografias. Raros são os que se prostram indiferentes diante dos embates, fracassos e vitórias presentes na vida alheia. Não é à toa que tal sucesso de público se faz presente há mais de 2000 mil anos.
Biografia é o relato da vida de uma pessoa e dos aspectos de sua obra, frequentemente de um ponto de vista crítico e não apenas historiográfico. Como todo gênero literário, assumiu diversas formas de expressão ao longo do tempo. Os mais antigos relatos biográficos conhecidos confundem realidade e mitologia. Modernamente, a teoria psicanalítica influenciou várias gerações de biógrafos e outra corrente preferiu a composição artística, que resultou na biografia romanceada.
Hoje, por mais que se tente negar, os eventos históricos são explicados também pela biografia de grandes homens, de personagens marcantes, em vidas concretas, capazes de captar fatos e acontecimentos, ou seja, a verdadeira História da humanidade.
Portanto, biografar é descrever a trajetória de um ser, traçando-lhe a identidade por meio de palavras, interpretá-lo, reconstruí-lo, revivê-lo. Não se biografa em vão, mas sim motivado por uma série de intenções. Biografa-se para elogiar, criticar, descobrir, negar, santificar, eternizar. A princípio, o ato de biografar pode parecer desnecessário ou inclusive oportunista. Entretanto, não se pode negar a importância histórica que exerce, quando relacionado à deficiência de memória da população.
A importância da biografia pode ser suficientemente demonstrada pela sua impressionante resistência ao longo dos séculos, como gênero literário e como fonte historiográfica. Além disso, tais situações comprovam sua utilidade como instrumento de compreensão do mundo humano e dos indivíduos que o integram.
2.2. Proteção Jurídica
O Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/2002), em seu artigo 20, contemplou apenas três possibilidades para a utilização da biografia:
Art.20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Dessa forma, “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública” é que o público pode ter acesso às informações sobre as personalidades da história.
Entretanto, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, garante tanto o direito à privacidade como à liberdade de expressão e informação. Assim, fundada no princípio democrático, a CF/88 protegeu igualmente a liberdade de manifestação do pensamento, bem como o rol de direitos fundamentais, dentre estes, os direitos da personalidade.
De acordo com o artigo 5º da CF/88, incisos IV, IX e XIV, os quais tratam dos direitos e deveres individuais e coletivos, a liberdade de expressão e informação compreende a faculdade de expressar livremente ideias, pensamentos e opiniões, bem como o direito de comunicar e receber informações verdadeiras sobre fatos, sem impedimentos nem discriminações. De igual sorte, prevê também o artigo 220, transcrito na CF/88: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
O objeto da liberdade de expressão compreende os pensamentos, ideias e as opiniões, enquanto que o direito à informação abrange a faculdade de comunicar e receber livremente informações sobre fatos noticiáveis.
A referida distinção entre liberdade de expressão e de informação faz-se necessária devido ao âmbito de proteção da mesma, bem como para a demarcação dos limites e responsabilidades decorrentes do exercício desses direitos fundamentais.
De acordo com José Afonso da Silva, o direito de informar, como aspecto da liberdade de manifestação do pensamento, revela-se um direito individual, mas já contaminado de sentido coletivo, em virtude das transformações dos meios de comunicação, que especialmente se concretiza pelos meios de comunicação social ou de massa, envolve a transmutação do antigo direito de imprensa e de manifestação do pensamento, por esses direitos, em direitos de feição coletiva.[1]
Já os direitos da personalidade abrangem a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização por dano material ou moral e são garantidos tanto pela CF/88, em seu artigo 5º, inciso X, como pelo Código Civil, no referido artigo 12, que trata dos direitos da personalidade: “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.
Consoante adverte Maria Helena Diniz:
A personalidade consiste no conjunto de caracteres da própria pessoa. A personalidade não é um direito, de modo que seria errôneo afirmar que o ser humano tem direito à personalidade. A personalidade é que apoia os direitos e deveres que dela irradiam, é objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens.[2]
De acordo com o Código Civil, protege-se a vida privada, os escritos, as palavras e também a imagem da pessoa, pela proibição da divulgação e pelo estabelecimento da indenização cabível. Assim, conforme artigo 21, do Código Civil Brasileiro: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Na lição de Diogo Leite de Campos, a pessoa não é só privada, íntima, reservada, quando passa a porta de sua morada, quando correm as cortinas. Na rua, nos edifícios públicos, nos jardins, a pessoa continua envolta numa esfera privada. Veste-se, manifesta-se como entender, sem que os outros possam invadir essa esfera.[3]
Portanto, são os diversos aspectos da vida pessoal, familiar ou profissional do indivíduo que ele não quer que sejam devassados. Neste sentido, exigindo respeito às confidências, dados pessoais, recordações, memórias, diários, relações familiares ou amorosas, mantendo-as longe do conhecimento público.
Destarte, percebe-se o quão envolvente torna-se o debate em torno de biografias não autorizadas, já que protagonizam, claramente, uma colisão entre os direitos da personalidade e garantias constitucionais, como os princípios envolvendo a liberdade de expressão e informação em face da privacidade. Eis o principal mote sobre o tema ora em questão.
3. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA BIOGRAFIA
3.1. Categorias de Normas: Princípios e Regras
A norma jurídica apresenta-se como um comando, um imperativo dirigido às ações dos indivíduos. Trata-se de uma postura voltada à conduta social, com a finalidade de regular as atividades dos sujeitos nas suas relações com a sociedade. Portanto, a norma jurídica imputa certa ação ou comportamento a alguém, ou seja, ao seu destinatário.
Segundo o entendimento de Miguel Reale “o que efetiva uma norma jurídica, de qualquer espécie, é o fato de ser uma estrutura proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória”.[4]
Como célula do ordenamento, a norma jurídica apresenta-se como um corpo sistematizado de regras de conduta, caracterizadas pela coercibilidade e imperatividade, dividida ainda em duas partes: suporte fático ou conduta e consequência jurídica ou sanção. A primeira abrange o conjunto de elementos de fato previstos abstratamente na norma, cuja ocorrência é imprescritível à incidência da regra jurídica a um caso concreto. Já a segunda aborda vantagem a ser conferida a um dos sujeitos da relação (direito subjetivo), e a desvantagem correlata a ser suportada pelo outro dessa mesma relação (dever jurídico).
De acordo com Hans Kelsen, que efetivamente trouxe uma preciosa contribuição ao esclarecimento do assunto, a norma jurídica é sempre redutível a um juízo ou proposição hipotética, na qual se prevê um fato (F) ao qual se liga uma consequência, de conformidade com o seguinte esquema: se F é, deve ser C. [5]
Entretanto, essa estrutura lógica corresponde apenas a certas categorias de normas jurídicas, como, por exemplo, as destinadas a reger os comportamentos sociais, mas não se estende a todas as espécies de normas como, por exemplo, as de organização, as dirigidas aos órgãos do estado ou as de organização pública ou privada. Nestas espécies de normas nada é dito de forma condicional ou hipotética, mas sim categórica, excluindo qualquer condição.[6]
O que distingue as normas jurídicas das demais (morais, religiosas e de controle social) é sua obrigatoriedade, ou seja, sua cogência, já que o cumprimento da norma jurídica é imposta pelo Estado. Entretanto, uma norma não se faz só, pois nas palavras de Norberto Bobbio: “O Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo”.[7]
Sendo assim, as diversas normas com as quais o homem vai se deparando no seu crescimento e na sua vida em sociedade não possuem a mesma natureza. A sociedade moderna possui diversos tipos de sistemas normativos, dentre eles a Moral, a Religião, as regras de trato social e o Direito. Este último considerado o mais importante, na medida em que controla o comportamento humano de forma vinculante e imperativa.
A análise da estrutura das normas jurídicas que compõem o ordenamento positivo revela que estas apresentam, segundo classificação que ora se utiliza, duas espécies: princípios e regras.
Uma regra é uma norma cuja aplicação possui como fase central de sua argumentação a subsunção de uma situação de fato a uma previsão normativa. Já os princípios não são jamais entre si incompatíveis, mas sempre concorrentes, ou seja, aplicar um princípio implica também aplicar outros princípios com ele concorrentes no sentido de se alcançar o mínimo de restrição dos mesmos.
No entendimento de Paulo Nader:
As expressões norma e regras jurídicas são sinônimas, apesar de alguns autores reservarem a denominação regra para o setor da técnica e, outros, para o mundo natural. Distinção há entre norma jurídica e lei. Esta é apenas uma das formas de expressão das normas, que se manifestam também pelo Direito costumeiro e, em alguns países, pela jurisprudência.[8]
A regra apenas exprime a ordem jurídica, ou seja, trata-se de uma criação do intérprete. Assim, apresenta-se como um veículo ou instrumento de que ele serve, como mediador para a solução do caso, sendo um modo de expressão da ordem. Podem ser consideradas como um padrão comportamental a ser seguido, que viabiliza a vida em sociedade, determinando padrões de obrigatoriedade, permissão e proibição.
Já os princípios têm sua origem no ordenamento jurídico positivo e podem ocorrer de duas maneiras. A priori são expressamente previstos pelo direito positivo (na Constituição, na lei), gerando assim os explícitos ou positivos. Por outro lado, não se encontram arraigados a nenhuma disposição de norma, já que são extraídos do ordenamento pelos operadores jurídicos, por meio de um processo interpretativo, gerando os princípios implícitos ou gerais do Direito.
Princípio é por definição de Celso Antônio Bandeira de Mello:
[...] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.[9]
Quanto à distinção substancial contemporânea entre princípios e regras, existem múltiplos argumentos para justificá-la, como a ideia de peso ou importância dos mesmos e a identificação dos princípios como mandados de otimização. Estes possuem uma dimensão do peso ou importância ausente nas regras, revelada claramente quando dois ou mais princípios entram em antinomia. Neste caso, a solução deve levar em conta o peso ou importância de cada um, a fim de se escolher quais deles prevalecerão ou sofrerão menos constrição do que os outros. Já as regras jurídicas não possuem essa dimensão, uma vez que em caso de conflito, apenas uma delas poderá ser válida.
Dentro do ordenamento jurídico em que operam, os princípios são ponderáveis, isto é, possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas:a dimensão do peso. Assim, conforme entendimento de Eros Grau, quando se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles. Contudo, as regras não possuem tal dimensão. Se duas regras se entrechocam, elas não são ponderáveis, de modo a que possam ambas ser aplicadas ao mesmo tempo por ponderações diferentes, tendo cada uma o seu peso próprio, de acordo com a historicidade com que se inseriram ou a logicidade com que se harmonizam no ordenamento jurídico em que habitam. Em suma: dois princípios em conflito podem ser ambos válidos ao mesmo tempo segundo pesos próprios e diversos, ao passo que, se duas regras entram em conflito, uma delas não é válida.[10]
Segundo Ronald Dworkin, a distinção entre princípios e regras apresenta caráter lógico e se baseia na ideia sobre peso ou importância dos princípios. Tal ideia ampara-se no fato de que os princípios “não expressam consequências jurídicas que se seguem automaticamente quando se dão as condições previstas”. Ao contrário, “se ocorrerem os fatos estabelecidos por uma regra, então: ou a regra é válida, e em tal caso, deve-se aceitar a resposta que ela fornece; ou a regra é inválida, e em tal caso, não influi na decisão”.[11]
Outra diferença encontrada por Dworkin implica na questão de que os princípios possuem uma dimensão do peso ou da importância ausentes na regra, ou seja, em caso de conflito entre si, a colisão seria solucionada levando-se em conta o peso ou importância relativa de cada princípio. Já as regras jurídicas não possuiriam tal dimensão, uma vez que no caso de conflito entre duas regras, apenas uma delas poderá ser válida. Dessa forma, as concepções de Dworkin levam a conceber o direito como um sistema composto de princípios e regras, chocando-se assim com a concepção positivista que representa o direito como um sistema de regras apenas.[12]
Já o escritor germânico Robert Alexy defende a ideia de que entre princípios e regras existe não só uma diferença gradual como também qualitativa, ou seja, analisa-os como mandados de otimização. Para ele os princípios se caracterizam pelo fato de poderem ser cumpridos proporcionalmente às condições reais e jurídicas existentes, enquanto as regras devem ser cumpridas ou não. Em caso de conflito entre regras, deve ser introduzida uma cláusula de exceção ou declarar uma das regras inválida, enquanto no caso dos princípios deve-se prevalecer um deles sobre o outro, não significando que o princípio preterido deva ser declarado inválido.[13]
Dessa forma, sob determinadas condições, um princípio teria mais peso ou importância do que em outras circunstâncias. De acordo com Alexy há a existência de uma íntima conexão entre a teoria dos princípios e a máxima da proporcionalidade, ou seja, na hipótese de colisão de princípios, a efetivação dos mesmos dependerá dos princípios opostos, e a escolha dos que prevalecerão no caso concreto será conduzida pela ponderação dos princípios em jogo.
De qualquer maneira, é faculdade do julgador formular solução adequada ao fato concreto, com a observância das normas específicas ao caso, ou seja, respeitando as regras e princípios, a fim de manter a integridade dos direitos em questão.
3.2. Princípio Constitucional da Vida Privada
Em razão da ampla publicidade que, de maneira indevida, devassa cada vez mais a vida privada, a intimidade e a honra das pessoas, denegrindo sua imagem, o legislador inseriu no texto constitucional de 1988 a proteção prevista no artigo 5º, inciso X, o qual trata dos direitos e deveres individuais e coletivos: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Percebe-se que existe uma grande dificuldade de se estabelecer o que é direito à intimidade e o direito à vida privada. Daí tem-se uma falsa impressão de que todos os direitos elencados no inciso X do art. 5º da CF/88, possuem o mesmo significado, o que na verdade não ocorre.
Apesar dos conceitos constitucionais de intimidade e vida privada apresentarem uma grande interligação, podem ser diferenciados pelo fato do primeiro rejeitar qualquer espécie de interferência, quer pública ou privada, enquanto o segundo abrange a interferência do conhecimento público.
De acordo com Ariel Dotti a intimidade seria “a esfera da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais”. [14] Ainda a fim de elucidar a distinção, José Cavero estabeleceu os seguintes conceitos:
[...] privacidade, que tem em conta a esfera da vida individual nucleada na ausência do público, ou seja, na esfera de comodidade onde as relações sociais exteriores ao núcleo familiar permanecem resguardadas, ou, em melhor expressão, confinadas no próprio núcleo familiar, repugnando qualquer intromissão alheia. Outro, de intimidade, ainda mais restrito que o de privacidade, que tem em vista exatamente essa interpessoalidade da vida privada.[15]
Dessa forma, constata-se que intimidade é algo a mais do que a privacidade, ou seja, a intimidade caracteriza-se por aquele espaço, considerado pela pessoa como impenetrável, intransponível, indevassável e que, portanto, diz respeito único e exclusivamente à pessoa. Seriam os segredos, as particularidades, os planos, de tamanha importância que a pessoa não deseja partilhá-los com ninguém.
Já a privacidade ou vida privada abrange particularidades que dizem respeito a seus relacionamentos, lembranças, problemas envolvendo parentes próximos. Entretanto, percebe-se que neste caso a pessoa poderia partilhar com quem lhe conviesse à questão.
José Afonso da Silva adota a expressão direito à privacidade, em sentido amplo, abrangendo todas as manifestações da vida privada e íntima da pessoa. Para o autor, a privacidade seria como um “conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem isso poder ser legalmente sujeito”.[16]
De qualquer forma, quando se tenta diferenciar doutrinariamente vida privada e intimidade do indivíduo, estabelece-se uma verdadeira relação de gênero e espécie, ou seja, a intimidade seria um núcleo mais restrito da vida privada:
[...] uma privacidade qualificada, na qual se resguarda a vida individual de intromissões da própria vida privada, reconhecendo-se que não só o poder público ou a sociedade podem interferir na vida individual, mas a própria vida em família, por vezes, pode vir a violar um espaço que o titular deseja manter impenetrável mesmo aos mais próximos, que compartilham consigo a vida cotidiana.[17]
Diante de tais considerações, verifica-se que vida privada, de acordo com a CF/88, é o conjunto de modo de ser e viver, como direito de o indivíduo reger sua própria vida. Consiste ainda na faculdade que cada pessoa tem de obstar à intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a sua privacidade. Destarte, a vida privada poderia ser observada sob dois aspectos: por meio da divulgação pública dos eventos relevantes da vida pessoal do indivíduo, ou através da pesquisa de acontecimentos referentes à vida pessoal e familiar da pessoa.
Para Tércio Sampaio Ferraz “a intimidade é o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social, nem mesmo ao alcance de sua vida privada que, por mais isolada que seja, é sempre um viver entre os outros”. Mais adiante complementa “já a vida privada envolve a proteção de formas exclusivas de convivência. Trata-se de situações em que a comunicação é inevitável, das quais, em princípio, são excluídos terceiros”.[18]
O direito à vida privada, como direito fundamental de personalidade, é absoluto, indisponível, imprescritível e intransmissível. Mesmo assim, a vida privada do indivíduo apresenta, necessariamente, uma face pública, baseada nas relações sociais ou mesmo profissional. Essa exposição será maior ou menor dependendo da função social que a pessoa exerça.
Não há qualquer dúvida de que a divulgação de fotos, imagens ou notícias apelativas, injuriosas, desnecessárias para a informação objetiva e de interesse público (CF/88, art. 5º, XIV), que acarretem injustificado dano à dignidade humana autoriza a ocorrência de indenização por danos materiais e morais, além do respectivo direito de resposta. Tal dispositivo faz-se indispensável em tempos de globalização, de massificação das informações, em que os meios de comunicação representam, sempre, um fator de potencial ingresso na vida privada das pessoas.
Por outro lado, essa proteção constitucional em relação àqueles que exercem atividade pública ou ainda em relação a personalidades famosas deve ser interpretada de uma forma mais restrita, já que suas vidas despertam um maior interesse da coletividade. Porém, tal situação não afasta a proteção constitucional contra ofensas desonrosas, desproporcionais e, principalmente, sem qualquer nexo causal com a atividade profissional realizada.
3.3. Princípio Constitucional da Livre Manifestação do Pensamento
Uma das características presentes nas atuais sociedades democráticas é a liberdade de manifestação de pensamento consagrada em textos constitucionais, sendo um dos mais caros e estimados direitos do cidadão.
O reconhecimento da liberdade de expressão e informação está presente em vários documentos internacionais, como a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, aprovada pela ONU, em seu artigo 19: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Mais recentemente, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 – Pacto de San José da Costa Rica – proclama: “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Este direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda índole, sem consideração de fronteiras”. Adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José de Costa Rica, em 22.11.1969, foi ratificada pelo Brasil em 25.09.1992.
Em suma, a CF/88 procurou regular a liberdade de expressão e informação no Capítulo I, Dos Direitos e Garantias Individuais, artigos 5º, incisos IV, IX e XIV:
Art. 5º, IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
Art. 5º, IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Art. 5º, XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
De igual forma no Capítulo V, Da Comunicação Social, artigo 220 e seus parágrafos, da referida Constituição, tem-se o seguinte dispositivo:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Portanto, o texto constitucional garante, em seu todo, a liberdade de pensamento, mais ainda, e de forma explícita, o acesso à informação, inclusive preservando o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício da profissão.
A liberdade de expressão e informação deduz-se da liberdade de manifestação do pensamento e andam juntas devido ao fato da liberdade de pensamento apresentar escasso valor sem a correspondente possibilidade de o indivíduo expressar-se ou difundir-se. Apesar disso, a distinção entre liberdade de expressão e direito à informação revela-se de grande importância para a delimitação dos limites e responsabilidades decorrentes do exercício desses direitos fundamentais.
Em sentido amplo a liberdade de expressão abrange qualquer exteriorização de crença, convicções, ideias, ideologias, opiniões, sentimentos, emoções, atos ou vontades do indivíduo. Decorre, pois, da dignidade humana, quando se refere a sujeitos livres e responsáveis. Ela apresenta um âmbito de proteção mais amplo que o direito à informação, já que muitas vezes está submetida a juízos de valor, ou seja, referindo-se a uma verdade subjetiva. Tal direito compreenderia a liberdade de opinar ou transmitir informações e ideias sem que ocorra qualquer intromissão de autoridades.
Trata-se de uma liberdade fundamental que visa à exteriorização de ideias e opiniões pessoas do indivíduo, considerada base para outras liberdades, principalmente as relacionadas aos direitos da comunicação.
Enfim, é notório que a liberdade de expressão só faz sentido no âmbito público, isto é, num contexto social de livre troca de ideias, expressado pelos valores da igualdade e reciprocidade, nos quais o conteúdo dos direitos de uns depende das possibilidades do exercício de outros.
Já a liberdade de informação, a princípio, é uma interiorização de atos ou fatos que acontecem externamente, ou seja, é o dar a conhecer determinados acontecimentos. Mas além de garantir um direito individual, tal dispositivo constitucional configura ainda um direito coletivo, já que inclui o direito de o povo ser informado.
Esse direito de informação ou de ser informado, antes concebido como um direito individual, decorrente da liberdade de manifestação e expressão do pensamento, recentemente vem sendo entendido como dotado de forte interesse coletivo.
De acordo com os ensinamentos de José Afonso da Silva “a liberdade de imprensa nasceu no início da idade moderna e se concretizou – essencialmente – num direito subjetivo do indivíduo manifestar o próprio pensamento: nasce, pois, como garantia de liberdade individual. Mas, ao lado de tal direito do indivíduo, veio afirmando-se o direito da coletividade à informação”.[19]
Assim fez a CF/88, que em seu art. 5º, inciso IV, consagrou a liberdade de manifestação do pensamento, sem deixar de contemplar também a feição coletiva do direito à informação, nos incisos XVI e XXXIII do mesmo artigo.
Enfim, a liberdade de informação compreende tanto à aquisição como a comunicação de conhecimentos, ou seja, é o direito de estar informado, independente do modo de obtenção da informação, bem como o direito a tê-la e compartilhá-la.
A liberdade de expressão e informação participa de forma decisiva na orientação da opinião da sociedade democrática e como premissa para o exercício de outros direitos fundamentais.
Entretanto, tais liberdades, como qualquer outro direito fundamental, não são absolutas, tendo limites. Estas contêm deveres, responsabilidades e poderão ser submetidas a certas formalidades ou sanções previstas em lei. Em caso de abusos porventura ocorridos no exercício indevido do referido dispositivo legal, serão passíveis de exame e apreciação pelo poder Judiciário com a consequente responsabilidade civil e penal de seus autores.
Contudo, pelo fato de a liberdade de expressão e informação desfrutar de um status de direito fundamental, o Poder Judiciário, quando restringir a proteção constitucional dessa liberdade para atender interesses individuais, terá de justificar a necessidade da intervenção e só poderá efetivar a restrição por meio de lei.
Destarte, os direitos da personalidade à honra, à intimidade, à vida privada ou à imagem constituem limites à liberdade de expressão e informação. Quando esses direitos fundamentais entram em conflito, a solução para tal impasse revela-se um desafio à parte.