“A comunidade é a grande descoberta
e a grande força do Solidarismo.
Da comunidade, o homem participa
não pelo que tem, mas pelo que é”
(Pe. Fernando Bastos de Ávila,
Folhas de Outono, Ed. Loyola, 2001)
Durante a entrevista concedida pelo Sumo Pontífice aos repórteres que o acompanharam a bordo da aeronave que o transportava ao Brasil, Sua Santidade novamente celebrou a importância dos jovens nas sociedades em sua realização humana, individual, assim como em sua dimensão coletiva, de integração e solidariedade, de respeito ao próximo e como condição de possibilidade para um futuro melhor. Entretanto, o Papa Francisco logo lançou o alerta: não somente os jovens, mas igualmente os idosos merecem ter sua dignidade resguardada: “um povo só tem futuro se considera, da mesma maneira, jovens e idosos”, pois “esses possuem a sabedoria da vida e o registro da história”. E concluiu: “penso que fazemos uma injustiça com os idosos, pois os deixamos de lado”.
A mensagem, curta, porém densa em conteúdo, faz o registro sumular de uma noção fundamental, por vezes olvidada, de que a plenitude da realização dos povos somente é possível quando ocorre de forma compreensiva e abrangente, abraçando a todos indistintamente, materializando a justiça, por dar a cada um o que é seu, e reconhecendo, nas palavras de Sua Santidade, o sentido de pertenenza, de pertencimento de cada um ao todo, e de respeito ao todo por cada um.
A mensagem da solidariedade universal já fora declamada pelo Papa Paulo VI, em sua Encíclica Populorum Progressio, e igualmente acolhida pelo Papa João Paulo II, em Sollicitudo Rei Socialis. Entre nós, destaca-se o labor, neste sentido, do saudoso Padre Fernando Bastos de Ávila, que tratou da temática da solidariedade na obra “Solidarismo” (Ed. Agir, 1965) e, novamente, em “Folhas do Outono” (Ed. Loyola, 2001).
O desembargador aposentado e ex-presidente do TRF da 4ª Região, Vladimir Passos de Freitas, em artigo sobre a solidariedade, publicado em 18.08.2013, também cotejou-a com o trato dos idosos, em sua dúplice dimensão de dever ético e legal, lembrando que, se no passado, a velhice era considerada a pior das doenças pelos romanos, o abandono de idosos é, hoje, conduta penalmente tipificada.
Mas, o Brasil, que recente e calidamente acolheu o Sumo Pontífice, é mesmo um país de contrastes. Alguns ricos e belos, outros nem tanto. Assim é que somos bem seletivos na escolha das leis que cumprimos e nas que “não pegam”. Parece que exercemos cidadania no varejo, e não no atacado. Veja-se, a exemplo, o quanto somos eficazes na prioridade de atendimento aos idosos nas filas de bancos e supermercados (L. 10.048/00), enquanto, também em relação à terceira idade, no atinente às obrigações constitucionais e legais de se efetivar o direito à vida, à saúde, à cidadania, à dignidade, ao respeito etc. (Constituição Federal, art. 230; Lei 10.741/03, art. 3°), não é bem o que se vê por aí.
Um exemplo disto é o caso das entidades de previdência complementar (fundos de pensão). Regidos pelas Leis Complementares 108 e 109/01, tais entidades deveriam submeter-se ao estrito e constante escrutínio fiscalizatório dos órgãos estatais com esta atribuição (SPC/Previ), sobretudo no atinente ao equilíbrio de suas reservas técnicas, provisões e fundos, que deveriam “atender permanentemente à cobertura integral dos compromissos assumidos pelo plano” (LC art. 18, §3°).
A fragilidade no cumprimento do dever fiscalizatório pelo Estado tem-se evidenciado de forma recorrente. Mais recentemente, isto veio à tona com a liquidação do Banco Rural, pela qual cerca de 50 fundos de pensão de estados e municípios possuíam investimentos, cuja qualidade das garantias ainda não se sabe ao certo (Revista Exame, 19.08.2013). Situações semelhantes se deram no caso do Banco Santos e do Banco BVA.
Esta fragilidade tem efeitos os mais perversos contra a terceira idade, já que a própria existência dos fundos de pensão decorre de um grande esforço por parte de trabalhadores, ao longo de sua vida produtiva, para reunir reservas que possam assegurar-lhes um futuro digno, a partir da consolidação de poupanças derivadas da economia de parcela de seus rendimentos. Aos direitos de previdência dos aposentados correspondem as necessárias providências fiscalizatórias do Estado, sendo certo que, dada sua natureza (i.e., a poupança de idosos), sobressalta aos olhos de qualquer um a gravidade moral das infrações perpetradas contra a higidez de tais fundos.
Veja-se também o caso dos milhares de aposentados do Aerus. Vítimas de sucessiva e malévola sequência de escândalos que envolveram investimentos duvidosos em empresas de capital aberto e contratos de empréstimo com a sua patrocinadora Varig (já então em sérias dificuldades financeiras), as reservas do fundo foram se exaurindo aos poucos e, já em estado terminal, sofreu liquidação extrajudicial e intervenção federal, intempestiva por tardia. E, com ele, a poupança de milhares de “velhinhos”, que ao longo de uma vida inteira de trabalho pouparam para tentar assegurar uma parcela daquela prometida dignidade. Os órgãos fiscalizadores do Estado ficaram vendo a banda(lha) passar, enquanto os aposentados ficaram a ver navios.
Em todos esses casos, houve razões de sobra para que autoridades da República saíssem em campo para investigar a materialidade e a autoria dos ilícitos perpetrados, responsabilizando autores, reavendo valores e ressarcindo as vítimas. Mas isto não ocorreu. Casos como estes fazem-nos lembrar, aqui, dos comentários recorrentes de Lênio Streck: se se tratasse de furto de saco de arroz, inquérito, ação penal e julgamento já estariam devidamente concluídos. Todavia, como se trata apenas de alguns bilhões de reais de um fundo de pensão, da poupança de idosos e de trabalhadores, não parecem ter merecido maior atenção e cuidado do Estado.
De mais a mais, os aposentados não são mais jovens e muitos já não podem mais sair às ruas para gritar; em que pese o esforço limite e heróico de alguns, como um ex-comissário da Varig, que, há poucas semanas, lançou-se ao martírio extremo de uma greve de fome no aeroporto Santos Dumont.
O Brasil se propôs ao projeto de um Estado laico, uma nação tolerante e uma sociedade inclusiva. A proteção ao trabalhador, ao jovem, ao portador de deficiência e ao idoso são cânones da igualdade material de nossa Lei Maior. E, como tal, não são apenas enunciados prescritivos etéreos, mas constituintes de uma organização que, embora separe Estado e Igreja, recepciona altivos valores espirituais e morais em sua dimensão de diversidade, pois harmônicos.
Todavia, o evidente abismo entre nosso discurso institucional e nossa realidade sócio-jurídica remete-nos àquele questionamento interior, sincero, sobre o (des)compasso entre as nossas ações diuturnas de um lado e, de outro,o verbo constitucional e a palavra ecumênica, tais quais os mandamentos universais inscritos nas Encíclicas supracitadas e na Constituição da República de 1988, e oportunamente renovado pelo alerta do Papa Francisco: não há justiça sem solidariedade.
E esta requer o reconhecimento da diferença, a prevalência do ser sobre o tere uma cultura de inclusão, que esteja tão atenta à proteção dos jovens quanto à dignidade do idoso. E isto, sempre. Como dever ético/moral e legal/constitucional. E não apenas nas visitas papais, para nos assegurarmos de que nossas crenças e valores políticos, jurídicos e religiosos não se manifestam apenas aos domingos, e nem que os princípios constitucionais da República são meras peças ornamentais.