É comum encontrarmos na doutrina o afeto apresentado como sendo princípio jurídico do direito das famílias. PABLO STOLZE GAGLIANO[1], FLÁVIO TARTUCE[2], entre outros autores de prestígio seguem essa corrente. Não estamos aqui para repetir tal pensamento. Propomos outra visão para o assunto. A ideia que será defendida nas próximas linhas se afasta da maioria e de certa jurisprudência mais atual, é preciso alertar o leitor.
Para nós, com todo respeito a posições contrárias, melhor seria classificar o afeto como postulado normativo e não como princípio jurídico do direito das famílias. Optamos por iniciar este modesto artigo com a conclusão para poupar o leitor de procurar outro entendimento nas linhas que se seguem.
Pois bem.
É preciso indagar, em primeiro plano, sobre o que seria o afeto. Podemos dar, no mínimo, dois sentidos a esta palavra. Pode ser o afeto apenas um nome erudito que significa sentimento. Bom ou mau. Se algo nos afeta, significa que nutrimos algum sentimento por esse algo. É como um eco, em nós, do que nosso corpo sofre. A alegria, pois, é o prazer da alma; a tristeza, seu sofrimento. Mas o afeto também pode ser visto por outro ângulo – mais simplório, é verdade - como sendo apenas o bem que sentimos por algo ou alguém. Afeto, neste prisma, é a vontade de assistir, apoiar, ver no outro a sua própria felicidade. Ter afeto é ter, em certo grau, amor. Aliás, há quem diga que ninguém “tem” amor. Amor é como frio ou calor: não se tem, se sente. O fato é que, seja ele eros, filia ou agape, o amor é. E só se sabe o que é o amor quando o sentimos.
Postas essas discussões extra jurídicas de lado, inegável é o fato de que, nos dias de hoje, a família deve ser vista como entidade social baseada em laços de afetividade. A Constituição da República Federativa do Brasil é clara ao estabelecer essa ideia. Decorrente da dignidade da pessoa humana, a afetividade é concretizada na família pelo respeito mútuo entre seus integrantes, com a valorização e aceitação das características inerentes a cada membro. Há quem diga até que o afeto é um verdadeiro direito fundamental[3]. O afeto é, sem dúvida, a viga mestra que sustenta toda e qualquer relação familiar. Sem afeto, não há família. Com afeto, qualquer relação humana, em qualquer forma, pode vir a construir uma família. É o que acontece com pares homoafetivos, famílias monoparentais, famílias constituídas apenas por irmãos, etc. Se há alguma possibilidade de se expressar amor mútuo, há a possibilidade de surgir uma família e quanto a isso parece não haver mais divergência – pelo menos, jurídica.
Louvável, pois, a iniciativa do constituinte de 1988 ao abraçar a afetividade como fundamento das relações familiares. Mas, como fundamento, o afeto seria princípio do direito de família? Não. Já afirmamos isso linhas atrás e agora passamos a explicar o porquê desse pensamento.
O paraibano (e não cearense, como muitos podem supor) PAULO BONAVIDES já nos ensinou que os princípios jurídicos passaram por, pelo menos, três fases: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista[4].
Na primeira fase (jusnaturalista), os princípios eram tidos apenas como diretrizes para concretizar a justiça. Não possuíam caráter normativo, na verdade.
Na fase positivista, os princípios foram codificados. Para os positivistas, entretanto, os princípios também não possuíam força normativa, servindo apenas como norte para o intérprete e para preencher lacunas da lei.
A Segunda Grande Guerra, porém, deixou claro que deveria haver uma reaproximação entre o Direito e a Moral. Sistemas jurídicos baseados apenas na legalidade poderiam dar azo a atrocidades como o nazismo e isso não era mais suportável pela humanidade. Surge, assim, o pós-positivismo. Grosso modo, neste movimento, procurou-se manter a positividade do Direito, mas irrigando o sistema com princípios, que, agora, passaram a ter força normativa.
Vê-se, portanto, que não é de hoje que os princípios têm força normativa. Pois bem. Mas, o que significa ter força normativa? Em suma síntese, significa que algo pode ser exigido. Normas-princípios (há muito tempo a doutrina já divide as normas em normas-princípios e normas-regras), segundo HUMBERTO ÁVILA, “instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um determinado estado de coisas”. “Quando a constituição contém um dispositivo que privilegia um estado de coisas a ser promovido, há nesse contexto e nesse aspecto, a instituição de um princípio que exige do aplicador um exame de correlação entre esse estado e os comportamentos que devem ser adotados para sua promoção”[5].
Dito isso, indaga-se: sendo o afeto um princípio, ele pode ser exigido? Entendemos que não.
Como bem lembram CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD[6], Mário Quintana, como sempre feliz em seus escritos, já nos trouxe a ideia de que: “é curioso um laço... uma fita dando voltas. Enrosca-se, mas não se embola. É assim que é o abraço: coração com coração, tudo isso cercado de braço. Por isso é que se diz: laço afetivo, laço de amizade. Então o amor e a amizade são isso... Não prendem, não escravizam, não apertam, não sufocam. Porque quando virá nó, já deixou de ser um laço![7]”. Assiste razão ao poeta.
Em nosso pensar, é característica fundamental do afeto sua espontaneidade. Sem isso, já não se pode mais falar em afeto. É mero interesse, talvez afinidade, mas não afeto. Exigir de alguém afeto desvirtua por completo o sentimento. O afeto não é posto, mas suposto. Deve vir de dentro e não de fora. Embora merecedor de toda a atenção da comunidade jurídica, justamente por que compõe todas as relações familiares, a afetividade – ou o amor – não pode ser imposto, pois se assim o fosse, não seria sincero, não congregaria as qualidades que lhe são próprias[8]. Afasta-se, portanto, uma suposta caracterização do afeto como um princípio jurídico do direito das famílias[9]. Essa ilação é concretizada a partir de um simples pensamento: não se pode obrigar alguém a nutrir afeto por outrem. Cada ser humano é livre para amar e não amar quem deseje. Não defendemos aqui o comportamento de algumas pessoas que simplesmente não sentem amor por quem as ama. Não é isso. É verdade que, nesses casos, enxergamos, quase sempre, a presença da ingratidão, condenada por todos. Mas o fato é que, às vezes, o amor não nasce. Assim: pura e simplesmente. Mesmo onde “deveria” nascer. E, nesse ponto, não temos qualquer controle sobre os outros ou sobre nós mesmos, diga-se de passagem. Ninguém pode simplesmente mandar um comando para o corpo ou para a alma, ordenando-o(a) que sinta prazer com a presença (ou existência) de determinada pessoa. Ou se sente afeto naturalmente, ou não se sente. É claro que no âmbito familiar, há um campo fértil para o amor. É que no solo da família, ele brota, quase sempre, com vigor. Mas não podemos transformar uma regra geral em algo absoluto. Há casos em que, mesmo no seio familiar, a semente do amor simplesmente não germina. Assim, obrigar alguém a amar o outro pode talvez transformar, no final, algo que não existia em pura aversão.
Tomemos como exemplo o direito de visitas, que, segundo alguns - com razão - , é direito da criança e não dos pais. É comum encontrarmos opiniões no sentido de que tal direito, na verdade, é um direito-dever. Ou seja: impõe-se ao genitor o dever de visitar seus filhos, salvo comprovada a impossibilidade material, como acontece nos casos em que pais e filhos moram muito distantes entre si e não têm condições para viajar. Mas e se a impossibilidade for sentimental? A maioria entende que, independentemente do sentimento, ainda assim, há o dever de cuidado entre os familiares, notadamente dos pais para com os filhos. Até ficou famosa uma frase da Ministra Nancy Andrighi "Amar é faculdade, cuidar é dever". É preciso fazer algumas considerações sobre esse pensamento. Primeiro, que, se é dever dos pais cuidar psicologicamente - dar afeto - dos filhos, a recíproca deve ser verdadeira, sobretudo quando os pais atingem a velhice. Segundo, que pode ser questionado o fato de que a presença (ma)paterna ocorrida de maneira imposta pelo Estado é, realmente, benéfica ao filho. Como alguém, sem amor, pode transmitir amor? Não nos parece possível. Em terceiro e último lugar, podemos nos questionar: quanto vale o amor? Sim, porque transformar o afeto em obrigação é transformá-lo em pecúnia em caso de descumprimento desta obrigação. Muitos dizem que não se trata de quantificar o amor, mas apenas de punir aquele que não cumpriu seus deveres de afetividade. É forte esse argumento. Mas, no fundo, quem pede indenização por "abandono afetivo", está em busca de que? Afeto? Recuperar o tempo perdido? Não nos parece que seja isso.
Em suma, o que queremos dizer é: amor alheio não se exige. Por melhor pessoa que sejamos, não podemos achar que todos irão nos amar. Que todos devem nos amar. Se o amor esperado não veio, sabemos que a dor é forte. Sabemos que não é fácil. Mas ainda assim o outro é livre para não nos amar. Do mesmo modo que nós mesmos somos livres para não amar quem talvez nos ame. Como diriam alguns, "Amo a liberdade, por isso deixo as coisas que amo livres. Se voltarem é porque as conquistei. Se não voltarem é porque nunca as tive".
Por tudo isso, preferimos seguir aqueles que enxergam o afeto não como um princípio, exigível, mas como um postulado normativo[10], ou norma de segundo grau, como diria HUMBERTO ÁVILA[11].
Explique-se melhor.
Nos referimos aos postulados aplicativos, é bom esclarecer. É que para ÁVILA, os postulados, tidos como condições essenciais para a interpretação de qualquer objeto cultural, podem ser classificados em postulados normativos hermenêuticos e os postulados normativos aplicativos. Conforme o jurista, os postulados hermenêuticos são aqueles destinados à compreensão geral do Direito. Já os postulados normativos aplicativos são normas que definem métodos ou critérios de aplicação de outras normas. São normas sobre normas, ou normas de segundo grau, também chamadas de metanormas. Instituem critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação. É uma diretriz a ser seguida pelo aplicador do direito quando o analisa diante do caso concreto. Os postulados não se aplicam, é bom se dizer, mas orientam a aplicação dos princípios e das regras. Por não serem aplicáveis, os postulados, apesar de deverem ser observados, não são exigíveis. É essa a grande e fundamental diferença entre princípio e postulado. O segundo orienta a aplicação do primeiro. O postulado é dirigido não ao sujeito de direito e deveres, mas ao aplicador e ao intérprete do Direito. E mais. Os postulados, ao contrário dos princípios, não impõem a promoção de um fim; não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e argumentação.
Na categoria de postulados normativos aplicativos, temos a razoabilidade, a proporcionalidade, a eficiência, a igualdade, entre outros. Queremos acrescentar mais um, especialmente para a aplicação dos princípios e regras referentes ao direito das famílias: o afeto. Sendo elevado à categoria de postulado, o afeto ainda teria papel fundamental no direito das famílias. Pois orientaria sempre a aplicação dos princípios pertinentes. Seria a mola propulsora do reconhecimento de todas as relações familiares, que, sem dúvida, são baseadas no afeto.
Realmente, que toda a interpretação e aplicação do direito de família seja baseada no afeto. Que toda decisão judicial, quando analise casos de família, leve em conta o afeto. Que todo o sistema jurídico gire em torno do afeto. Mas que nunca se cobre judicialmente afeto de alguém.
In fine, é preciso fazer mais duas observações.
Ratificamos que o entendimento acima esposado é minoritário, mas, de qualquer forma, encontra eco em alguns julgados, notadamente nos seguintes: STJ, Ac.unân.4ª T., REsp. 514.350/SP, rel. Min. Aldir Passarinho Jr., j.28.4.09, DJe25.5.09 e STF, RE, 567.164/MG, rel. Min. Ellen Gracie, DJ 27.5.09.
Também estamos cientes de que, atualmente, já há decisão de Tribunal Superior reconhecendo a exigibilidade do afeto, gerando, inclusive, responsabilidade civil (danos morais) pelo seu descumprimento (STJ, REsp 1.159.242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012). Realmente, trata-se de entendimento de bastante relevo para a sociedade e para a comunidade jurídica, mas, de toda sorte, optamos, respeitosamente, por não concordar com parte de seus fundamentos, como já ficou claro ao longo do texto.
· Referências:
ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 13a edição, 2012.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros. 21ª edição, 2007.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito de Famílias. São Paulo: RT. 6ª edição. 2010.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Vol. 6. Salvador: JusPodivm, 2013.
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil. Vol. VI. São Paulo: Saraiva, 2011.
TARTUCE, Flávio. O princípio da afetividade no direito de família. Disponível em http://www.fatonotorio.com.br/artigos/ver/246/o-principio-da-afetividade-no-direito-de-familia. Acesso em 24.08.2013.
Notas
[1] GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil. Vol. VI. São Paulo: Saraiva, 2011.
[2] TARTUCE, Flávio. O princípio da afetividade no direito de família. Disponível em http://www.fatonotorio.com.br/artigos/ver/246/o-principio-da-afetividade-no-direito-de-familia. Acesso em 24.08.2013.
[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito de Famílias. São Paulo: RT. 6a edição. 2010. p. 68.
[4] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros. 21ª edição, 2007. p. 809.
[5] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros, 13a edição, 2012. p. 141.
[6] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Vol. 6. Salvador: JusPodivm, 2013.
[7] Trecho do poema “O laço e o abraço”, de Mário Quintana.
[8] ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 66-67.
[9] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Ob. Cit. p. 73.
[10] Nesse sentido, FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Vol. 6. Ob. Cit.
[11] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Ob. Cit.