Recentemente passou a ser objeto de exaustivas discussões o tema relacionado à possibilidade de perda do mandato eletivo do agente público que tenha contra si proferida uma condenação criminal transitada em julgado.
Estes debates se avolumaram como consequência do desfecho próximo da Ação Penal STF n° 470 (referente ao que se convencionou denominar de mensalão). Estando o Supremo Tribunal Federal, ao que tudo indica, apreciando as últimas manifestações recursais legalmente previstas. Para que então, aqueles que forem condenados, sejam obrigados a cumprir as respectivas penas, incluindo aqueles que ostentam mandatos parlamentares, posto que alguns dos réus na mencionada ação penal do mensalão ocupam atualmente o posto de Deputado Federal.
Outro caso que gerou espanto foi o do Deputado Federal Natan Donadon (PMDB-RO), que foi condenado pela Suprema Corte pela prática dos delitos de peculato e formação de quadrilha (CP, arts. 312 e 288), em razão do desvio de recursos financeiros públicos da Assembleia Legislativa de Rondônia, quando ocupava a função de diretor financeiro da casa.
Em votação realizada na Câmara dos Deputados Federais em 28/08/2013, não foram obtidos os votos suficientes para a decretação da perda do mandato deste parlamentar condenado pela mais alta corte de Justiça da nação. Apenas 233 parlamentares votaram pela perda do mandato, quando era necessário atingir 257 votos para a imposição desta perda do mandato.
Diante deste cenário, fica a indagação: na hipótese de condenação criminal transitada em julgado prolatada contra o parlamentar, é realmente necessário que a casa legislativa a qual pertence, decrete a perda do seu mandato para que o parlamentar condenado seja destituído? Ou, pelo contrário, o efeito produzido pela condenação transitada em julgado já seria suficiente para lhe tolher esta prerrogativa política (mandato)?
Esta questão, de fato, apresenta nuances duvidosas. Mas que podem ser equacionadas sem maiores dificuldades jurídicas.
Neste diapasão, estabelece o Código Penal que um dos efeitos da condenação definitiva, é precisamente a perda do mandato eletivo, in verbis:
Art. 92 - São também efeitos da condenação:
I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:
a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.
Por sua vez, a Constituição Federal, ao tratar do assunto, foi um tanto capciosa. Podendo conduzir o intérprete a equívocos que, certamente, não foram desejados pelo legislador constituinte.
Isto porque, ao mesmo tempo que o art. 15, incisos III e V, permite a perda mandamental como corolário de condenação criminal transitada em julgado e improbidade administrativa, no art. 55, dá a entender que, para tal desiderato, seria imprescindível a expressa autorização da instituição parlamentar, para que a perda do mandato fosse finalmente concretizada.
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
...
III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
...
V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
...
IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
...
VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
...
§ 2º - Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º - Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
À toda evidência, estamos diante de uma hipótese de antinomia real. Assim considerada como aquela insuperável pelos mecanismos tradicionais de resolução de conflito aparentes de normas (antinomias aparentes). Quais sejam, os critérios hierárquico (que pressupõe a superioridade de uma fonte de produção jurídica sobre a outra), cronológico (baseado na prevalência da norma mais recente em prejuízo da mais antiga) e da especialidade (que confere primazia de aplicação à norma considerada mais específica, que tratou especialmente sobre certo tema).
Sempre tendo presente, contudo, a orientação de Carlos Maximiliano, na obra “Hermenêutica e Aplicação do Direito”. Que já alertava, em tom de severa advertência, sobre a cautela que deve ter o intérprete antes de anunciar ter encontrado uma incompatibilidade entre os dispositivos legais reguladores de uma matéria:
“Não se presumem antinomias ou incompatibilidades nos repositórios jurídicos; se alguém alega a existência de disposições inconciliáveis, deve demonstrá-la até a evidência.
Supõe-se que o legislador, e também o escritor do Direito, exprimiram o seu pensamento com o necessário método, cautela, segurança; de sorte que haja unidade de pensamento, coerência de idéias; todas as expressões se combinem e harmonizem. Militam as probabilidades lógicas no sentido de não existirem, sobre o mesmo objeto, disposições contraditórias ou entre si incompatíveis, em repositório, lei, tratado, ou sistema jurídico.
Não raro, à primeira vista duas expressões se contradizem; porém, se as examinarmos atentamente (subtili animo), descobriremos o nexo oculto que as concilia. É quase sempre possível integrar o sistema jurídico; descobrir a correlação entre as regras aparentemente antinômicas.
Sempre que descobre uma contradição, deve o hermenêuta desconfiar de si; presumir que não compreendeu bem o sentido de cada um dos trechos ao parecer inconciliáveis, sobretudo se ambos se acham no mesmo repositório. Incumbe-lhe preliminarmente fazer tentativa para harmonizar os textos; a este esforço ou arte os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, denominavam Terapêutica Jurídica.” (obra citada, 16ª edição, Forense, 1996, p. 134)
De acordo com Tércio Sampaio Ferraz Jr., haverá antinomia real quando houver “...oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado.” E termina esclarecendo que, “...o reconhecimento de que há antinomias reais indica, por fim, que o direito não tem o caráter de sistema lógico-matemático, pois sistema pressupõe consistência, o que a presença da antinomia real exclui...” (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 211).
A indigitada antinomia real reside no fato de que, por um lado, a Constituição Federal determina que ocorrerá a perda de direitos políticos (dentre os quais o de exercício de mandato parlamentar – derivado do direito político passivo de ser votado para desempenhar esta forma de representação popular) se houver condenação criminal transitada em julgado (CF, art. 15, III). Mas, adiante, no art. 55, estabelece condicionantes à perda dos direitos políticos de parlamentares. Cuja final deliberação será dada pela casa legislativa à qual integra (§§ 2° e 3°).
Noutros dizeres, deve ser aplicado o art. 15, III, na sua literalidade (sem condicionantes), ou deve haver aplicação combinada com as condicionantes dos §§ 2° e 3°, do art. 55?
Lembrado que todas estas disposições estão inseridas no texto constitucional (afastando o critério hierárquico). Bem assim, foram positivadas conjuntamente, quando da promulgação da Constituição Federal de 1988 (inviabilizando o critério cronológico). E, alfim, tratam de mesma temática, qual seja, a perda de direitos políticos (tornando defeso o emprego do critério da especialidade).
Estampada, portanto, a antinomia real, que deverá ser solvida por outros mecanismos de resolução.
A este respeito, o Supremo Tribunal Federal (STF), já sustentou ser possível o emprego, em situações excepcionais, da denominada “interpretação ab-rogante”. Pela qual, havendo contradição insuperável entre preceptivos legais, autoriza-se o operador do Direito, por meio da interpretação, “ab-rogar” (metaforicamente) uma ou todas as normas que estejam em conflito. Aplicando-se outra disposição legal que possa regular a matéria, e que poderá ser utilizada após se ter “ab-rogado” as normas antinômicas. É o que se infere de excertos extraídos do precedente abaixo transcrito (MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 92.525-1):
“MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 92.525-1 RIO DE JANEIRO - RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO
EMENTA: RECEPTAÇÃO SIMPLES (DOLO DIRETO) E RECEPTAÇÃO QUALIFICADA (DOLO INDIRETO EVENTUAL). COMINAÇÃO DE PENA MAIS LEVE PARA O CRIME MAIS GRAVE (CP, ART. 180, “CAPUT”) E DE PENA MAIS SEVERA PARA O CRIME MENOS GRAVE (CP, ART. 180, § 1º)... A QUESTÃO DAS ANTINOMIAS (APARENTES E REAIS). CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO. INTERPRETAÇÃO AB-ROGANTE. EXCEPCIONALIDADE. UTILIZAÇÃO, SEMPRE QUE POSSÍVEL, PELO PODER JUDICIÁRIO, DA INTERPRETAÇÃO CORRETIVA, AINDA QUE DESTA RESULTE PEQUENA MODIFICAÇÃO NO TEXTO DA LEI...
Na verdade, esta Suprema Corte, adstringindo-se aos estritos limites de sua competência constitucional, já decidiu, em contexto no qual se discutia a ocorrência, ou não, de antinomia real (ou insolúvel), insuscetível, portanto, de superação pelos critérios ordinários (critério cronológico, critério hierárquico e critério da especialidade), que se revelava legítima a utilização, embora excepcional, da interpretação ab-rogante, quando absoluta (e insuperável) a relação de antagonismo entre dois preceitos normativos, hipótese em que, adotado esse método extraordinário, “ou o intérprete elimina uma das normas contraditórias (ab-rogação simples) ou elimina as duas normas contrárias (ab-rogação dupla)” (RTJ 166/493, Rel. p/ o acórdão Min. MOREIRA ALVES).
Equivale a dizer, ao ser chamado para resolver esta situação, o STF poderá se valer da proposição já incorporada à jurisprudência da Corte, acima mencionada. E decidir a questão com amparo constitucional, e nos poderes implícitos que lhe foram conferidos pela Magna Carta.
Apesar de ser cediço que não existe hierarquia dentro da própria Constituição (pois todos os preceitos constitucionais desfrutam de igual estatura), também é certo que existem prescrições mais sensíveis que outras. E que, num cenário de inevitável conflito, devem ter preferência de aplicação porque melhor atendem o espírito constitucional albergado na “lei da terra” (law of the land).
Na hipótese em apreço, irretorquivelmente que a guarida à regulamentação dos direitos políticos estratificada no Capítulo IV da Constituição (Dos Direitos Políticos) – dentre os quais se enquadra o art. 15, III – merece prevalecer diante do embate com a Seção V, que versa sobre os deputados e senadores (na qual se insere o art. 55, IV e VI, e §§ 2° e 3°).
A envergadura constitucional “Dos Direitos Políticos” é maior que aquela que regulamenta aspectos relacionados a uma destas matizes apenas (“Dos Deputados e dos Senadores”, que é o desempenho da função parlamentar, atribuída pelos direitos políticos dos cidadãos).
Cabendo, neste cenário, ao STF, reconhecer a “ab-rogação” do art. 55, §§ 2° e 3°, e aplicar na sua integralidade o art. 15, III, e art. 55, IV e VI da Constituição Federal, combinado com o art. 92, I, do Código Penal.
Se a alcunhada “casa do povo” (Congresso Nacional) não está à altura dos anseios de moralidade e fiel representação popular que vem sendo reivindicados nas ruas (nas manifestações que vêm tomando o país), caberá o Judiciário impedir que esta aberração se perdure no repertório jurídico da nação.
O que não se pode aceitar é que um parlamentar julgado e condenado pela Suprema Corte do país não perca seus direitos políticos (e respectivo mandato) por conivência dos seus pares, que também exercem mandato eletivo.