Resumo: O presente artigo cogita da possibilidade de acolhimento da responsabilidade civil objetiva apregoada no art.927, parágrafo único, do Código Civil, aos infortúnios laborais oriundos de atividade de risco, afastando a regra do art.7º, XXVIII, da Constituição Federal, que impõe a responsabilidade subjetiva face à conduta culposa ou dolosa da entidade patronal. Para suplantar a problemática, é de capital relevância cuidar da temática concernente à responsabilidade civil, para, posteriormente, particularizar a teoria dos acidentes do trabalho, adentrando, por fim, no campo árido da responsabilidade civil do empregador pelos acidentes de trabalho.
Palavras-chave: Acidentes do Trabalho. Constituição Federal. Código Civil. Responsabilidade civil. Empregador.
Sumário:1 Introdução. 2 Os Pressupostos da Responsabilidade Civil. 3 A Responsabilidade Civil Subjetiva. 4 A Responsabilidade Civil Objetiva. 5 Acidentes do Trabalho. 5.1 Acidente Típico. 5.2 Doenças Ocupacionais. 5.3 Dos Acidentes do Trabalho por Equiparação. 6 Os Argumentos Favoráveis à Aplicação da Responsabilidade Objetiva aos Acidentes do Trabalho. 6.1 O Caráter Aberto do Caput do Art. 7º da Constituição Federal. 6.2 O Princípio da Proteção como Fundamento. 6.3 A Norma Situada no Art. 2º, Caput, da CLT. 6.4 A Interpretação Sistemática. 6.5 A Jurisprudência Favorável. 7 A Corrente Favorável à Aplicação da Responsabilidade Subjetiva aos Acidentes do Trabalho.8 Considerações Finais. Referências
1Introdução
O artigo dedica-se à elucidação da problemática instaurada em sede doutrinária e jurisprudencial, no tocante à temática acerca da responsabilidade civil do empregador pelos acidentes oriundos da relação laboral. A contenda a ser travada no defluir do presente ensaio gravita ao redor da órbita do art. 7º e seu inciso XXVIII, da Constituição Federal, que preconiza a responsabilidade civil subjetiva aos infortúnios laborais – ou seja, para a efetivação da reparação na esfera cível, cabe ao laborista provar a culpa ou dolo patronal. Em dissonância à regra supracitada, avulta a norma vergada no art. 927, parágrafo único, do Código Civil. Na dicção do dispositivo em voga, tem-se a responsabilidade objetiva quanto aos danos culminados pelo exercício da atividade de risco. Nesse caso, o dever de indenizar restará cristalino, cingindo-se o laborista apenas à demonstração do liame concernente ao fato danoso e o prejuízo suportado. Destarte, a indagação cala fundo quando da dúvida pairante acerca da atividade eivada de risco que é exercida pelo empregado. A reparação de um eventual infortúnio será lastrada no art.7º, XXVIII, da Carta Magna, ou amparar-se-á no art.927 e seu parágrafo único, da lei ordinária? É o que se intenta investigar no presente artigo.
2 Os Pressupostos da Responsabilidade Civil
Impõe sublinhar, inicialmente, que os pressupostos que aqui serão arejados têm incidência na responsabilidade subjetiva e objetiva, constituindo “uma verdadeira teoria geral da responsabilidade civil”, no dizer de Sérgio Cavalieri Filho[1]. Integram a teoria da responsabilidade civil três pressupostos: ato ilícito, dano e nexo causal. De maneira didática, elucida-se o primeiro pressuposto – o ato ilícito.[2] Nesse contexto, bem se amolda a definição de Silvio de Salvo Venosa[3] acerca do elemento, asseverando “que os atos ilícitos são os que promanam direta ou indiretamente da vontade e ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários ao ordenamento”. O ato ilícito compõe-se da ação ou omissão, e seu conceito está consubstanciado na inteligência do art.186, do Código Civil:
Art.186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.[4]
Assim sendo, o ato ilícito tem – em seu cerne – “uma conduta humana voluntária, contrária ao Direito”[5]. O agente porta-se de modo a angariar, através de ato comissivo ou omissivo, dano a outrem por afronta a direito do indivíduo, com visíveis repercussões na ordem jurídica.[6]
O ato ilícito “é, assim, a ação ou omissão culposa com a qual se infringe, direta e imediatamente, um preceito jurídico de direito privado, causando-se dano a outrem”[7], sustenta Orlando Gomes. O mesmo jurista assevera ser o ato ilícito integrado pelos seguintes aspectos: 1) ato comissivo ou omissivo de um determinado indivíduo; 2) a culpa; 3) mácula à norma de direito privado; e 4) dano.[8] O mestre enumera a culpa como elemento segregado do ato ilícito. Portanto, com fulcro no que acima observamos e atrevendo-se a um modesto esclarecimento de ato ilícito, podemos concluir ser a agressão à norma jurídica de direito privado, eivada de culpa ou dolo – os quais, em hipótese alguma, chocam-se com a própria noção do pressuposto sob análise. Noutras palavras, a agressão à norma jurídica – ato ilícito – é oriunda de um elemento subjetivo, que poderá ser a culpa (negligência, imprudência ou imperícia) ou dolo.
Indubitavelmente, sem que exista a concretização de um dano oriundo do ato ilícito, não haverá reflexos no campo da responsabilidade civil.[9] Nesse passo, o dano poderá ser de cunho patrimonial ou moral, sendo as duas espécies passíveis de suportar a responsabilidade civil.[10] Imperioso destacar, desde logo, uma definição de patrimônio – o que mostra-se de acentuada relevância para debelar a acepção de dano patrimonial. Apresenta-se apenas a definição de Arnaldo Rizzardo: “O conceito de patrimônio envolve qualquer bem exterior, capaz de classificar-se na ordem das riquezas materiais, valorizável por sua natureza e tradicionalmente em dinheiro.”[11] Tem-se, com lastro no acima citado, o dano patrimonial como “dano que atinge o patrimônio do ofendido” à luz da razão de Pontes de Miranda[12].
Por seu turno, o dano moral ou extrapatrimonial funda-se na ideia de agressão ao apanhado de sentimentos do homem, a saber – honra, dignidade, reputação de seu nome profissional, entre outros do gênero.[13] Outrossim, Yussef Said Cahali[14] corrobora a assertiva supracitada, vez que é categórico na construção de uma definição acerca do assunto aqui ventilado, aclarando que o dano moral reside em toda mácula suportada pela alma humana, tangenciando o íntimo da personalidade do homem, exteriorizando-se através da dor, da perda de um ente, ou do sofrimento.
Traçadas as definições das espécies de dano, vamos ao derradeiro pressuposto da responsabilidade civil – o nexo causal. Luiz Cunha Gonçalves, com o escopo de atingir uma definição de relação de causalidade, leciona-nos o que abaixo segue colacionado:
Para se exigir a alguém a responsabilidade civil, não basta alegar e provar que ele praticou um ato ilícito e que outra pessoa sofreu um dano. É indispensável demonstrar que este dano foi efeito daquele fato ilícito, isto é, estabelecer entre os dois fatos a relação de causa e efeito.[15]
Alicerçado no mesmo desígnio de definir o que é, em verdade, o nexo de causalidade, o civilista Arnaldo Rizzardo lança luz à temática aduzindo tratar-se da “relação verificada entre determinado fato, o prejuízo e um sujeito provocador”.[16] Não obstante, nem sempre revela-se branda a identificação do nexo de causalidade que figurou de modo direto para efetivação do dano gerado, motivo pelo qual cabe, em apertadíssima síntese, delinear algumas palavras sobre a teoria da equivalência das condições e a despeito da teoria da causalidade adequada.[17]
A teoria da conditio sinequa non, assim também conhecida a teoria da equivalência das condições, não destina-se a distinguir a causa e a condição, isto é, “se várias condições concorrerem para o mesmo resultado, todas têm o mesmo valor, a mesma relevância, todas se equivalem”, sublinha Sérgio Cavalieri Filho[18]. Por conseguinte, com fulcro nas linhas acima tracejadas, não há prevalência entre uma ou outra das diversas causas que concorreram para existência do prejuízo angariado. No que tange à teoria da causalidade adequada, “nem todos os antecedentes podem ser levados à conta do nexo causal” enfatiza Sílvio de Salvo Venosa[19]. Nesse diapasão, tal proposição visa amparar a responsabilidade civil na causa mais apropriada que principiou o dano, dentre outras formadoras de um determinado evento.[20] Nosso vigente Código Civil adotou a teoria da causalidade adequada consubstanciada no art. 403, ainda que não faça menção expressa ao nexo de causalidade:
Art.403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato.[21]
Conjugados em plena consonância os três pressupostos acima elencados, exsurge a teoria da responsabilidade civil para tutelar os direitos lesados. Cumpre, agora, alçar voo sobre o território da responsabilidade civil subjetiva, juntamente com alguns aspectos que a esta são inerentes.
3 A Responsabilidade Civil Subjetiva
Em sede preliminar, cabe sublinhar que a matéria em singularidade fundamenta-se no elemento da culpa, como faísca deflagradora do dever de reparar. A culpa é o agir do agente que “não visava causar prejuízo à vítima, mas de sua atitude negligente, de sua imprudência ou imperícia resultou um dano para ela”, leciona Silvio Rodrigues[22]. Na contramão da definiçõe de culpa aqui esposada, temos o dolo como resultado intencionalmente incitado por terceiro – ou seja, o agente delibera lesar alguém.[23]Escoltando o raciocínio acima explanado, temos que a culpa em sentido amplo abarca o dolo, e a culpa em sentido estrito evidencia-se na conduta humana eivada de imperícia, negligência ou imprudência.[24] A imperícia é oriunda da ausência de habilidade técnica, a qual deveria ter sido observada em um dado momento; a negligência consubstancia-se na falta de zelo, ou acatamento das normas organizadoras do convívio social; por fim, a imprudência é entendida como a atitude que afasta a cautela que deveria ter sido considerada em um determinado momento.[25]
A teoria subjetivista fora, e ainda o é, contundentemente rechaçada por diversos juristas que reclamam por maior salvaguarda dos direitos lesados por terceiros. Para atender ao aludido anseio, vem ganhando terreno a responsabilidade civil objetiva.
4 A Responsabilidade Civil Objetiva
A responsabilidade civil objetiva tem seu limiar histórico no contexto dos acidentes de trabalho. A mitigação do labor penoso angariado pela implementação da máquina às margens da revolução industrial redundou em uma nefasta consequência: a extensão dos números e do risco de infortúnios laborais.[26]Nesse quadro, ocorre o despertar da responsabilidade civil objetiva pela extrema dificuldade de reparação do dano emanado do infortúnio laboral, sobretudo pela árdua tarefa de provar a culpa do empregador.[27]
A responsabilidade objetiva pode ser depreendida como a atribuição dos riscos da atividade a quem dela se beneficia e a incrementa, “e não a terceiros que não têm participação alguma na mesma ou, se têm, não auferem as vantagens provenientes desta atividade”, pontua José Acir Lessa Giordani[28]. No entender de Paulo Sérgio Gomes Alonso[29]:
A teoria objetiva desvinculou a obrigação de reparação do dano sofrido da ideia de culpa, baseando-se no risco, ante a dificuldade da prova da culpa pelo lesado para obter a reparação.
Nesse passo, e como podemos inferir da passagem acima transcrita, a responsabilidade civil objetiva tem fulcro integral na teoria do risco. Ademais,imperioso frisar que todos os pressupostos da responsabilidade civil serão aqui aplicados – ou seja, haverá ato ilícito, dano e nexo causal, muito embora o elemento da culpa será sempre dispensável.[30]
Previamente ao apontamento do principal dispositivo em que guarda repouso a responsabilidade civil objetiva no direito pátrio, cumpre observar as diversas teorias concernentes à natureza do risco, dentre as quais podemos pôr em evidência as seguintes: teoria do risco-proveito, do risco criado, do risco profissional, do risco integral e teoria do risco excepcional.[31] O risco-proveito arroga-se da ideia de que a responsabilidade pelo dano deverá ser imputada a quem aufere proveitos de determinado empreendimento.[32] Depreende-se, da singularidade da teoria do risco criado, “que se alguém põe em funcionamento uma lícita atividade perigosa, responderá pelos danos causados a terceiros, em decorrência dessa atividade, independentemente da comprovação de culpa”, registra Paulo Sérgio Gomes Alonso[33]. Tracejando os contornos da teoria do risco profissional, extrai-se que esta se empenha em salvaguardar o laborista frente às variadas formas de perigo em que este possa estar submetido, isto é, confere amparo ao risco advindo da atividade laboral.[34]
O civilista Luiz Roldão de Freitas Gomes[35], inclinando-se em demonstrar as espécies de risco, e estribado na docência de Caio Mário da Silva Pereira, refere que o risco integral vislumbra a reparação do dano oriundo de um fato qualquer, não havendo relevância, em essência, na origem que o efetivou. Tem-se, por fim, a teoria do risco excepcional, a qual atua com o norte de incidir sobre atividades que, de maneira excepcional, poderão acarretar risco, como, a título ilustrativo, o transporte de carga perigosa.[36] A teoria do risco está consagrada no cânone do art. 927 e seu parágrafo único do Código Civil – o que Anderson Schreiber[37] denomina de “cláusula geral por atividades de risco”. Pela relevância temática da norma em foco cumpre colacioná-la:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.[38]
Não obstante, a dicção legal revela-se imprecisa, motivo pelo qual há contundente embate doutrinário acerca do dispositivo em apreço.[39] Sob essa vertente, o que seria “atividade de risco”? À visão de Álvaro Vilaça de Azevedo[40], abriram-se margens à interpretação jurisprudencial concernente a tal expressão, havendo incidência da responsabilidade objetiva apenas nas atividades perigosas, assevera o autor. Recorremos, novamente, às lições de Sérgio Cavalieri Filho – o qual, empenhado em tecer uma definição da palavra “atividade” mencionada pelo legislador infraconstitucional, estaciona na conclusão abaixo manifestada:
Logo, não há como afastar a idéia, já consagrada pela lei e pela doutrina, de que atividade indica serviço, ou seja, atuação reiterada, habitual, organizada profissional ou empresarialmente para realizar fins econômicos.[41]
Esta é a verídica conotação atribuída à palavra “atividade”.[42] No que toca ao termo “risco”, embora já superficialmente tratado, vale observar que Cláudio Brandão[43], ainda que apoiando-se em ensinamentos de Silvio de Salvo Venosa, Pablo StozeGagliano e Rodolfo Pamplona Filho, aduz que o risco “é a atividade que, embora lícita, apresenta uma maior probabilidade de apresentar danos”. A dualidade de termos conjugados em plena consonância conferem ânimo à aplicação da responsabilidade civil objetiva. Passa-se à análise dos acidentes do trabalho.
5 Acidentes do Trabalho
Ao cuidar da matéria concernente aos acidentes do trabalho, importa destacar que dela advém o acidente típico, acidente ocupacional – o qual divide-se em doenças profissionais e doenças do trabalho – e acidentes por equiparação, respectivamente, artigos 19, 20 e 21, da lei 8.213/1991.No entanto, antes de adentrarmos às espécies de acidente do trabalho propriamente ditas, comporta conhecimento o estudo sobre a conceituação do infortúnio laboral. A definição de acidente do trabalho encontra respaldo no pensamento de Jayme Aparecido Tortorello, que articula o seguinte:
Sugere-se que acidente do trabalho seja definido como acidente sofrido pelo trabalhador, a serviço da empresa, e que ocorre pelo exercício do trabalho, provocando lesão corporal, perturbação funcional ou doença que cause a morte, a perda ou redução permanente ou temporária da capacidade para o trabalho.[44]
Exposta e superada a conceituação relativa ao acidente do trabalho, no que cabe anotar que as descrições acima arroladas versam sobre a infortunística laboral de modo meramente genérico, pois as espécies de acidente do trabalho que a pouco aduzimos vêm definidas na dicção legal. As conceituações de infortúnio laboral como gênero são construções doutrinárias, uma vez que o acidente do trabalho em sentido restrito encontra amparo frente à letra fria da lei.
5.1 Acidente Típico
O aludido epíteto também é corriqueiramente apontado na doutrina justrabalhista como acidente-tipo ou macrotrauma[45], estando salvaguardado no art.19, da lei 8.213/1991, sendo oportuna sua transcrição:
Art.19. Acidente do Trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.[46]
Infere-se, pois, ser evento subitâneo, único, imprevisto, com consequências imediatas, onde a violência não constitui, ainda que excepcionalmente, a sua essência do fato, já que há acidentes em que o operário é maculado por infortúnio que acaba por se manifestar tardiamente.[47]Outrossim, a aludida significação de acidente típico é compartilhada por José Antônio Ribeiro de Oliveira, expondo que “trata-se de evento único, imprevisto, que ocorre de súbito, de consequências geralmente imediatas, podendo ser leves, graves e até fatais”.[48]O diploma legal impõe, como um dos requisitos necessários à configuração do acidente típico, a lesão corporal ou perturbação funcional passível de aplacar dano à saúde do trabalhador.
Por derradeiro, ainda sobre os aspectos que norteiam o acidente do trabalho típico, necessário revelar a posição de Mozart Victor Russomano sobre as características do instituto em apreço. O Ex-Ministro do Tribunal Superior do Trabalho assevera alguns aspectos oriundos da concepção de acidente típico, os quais abaixo seguem transcritos:
[...] O acidente, necessariamente, é súbito, isto é, acontece em um pequeno lapso de tempo; é violento, no sentido de ser capaz de gerar danos físicos; é fortuito porque não pode ser provocado, nem direta, nem indiretamente, pela vítima; determina, enfim, uma lesão corporal, que diminui ou exclui a capacidade de trabalho de quem por ele for atingido [...].[49]
Dos elementos apanhados pelo jurista, o mesmo prossegue aduzindo ser “indispensável que o fato súbito, violento e fortuito esteja vinculado, diretamente, ao trabalho desenvolvido pela vítima”.[50]
Cediço que, a depender do doutrinador, os elementos ou requisitos para configuração do acidente típico podem sofrer mutações e também confundir-se com as próprias características do instituto.[51] A título meramente exemplificativo, sob a lente doutrinária de Cláudio Brandão[52], este sistematiza os seguintes elementos formadores do infortúnio típico: evento gerador do dano, natureza do dano (compreende lesão corporal e perturbação funcional), consequências dos danos e nexo de causalidade. Para Antônio Lopes Monteiro e Roberto Fleury de Souza Bertagni[53], a configuração de acidente típico cinge-se apenas à conjugação de dois termos: dano e nexo causal. Agora, observam-se as doenças ocupacionais.
5.2 Doenças Ocupacionais
A lei subdivide as doenças ocupacionais em doenças profissionais – também conhecidas como doença profissional típica, ergopatia, ou tecnopatia – e doença do trabalho, tendo como sinônimos a doença profissional atípica ou mesopatia.[54] A doença profissional e a doença do trabalho estão dispostas, respectivamente, no art.20, caput, e incisos I e II, da lei 8.213/1991, abaixo reproduzida:
Art.20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:
I – doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elabora pelo Ministério do Trabalho e da Previdência.
II – doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.[55]
As doenças profissionais são inerentes a certas atividades laborais – isto é, são peculiares a determinadas funções exercidas pelo trabalhador.[56] Da sábia lição de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento extrai-se o seguinte:
Doença profissional é aquela que é causada pela própria atividade prestada, visto que, no seu exercício, há a atuação do fator patogênico que vai intoxicar ou infectar o trabalhador. Da própria atividade laboral é que vem o risco, intrínseco a ela, e, consequentemente, a eclosão da atividade mórbida. Em outras palavras, o trabalhador executa sua função envolvido pelo fator patogênico, que é peculiar, ou próprio, da atividade exercida.[57]
Na lúcida hermenêutica legislativa de Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari[58], trata-se de uma situação comum a todos os operários que laboram em determinada atividade que possa trazer malefício à sua saúde, sendo elencada no Decreto n. 3.048/99, ou reconhecida pela Previdência Social. Destarte, a doutrina é heterogênea quanto à concepção de doença profissional.
Indispensável, entretanto, tecer explicação referente ao inciso I, infine, do art. 20, da lei em comento, que aduz sobre a relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e Previdência. Neste ponto, a lei faz alusão ao decreto n. 3.048/99[59] – o qual, em seu anexo I, cuida de um rol de doenças profissionais que poderão ser desenvolvidas em determinadas atividades laborais e, no anexo II, trata de alguns agentes passíveis de acarretar a mencionada espécie de moléstia ocupacional, muito embora o rol regulamentado não seja taxativo – mas, sim, exemplificativo.[60] A regulamentação, via decreto, no que tange às doenças profissionais, tem sua razão de existência pela dispensabilidade da comprovação do nexo causal pelo obreiro, uma vez que este é presumido.[61]
As doenças do trabalho, por sua vez, têm o predicado de afastar a relação direta entre patologia e trabalho – ou seja, o fator patogênico não está intrínseco à atividade laboral exercida, como na doença profissional o está.[62] Á ótica de Mozart Victor Russomano “são doenças cujo aparecimento e progresso resultam de circunstâncias que cercam a prestação de serviço”.[63] Quanto ao nexo causal, assim assevera Sebastião Geraldo de Oliveira[64]:
Diferentemente das doenças profissionais, as mesopatias não têm nexo causal presumido, exigindo comprovação de que a patologia desenvolveu-se em razão das condições especiais em que o trabalho foi realizado.
Para levar a cabo a matéria ventilada, mister mencionar as características das doenças ocupacionais. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento[65], discorrendo sobre o que denomina serem “entidades mórbidas” – corresponde ao gênero do qual são espécies doenças profissionais e doenças do trabalho –, o jurista traz à superfície a “atuação paulatina, progressiva, desconcentrada no tempo”, como principais predicados das entidades mórbidas. Reportamo-nos aos acidentes do trabalho por equiparação.
5.3 Dos Acidentes do Trabalho por Equiparação
Os acidentes do trabalho por equiparação não possuem nexo causal imediato com o exercício da atividade laboral, mas, indiretamente, estão relacionados com o trabalho desenvolvido pelo operário.[66] O acidente do trabalho por equiparação está disposto na sistemática do art. 21 e os incisos que o compõe:
Art.21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta lei:
I – o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, haja contribuído haja contribuído diretamente para a morte do segurado, para a redução ou perda da sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão que exija atenção médica para sua recuperação.[67]
A hipótese acima elencada faz menção à concausa. O instituto em apreço, segundo Tupinambá Miguel Castro do Nascimento[68], é o verdadeiro reconhecimento que, por vezes, haverá acidente integralmente desvinculado da atividade laboral, o que podemos chamar de concausa, a qual soma-se ao acidente para gerar o efeito prejudicial. Nesse sentido, a interpretação que se pode extrair da legislação supracitada e da passagem doutrinária, nos remete à conclusão que a concausa é a ocorrência de duas causas, sendo a primeira relacionada ao exercício da atividade laboral; enquanto a segunda é fato exterior, mas que atuará como fator propagador dos danos efetivados pela primeira causa.
Quanto ao inciso II do art. 20, este dá guarida às diversas situações em que o trabalhador suporte a agressão de terceiros, sendo necessária para o enquadramento legal, a manifestação do fato prejudicial no local e horário de trabalho.[69] Assim, da leitura do art. 21, II, da lei 8.213/91, nota-se que configura acidente do trabalho o sofrido pelo trabalhador no local e horário de trabalho. Na alínea “a” do inciso em comento, considerar-se-á infortúnio laboral “o ato de agressão, sabotagem ou terrorismo praticado por terceiro ou companheiro de trabalho”. A norma utiliza a expressão “ato de agressão”, com o fito de salvaguardar a integridade física do obreiro – que, nesta ocasião, poderá ter seu corpo maculado por qualquer indivíduo estranho ao ambiente laboral ou por companheiro de trabalho.[70] A expressão “ato de sabotagem”, no entendimento do jurista Cláudio Brandão[71], “é a danificação proposital de instalações da empresa [...], objetivando a interrupção dos serviços”. Por fim, a expressão “ato de terrorismo”, explica Mozart Victor Russomano[72], pressupõe violência movida por determinada ideologia, sendo que, no ambiente de trabalho, visará atacar a empresa ou a terceiros.
A alínea “b” da norma sob análise preceitua a égide do trabalhador por “ofensa física intencional, inclusive de terceiro, por motivo de disputa relacionada ao trabalho.” O dispositivo procura assegurar a incolumidade física do operário, ainda que o ofensor seja indivíduo alheio à empresa, embora resida nesta a razão da desavença, aliás, caso a disputa não esteja resguardada na relação de trabalho, não há como configurar infortúnio laboral.[73] Posterior ao dispositivo ora comentado, a alínea “c” equipara ao acidente do trabalho o “ato de imprudência, de negligência ou de imperícia de terceiro ou de companheiro de trabalho”, o qual tenha o condão de acarretar avaria ao laborista. Revela-se verídica a compreensão de Oswaldo Opitz e Silvia Opitz[74] ao assinalar que o evento culposo deverá ser executado no local e horário de trabalho, por companheiro ou terceiro alheio ao labor.
Na alínea “d”, a norma equipara ao infortúnio laboral o “ato de pessoa privada do uso da razão.” Com efeito, sobrevém a ressalva de José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva, aduzindo que é “despicienda tal hipótese legal, tendo em vista que o acidente do trabalho se configura em qualquer agressão provocada por terceiro ou colega de trabalho”.[75] Destarte, revela-se inócua a previsão legal. Por derradeiro, na alínea “d” a lei justapõe o infortúnio laboral aos fatos imprevisíveis como o “desabamento, inundação, incêndio e outros casos fortuitos ou decorrentes de força maior”. É bem verdade que o legislador – assim infere-se do dispositivo em estudo – almeja estender a aplicação da norma, vez que o “conceito é bastante elástico, compreendendo múltiplas situações”.[76]
O inciso III, do art.21, cuida da “doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade”. A conjectura supramencionada assim é vislumbrada por Wladimir Novaes Martinez:
Para não confundir com a doença profissional ou do trabalho, a contaminação acidental aludida no inciso III tem de ser abrupta. O legislador quis apenas alcançar enfaticamente o contágio de produtos radioativos e assemelhados.[77]
A dicção do art. 21, IV, trata dos acidentes in itinere, que, na lição de José Cairo Júnior, “é aquele ocorrido fora do estabelecimento da empresa, mas enquanto o empregado percorre o trajeto residência-trabalho ou vice-versa, durante o período de descanso ou refeição, ou, ainda, quando se encontra executando serviços externos”.[78] Nesse compasso, o legislador acautela situações em que o acidente não corresponde com o horário e local de trabalho, muito embora guardem com este íntima relação.[79] A alínea “a” do inciso IV aduz que o infortúnio ocorrido “na execução de ordem ou na execução de serviço sob a autoridade da empresa” considerar-se-á acidente do trabalho por equiparação. Sobre a temática, pujante é o ensinamento de Feijó Coimbra:
Se, mesmo fora do local de trabalho, e até excedendo o horário a que se acha obrigado, o trabalhador está cumprindo ordens do patrão, deve ser entendido como em pleno exercício de suas funções e, como tal, de trabalho será o acidente que então com ele ocorra.[80]
Por seu turno, a alínea “b” considera acidente do trabalho por equiparação, quando o laborista empenha-se “na prestação espontânea de qualquer serviço à empresa para lhe evitar prejuízo ou proporcionar proveito”. O que tende estar presente aqui é a intenção do trabalhador em colaborar com a empresa, a tal vontade atribui-se um cunho de extensão da atividade laboral.[81]Outrossim, estando o trabalhador “em viagem a serviço da empresa [...]”. A hipótese acima citada vem elucidada na alínea “c” do inciso IV e evidencia-se de acentuada importância, quando a viagem não constituir comum exercício da atividade laboral, pois, caso contrário, poderá configurar acidente típico.[82]
Finalmente, a inteligência da alínea “d” do dispositivo em apreço tem a propriedade de impingir ao malefício suportado pelo obreiro, oriundo de acidente verificado “no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado”, caráter de infortúnio do trabalho por equiparação. A aludida hipótese situa-se sob o manto protetor da legislação, em virtude da exigência da atividade laboral, vez que o obreiro, para bem exercê-la, deverá deslocar-se da casa para o trabalho ou vice-versa, ou do ambiente de trabalho para o local onde desfruta de seu descanso, sendo irrelevante o seu meio de locomoção.[83]
Em contrapartida, muito se indaga acerca do desvio de trajeto por interesse particular, já que afastaria o nexo de causalidade com o labor, no entanto, só considera-se descaracterizador do acidente de trajeto a interrupção anormal – mas, retomado o percurso pelo laborista, incidirá a proteção legal de acidente do trabalho por equiparação.[84]