Artigo Destaque dos editores

Programa Carpe Diem: uma nova esperança para os presos provisórios e para a sociedade

Exibindo página 2 de 3
Leia nesta página:

3 Reincidência

A reincidência, que está disciplinada no artigo 63 do Código Penal[12], é conceituada por Nucci (2009, p. 422) como “o cometimento de uma infração penal após já ter sido o agente condenado definitivamente, no Brasil ou no exterior, por crime anterior”.

Sua natureza jurídica é de circunstância agravante genérica, que, portanto, aumenta a pena, sendo aplicada na segunda fase da dosimetria da pena. Por ter caráter subjetivo, não se comunica ao partícipe ou coautor, ou seja, só diz respeito ao autor do crime (CAPEZ, 2011a). Em caso de concurso de circunstâncias atenuantes e agravantes, a reincidência prepondera, conforme dispõe o artigo 67 do Código Penal.

A reincidência estará configurada, independente da natureza dos crimes, quando da ocorrência entre dois crimes dolosos ou culposos, entre crime doloso e culposo e culposo e doloso, entre crime consumado e tentado e tentado e consumado, entre dois crimes tentados, e entre dois crimes consumados. Não incidirá, entretanto, entre os crimes militares próprios (previstos somente no Código Penal Militar) e os crimes políticos, por força do artigo 64, inciso II, do Código Penal (CAPEZ, 2011a).

A doutrina distingue a reincidência em real, que para ocorrer depende do cumprimento da pena corresponde ao crime anterior, e ficta, para a qual independe o cumprimento de pena, bastando a simples condenação anterior. Nosso ordenamento jurídico penal adotou a segunda, uma vez que, a teor do artigo 63 do nosso estatuto repressor, é necessário apenas que já tenha transitado em julgado a sentença condenatória proferida no país ou estrangeiro, relativa ao crime antecedente, sendo indiferente o cumprimento da pena anterior. Contudo, esse trânsito em julgado tem que ocorrer antes da prática do segundo crime (MIRABETE; FABBRINI, 2010).

Originalmente, o nosso Código Penal, de 1940, trazia como circunstância agravante não só a reincidência genérica, mas também a específica (que exige que o novo delito praticado seja da mesma natureza do delito praticado anteriormente), bem como tratava a reincidência como perpétua. Contudo, a Lei nº 6.416/1977 excluiu a reincidência específica, além de ter limitado no tempo os efeitos da condenação anterior, justamente para não estigmatizar para sempre o condenado, adotando-se assim o sistema da temporariedade ou da transitoriedade (PRADO, 2010).

Desta forma, possível a prescrição da reincidência, não prevalecendo a anterior condenação se tiver decorrido, da data do cumprimento ou extinção da pena e a nova infração penal, período superior a cinco anos, o chamado período depurador, computado o período de prova da suspensão ou livramento condicional, desde que não haja revogação destes. Passado esse período depurador, o agente readquire a condição de primário (CAPEZ, 2011a). 

É comum o uso do termo primariedade técnica pela jurisprudência, que é utilizado no caso do agente que já sofreu diversas condenações, porém não é consideradoreincidente porque não praticou nenhum delito após ter sido condenadodefinitivamente (CAPEZ, 2011a).

A reincidência, além de ser circunstância agravante e, consequentemente, influir na medida da culpabilidade, tem outros efeitos, quais sejam: impedir a concessão da suspensão condicional da pena e a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito ou multa, quando o crime for doloso; aumentar o prazo de cumprimento da pena para obtenção do livramento condicional, em caso de crime doloso; obstar que o regime inicial de cumprimento da pena seja aberto ou semiaberto, exceto no caso de pena detentiva;produzir a revogação obrigatória da suspensão condicional da pena, quando a condenação for por crime doloso, e a revogação facultativa, quando há condenação por crime culposo, ou por contravenção; gerar a revogação obrigatória do livramento condicional, sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade, ou a revogação facultativa, em caso de crime de contravenção, mas que não seja imposta pena privativa de liberdade; revogar a reabilitação, se sobrevier condenação a pena que não seja de multa; aumentar de um terço o prazo prescricional da pretensão executória; interromper a prescrição; e impedir a incidência de algumas causas de diminuição de pena, e a prestação de fiança, em caso de condenação por delito doloso (PRADO, 2010).

Comprova-se a reincidência com a certidão cartorária que contenha a condenação anterior (NUCCI, 2009).

No Brasil não há dados oficiais sobre os índices de reincidência, contudosabe-seque é alta. Em setembro de 2011, o então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, chegou a declarar[13] que nosso país tem uma das maiores taxas de reincidência criminal mundial, na faixa de 70%.

Em março de 2012, o Conselho Nacional de Justiça anunciou[14] que o Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça iria fazer o primeiro estudo técnico para determinar a taxa de reincidência criminal em nosso país.

A falta de estudos específicos sobre a reincidência criminal brasileira também dificulta uma melhor análise sobre o assunto, bem como embaraça a determinação de políticas criminais e públicas na sua prevenção. A respeito disso, Bitencourt (2012, p. 587 e 588) ressalta que:

Os altos índices de reincidência têm sido, historicamente, invocados como um dos fatores principais da comprovação do efetivo fracasso da pena privativa de liberdade, a despeito da presunção de que, durante a reclusão, os internos são submetidos a um tratamento ressocializador. As estatísticas de diferentes países, dos mais variados parâmetros políticos, econômicos e culturais, são pouco animadoras, e embora os países latino-americanos não apresentem índices estatísticos confiáveis (quando não, inexistente), é este um dos fatores que dificultam a realização de uma verdadeira política criminal. Apesar da deficiência dos dados estatísticos é inquestionável que a delinquência não diminui em toda a América Latina e que o sistema penitenciário tradicional não consegue reabilitar ninguém, ao contrário, constitui uma realidade violenta e opressiva e serve apenas para reforçar os valores negativos do condenado. [...] Na verdade, as causas responsáveis pelos índices alarmantes de reincidência não são estudadas cientificamente. O progresso obtido em outros campos do conhecimento humano ocorre exatamente mediante o estudo criterioso dos fracassos e das suas causas, algo que não acontece no campo penitenciário. Não são realizados estudos que possibilitem deslindar os aspectos que podem ter influência sobre a reincidência, isto é, não há pesquisas científicas que permitam estabelecer se a reincidência pode não ser considerada como um ou o mais importante indicador da falência da prisão, ou se esta pode ser considerada um resultado atribuível aos acontecimentos posteriores à libertação do interno.

Além disso, o nosso atual sistema prisional é alvo de infinitas críticas, entre as quais de que ao invés de evitar a reincidência, acaba por estimulá-la. Para Bitencourt (2012, p. 588):

A prisão, em vez de conter a delinquência, tem-lhe servido de estímulo, convertendo-se em um instrumento que oportuniza toda espécie de desumanidades. Não traz nenhum benefício ao apenado; ao contrário, possibilita toda a sorte de vícios e degradações. A literatura especializada é rica em exemplos dos efeitos criminógenos da prisão. Enfim, a maioria dos fatores que domina a vida carcerária imprime a esta um caráter criminógeno, de sorte que, em qualquer prisão clássica, as condições materiais e humanas podem exercer efeitos nefastos na personalidade dos reclusos. Mas, apesar dessas condições altamente criminógenas das prisões clássicas, tem-se procurado, ao longo do tempo, atribuir ao condenado, exclusivamente, a culpa pela eventual reincidência, ignorando-se que é impossível alguém ingressar no sistema penitenciário e não sair de lá pior do que entrou.

Nesse sentido é também a crítica de Leonardo Isaac Yarochewsky (2012):

O aprisionamento, ao invés de possibilitar o retorno deste indivíduo, praticamente torna esse objetivo inviável, sobretudo se considerarmos que as instituições de custódia acabam por ser as efetivadoras do fenômeno da prisionização, ou seja, desencadeiam um processo de aculturação, o qual consiste na assimilação pelo detento dos valores e métodos criminais dos demais reclusos... [...]Diante deste sistema penal perverso, degradante, desumano, torpe e cruel, soma-se a hipocrisia do Estado em ocultar os verdadeiros fins da pena, é necessário buscarmos alternativas que, embora longe de solucionar os problemas, possam, ao menos, amenizá-los. Mas, para isso, urge que admitamos o fracasso da pena de prisão e a falácia do atual sistema. É preciso reconhecer que este sistema tem produzido mais criminosos, além de se constituir, nunca é demais dizer, um verdadeiro incremento da reincidência.

Contudo, não se pode atribuir somente ao atual sistema prisional a elevada reincidência criminal; há outros elementos a serem considerados. Nesse sentido Bitencourt conclui que (2012, p. 589):

As cifras de reincidência têm um valor relativo. O índice de reincidência é um indicador insuficiente, visto que a recaída do delinquente produz-se não só pelo fato de a prisão ter fracassado, mas também por contar com a contribuição de outros fatores pessoais e sociais. Na verdade, o condenado encarcerado é o menos culpado pela recaída na prática criminosa. Por derradeiro, a despeito de tudo, os altos índices de reincidência também não podem levar à conclusão radical de que o sistema penal fracassou totalmente, a ponto de tornar-se necessária a extinção da prisão.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

De qualquer forma,o que não se pode deixar de consideraré o que a realidade prisional brasileira tem demonstrado: a influência maléfica da prisão, que “como principal e uniforme resposta punitiva, alimenta a ineficiência e atenta contra as garantias individuais, colaborando para a ruína do sistema prisional” (SICA, 2002, p. 50).

Acabar com a reincidência é fundamental para a diminuição da criminalidade, tendo em vista que

as estatísticas revelam que o aumento da criminalidade deriva, em boa parte, da multiplicidade das infrações dos reincidentes. Por isso, a eliminação da reincidência é a grande preocupação da Política Criminal contemporânea, e não pode deixar de ser um dos objetivos basilares do Direito Penal. (FERNANDES, N.; FERNANDES, V., 1995, p. 301)

E para isso, o apoio ao preso, bem como o apoio ao que deixa a prisão, é fundamental para a recuperação do infrator e para a prevenção de novos crimes.

Sobre isso, não nos faltam dispositivos normativos atinentes à proteção, assistência e cuidados que o preso deve receber. Contudo, o mundo do “dever ser” é bem diferente da nossa realidade. Infelizmente a lei é “maravilhosa”, mas de nada adianta se o Estado não se empenha e não a “faz valer”. A digressão, o abismo entre o ideário e o mundo real tem levado a grandes flancos na real imposição da medida preventiva da sanção penal. Agiganta-se o caráter repressivo da pena em detrimento de efetivas medidas preventivas que a longo prazo demonstram maior ganho para a Sociedade. Assim, programas de assistência ao preso, como o Carpe Diem, são essenciais para a efetividade dessas normas, já que o sistema prisional comum não é capaz de proporcionar uma verdadeira ressocialização do preso e consequente redução da reincidência, muito pelo contrário.

No caso específico do programa Carpe Diem, que atende aos presos provisórios detidos no Centro de Detenção Provisória (os presos provisórios detidos em Cadeias Públicas não são atendidos já que o plano é circunscrito ao Centro de Detenção Provisória de Sorocaba), relevante a seguinte consideração:

O problema no processo penal é que, ao contrário do juízo cível, no qual a execução provisória é precedida de garantia real ou fidejussória, a execução provisória penal não contempla semelhante possibilidade. Uma vez executada, o provimento do recurso ou a concessão de habeas corpus (que, aliás, são muito frequentes) nada poderá fazer em relação ao tempo de encarceramento provisório. Nesses casos, como diria o ilustre poeta lusitano, Inês é morta. E a liberdade, idem. (OLIVEIRA, 2011, p. 592)

Deste modo, fundamental esse trabalho com os presos provisórios desenvolvido pelo programa Carpe Diem, de forma a não tornar em vão o período em que passam enclausurados.

Para Augusto de Sá (1987, p. 105), psicólogo com larga experiência no sistema penitenciário:

o período de cumprimento de pena deveria de fato ser reeducativo. Ou seja, deveria se constituir de programas de prevenção destinados a: investigar, reconhecer, preservar e fortalecer os núcleos de adaptação saudável remanescentes, prevenir contra os vícios e riscos da vida carcerária (análogos à “contaminação hospitalar”), preparar para o retorno à liberdade (prevenindo contra crises), promover um retorno progressivo ao convívio social livre.

E é isso que o programa Carpe Diem faz, através dos acompanhamentos psicossociais, atividades laborterápicas e a aplicação dos Mecanismos de Diminuição de Vulnerabilidade.

De acordo com os dados estatísticos[15] do programa, a média de reincidência dos presos no Centro de Detenção Provisória de Sorocaba antes do programa Carpe Diem era de 35% (trinta e cinco por cento). Depois da implantação deste programa de custodia detentiva alternativa, a média de reincidência, apurada de junho de 2009 (início do programa) até março de 2013 (último levantamento), caiu para 6,31% (seis vírgula trinta e um por cento).

Em 2009, dos 122 (cento e vinte e dois) presos atendidos, 05 (cinco) reincidiram, ou seja, 4,10% (quatro vírgula dez por cento). Em 2010, de 207 (duzentos e sete), 13 (treze) atendidos reincidiram, perfazendo 6,28% (seis vírgula vinte e oito por cento). Em 2011, 19 (dezenove) dos 291 (duzentos e noventa e um) presos que passaram pelo programa reincidiram, totalizando 6,53% (seis vírgula cinquenta e três por cento). Em 2012, de 339 (trezentos e trinta e nove) presos 26 (vinte e seis) reincidiram, importando em 7,67% (sete vírgula sessenta e sete por cento). Por fim, de 55 (cinquenta e cinco) atendidos em 2013, 01 (um) reincidiu, o que equivale a 1,82 (um vírgula oitenta e dois por cento).

Como se pode perceber, houve um pequeno aumento do percentual de reincidentes de um ano a outro. Por outro lado, também houve um aumento em números absolutos de presos atendidos.

Assuntos relacionados
Sobre as autoras
Edmara de Oliveira

Estudante do curso de Direito, na Universidade de Sorocaba- UNISO

Maria Isabel de Faria

Estudante do curso de Direito, na Universidade de Sorocaba- UNISO

Nadia Campanha Almagro

Estudante do curso de Direito, na Universidade de Sorocaba- UNISO

Janaina Ferreira Silva

Estudantes do curso de Direito, na Universidade de Sorocaba- UNISO

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Edmara ; FARIA, Maria Isabel et al. Programa Carpe Diem: uma nova esperança para os presos provisórios e para a sociedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3733, 20 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25351. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Orientadora: Profa. Ma. Fernanda Ueda

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos