Introdução
O crime de tortura traduz com perfeição a face mais bestial do ser humano, retroagindo a humanidade a tempos de barbárie, onde o supliciado é objeto do torturador, o qual obtém confissões de fatos muitas vezes sequer praticados, subvertendo a civilidade e maculando, muitas vezes, as instituições policiais.[2]
Ante a carência de efetiva segurança pública aos administrados, propositada pelo abandono dos órgãos de segurança do Estado, especialmente às Policias Militar e Civil, que atuam na criminalidade de massa, muitas vezes esta odiosa prática de subjugar o “suspeito” é vista como algo necessário, senão imprescindível pelo cidadão acuado.
Mesmo pugnando pela repulsa e ojeriza a prática da tortura, é inolvidável estabelecer a condição humana do agente perpetrador da tortura, como sujeito de direitos, o qual, sob pena de cometer o Estado a mesma violência que reprime, deve ter assegurado o devido processo legal, como pessoa humana.
No artigo, será analisada decisão do Superior Tribunal de Justiça – STJ, a qual declarou que a condenação de policial militar por delito de tortura, dispensa a motivação quanto à perda da função pública, sendo esta automática e a necessidade de pronunciamento do Tribunal Militar competente para perda do posto do Oficial Militar Estadual.[3]
Da abolição das Penas Acessórias
O princípio da motivação das decisões judiciais é inafastável do Estado Democrático de Direito, apanágio erigido a norma constitucional, esculpido no art. 93, IX da magna charta.
Desta forma, mesmo o legislador infraconstitucional tendo determinado a perda automática da função pública no caso de condenação transitada em julgado por crime de tortura, é dever do magistrado fundamentar sua decisão, pois a perda da função é penalidade que transcende a figura do condenado, atingindo terceiros, v.g., seus familiares.
Entendemos que deve ser trazida a baila o escopo da reforma da parte geral do Código Penal, que em 1984 aboliu os efeitos automáticos da penas acessórias, sendo necessário que o juiz fundamente sua decisão, no caso, a perda da função pública do condenado.[4]
Assim, com a devida vênia da corte superior, entendemos que não podemos retroagir a épocas obscuras, com decisões carentes de fundamentação, sob pena de excessos não mais condizentes com o modelo republicano no trato das liberdades individuais.[5]
A vitaliciedade dos Oficiais Militares Estaduais e a inconstitucionalidade da perda do posto e patente do Oficial Militar Estadual pela Justiça Comum
A par da necessidade de fundamentação da decisão da perda da função pública, os Oficiais Militares Estaduais, por força do art. 42, §1º c/c 142, § 3º, VI e VII, ambos da Constituição Federal, somente podem perder o posto e a carta patente de Oficial por decisão do Tribunal Militar competente (existente nos Estados do RS, SP e MG) ou pela câmara criminal especial dos Tribunais de Justiça, nos demais Estados da Federação.
Trata-se de vitaliciedade, conferida aos Oficiais Militares dos Estados, por expressa disposição constitucional.
Assim, sendo condenado o Oficial por tipo de tortura, deverá o juiz de direito remeter a sentença, com certidão de trânsito em julgado, ao Tribunal de Justiça Militar do Estado (RS, SP e MG) ou para a Câmara Criminal do TJ (demais Estados da Federação), para que o procurador de justiça ofereça ação de natureza cível (administrativa) para decretação da perda do posto e patente do Oficial, declarando-o indigno para o Oficialato.
A norma processual é constitucional, não podendo prevalecer o disposto na lei 9455/97.
Conclusão
A perda da função pública do condenado por tipo penal previsto na lei de tortura não á automática, devendo ser fundamentada, ante a abolição das penas acessórias e o contido no art. 93, IX da constituição federal.
Em relação aos Oficiais Militares Estaduais, somente pode ser decretada a perda do posto e da patente do oficial após o regular processo previsto nos art. 42, §1º c/c 142, § 3º, VI e VII, ambos da Constituição Federal, eis que se trata de norma processual constitucional, não podendo o juiz criminal comum impingir tal penalidade ao Oficial, que possui vitaliciedade.
[1] Capitão da Brigada Militar do Estado do RS, especialista em direito processual civil; ambiental; penal e processual penal pela Ulbra/Canoas.
[2] BECCARIA, Cesare Bonasena. Dos delitos e das penas. São Paulo- RT, 1999, p. 61: crueldade, consagrada pelo uso, na maioria das nações, é a tortura do réu durante a instrução do processo, ou para forçá-lo a confessar o delito, ou por haver caído em contradição, ou para descobrir os cúmplices, ou por qual metafísica e incompreensível purgação da infâmia, ou, finalmente, por outros delitos de que poderia ser réu, mas dos quais não é acusado
[3] DECISÃO
Condenado por crime de tortura perde cargo automaticamente, sem necessidade de justificação
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou o entendimento de que não é necessária motivação na sentença de condenação por crime de tortura (Lei n. 9.455/97) para a perda do cargo, função ou emprego público. Outro efeito automático e obrigatório de tal condenação é a interdição para a prática de outra função pública por período duas vezes mais longo do que o tempo da pena privativa de liberdade.
A questão foi decidida por unanimidade, segundo o voto da relatora, ministra Laurita Vaz, que negou o pedido de policial militar que pretendia obter a anulação da perda do cargo e da interdição de exercício sob a alegação de ausência de motivação específica. Em sua defesa, o PM alegou afronta ao artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. Ele foi condenado à pena de três anos e seis meses de reclusão em regime fechado pela prática do crime de tortura.
Em seu voto, a relatora explica que a necessidade de motivação para a perda do cargo, função ou emprego público é estabelecida no artigo 92, inciso I, do Código Penal. Na Lei de Tortura é efeito automático da condenação e não depende de fundamentação. O entendimento da ministra reforça a jurisprudência do STJ.
Coordenadoria de Editoria e Imprensa
Fonte: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=86291&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=tortura, acesso em 07 de fevereiro de 2008.
[4] DELMANTO, Celso. Et al. Código Penal Comentado, 6ª ed. Rio de Janeiro – Renovar, 2002, p. 174: A reforma penal de 84 aboliu, por completo, as penas acessórias, que desde então não mais existem em nossa legislação com a natureza que elas tinham.
[5] Em sentido contrário - COIMBRA, Mário. Tratamento do injusto penal da tortura. São Paulo – RT, 2002, p. 196: verifica-se, pelo conteúdo do texto normativo, que, ao contrário do que dispõe o art. 92, parágrafo único, do CP, não cabe ao magistrado decidir se deve ou não declarar tais efeitos na sentença, vez que, no caso de condenação por qualquer das figuras típicas do crime de tortura, a perda do cargo, emprego ou função é automática, sempre se ressalvando que há necessidade do transito em julgado formal da sentença.