Resumo: O artigo apresenta o critério da dependência econômica como nota distintiva da relação de emprego, a partir de uma racionalidade transdisciplinar sobre o trabalho assalariado. Inicia pela demonstração dos problemas provocados pelo critério da subordinação jurídica diante das relações contemporâneas de trabalho. Baseando-se na economia política clássica, são delineados os traços do trabalho assalariado no capitalismo. A par da contribuição interdisciplinar, apresenta-se a (re)significação da dependência econômica. Na defesa deste critério, são refutadas as conhecidas críticas à ideia, de modo a considerar que a antiga noção de dependência econômica é superficial (epidérmica). No aprofundamento deste conceito, a concepção jurídica de trabalho dependente é refeita, notadamente a partir da ideia de ausência propriedade.
Palavras-chaves: dependência econômica. trabalho assalariado. subordinação jurídica. relação de emprego.
1. Introdução
Na contemporaneidade, o principal debate do Direito (individual) do Trabalho concentra-se na (re)avaliação da eficácia e dimensão do critério de subordinação jurídica como nota distintiva desta disciplina. Diante de novas situações de trabalho e, igualmente, de velhas situações com novos epítetos, persistem dúvidas sobre a adequação do conceito clássico de subordinação jurídica no trato destas questões. A atipicidade do trabalho coloca-se, intermediariamente, entre a autonomia e a subordinação, trazendo intensas dificuldades de operação para o conceito clássico de subordinação jurídica.
O atípico pode, igualmente, ser entendido como a heterogeneidade contemporânea do trabalho. Esta heterogeneidade comporta uma complexidade de formas de trabalho, que englobam desde o emprego não registrado, o trabalho precário (contratações à margem da CLT, a exemplo daquelas por meio de pessoa jurídica - “PJ´s”), trabalho informal (pequenos autônomos e grupos familiares vinculados ao sistema simples de produção) até as parcerias, entre outras situações. Nesta heterogeneidade de formas de trabalho, identificam-se trabalhadores que prestam pessoalmente serviços submetidos não à subordinação clássica do Direito do Trabalho, mas sim em uma condição de dependência.
Fora da noção clássica de “subordinação jurídica”, estes trabalhadores dependentes integrantes desta atipicidade são excluídos da tutela legal da relação de emprego. Entretanto, a realidade destes dependentes desprotegidos repete o problema da excessiva exploração do trabalhador que culminou no surgimento do Direito do Trabalho, embora o faça através de formas distintas da relação de trabalho subordinado clássica. Não obstante, tem-se indubitavelmente repetida a condição originária trabalhista: uma parte hipossuficiente que carece de proteção legal ante ao poder econômico do seu tomador de serviços. A desigualdade das partes nestas novas relações de trabalho persiste, ensejando a necessidade de um tratamento diferenciado e protetivo.
No âmbito normativo, a Constituição Federal de 1988, que irradia seus princípios e valores no sistema normativo, elenca como seu fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III). Para além da constitucionalização da tutela do trabalhador (art. 7°), o ordenamento jurídico brasileiro estabelece a proteção ao trabalho como um dos seus valores fundamentais e objetivos do Estado Brasileiro. Neste contexto valorativo constitucional, o sistema normativo trabalhista tem objetivo proteger os trabalhadores (expressão literal do art. 7°), cabendo a reinterpretação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) a fim de cumprir o programa constitucional, na direção da noção ampla de empregado, notadamente pelo viés da acepção de trabalho dependente.
Nesta contextualidade, a dependência econômica apresenta-se como um critério distintivo da relação de emprego capaz de comportar as diversas manifestações atuais de trabalho assalariado, inclusive hábil a desvendar criticamente a atipicidade de certas formas de trabalhar e elucidar algumas ocultações do assalariamento disfarçado. Em outras palavras, a questão cinge-se a tentar rearticular a sinonímia entre empregado e assalariado, a qual, atualmente, não se realiza adequadamente pelo critério da subordinação jurídica. Defende-se que a tradução jurídica da noção de assalariado corresponde a ideia de dependência econômica.
Com efeito, este artigo apresenta uma síntese da tese de doutoramento[2] que resgata o critério da dependência econômica numa perspectiva mais aprofundada da ideia de trabalho assalariado. Vale lembrar que a dependência econômica é uma ideia antiga, cuja aplicação foi recusada apenas por “razões doutrinárias”, até porque o texto legal (“sob dependência”) mais se aproxima semanticamente da dependência econômica do que da subordinação jurídica. No entanto, a noção antiga de dependência econômica, considerada aqui “epidérmica”, não atende, da mesma forma, as expectativas contemporâneas.
2. Rompendo com a subordinação distintiva
No bojo do pós-fordismo e da crise do Direito do Trabalho[3], novos e velhos problemas são colocados para a subordinação jurídica. Percebe-se que a marca da sujeição hierárquica do trabalhador foi atenuada ou diluída pelas dinâmicas de gestão do trabalho mais flexíveis, tornando mais difícil – pelo olhar tradicional – visualizar o mesmo assalariado, por força dos seus novos epítetos, como o (antigo) empregado. O novo do modismo contemporâneo disfarça, ilude e simula o velho padrão capitalista de trabalho assalariado, valendo-se de categorias e contratos de parceria, colaboração, autonomia, entre outros.
Os problemas do conceito de subordinação já iniciam pela sua própria definição. No debate histórico-doutrinário do juslaboralismo, a noção de subordinação jurídica pode ser dividida em dois sentidos bem demarcados. No sentido subjetivo, consiste em ordens e disciplina, fundada na ideia de poder, sendo esta a concepção hegemônica. No sentido objetivo, relaciona-se com inserção em produção alheia, por ausência de domínio dos fatores de produção, fundando-se na ideia de organização (ou propriedade), sendo esta posição minoritária.
Cotejando a concepção hegemônica, infere-se que a escolha pela subordinação hierárquica corresponde a uma grande mudança de foco, no sentido de, desprezando as características pessoais dos sujeitos da relação, apenas considerar a forma de execução da relação. É o objeto contratual que fixaria a relação de emprego e não seus sujeitos. Isto é, era a subordinação jurídica o objeto contratualmente negociado entre trabalhador e empregador e não mais a venda da força de trabalho. Se antes o Direito do Trabalho destinava-se aos hipossuficientes marcados pelo seu estado de assalariados, agora, somente interessam os assalariados que laboram sobre forte subordinação hierárquica e pessoal.
Esta ideia de subordinação seria melhor retratada com o verbete “sujeição”, entendida como sujeito dependente do poder de outro. Mas o signo sujeição tem significante muito relacionado à sujeição do escravo, o que justifica sua não utilização pelo peso histórico que rememora, ou seja, “[...] poderia sugerir submissão do trabalhador, a recordar o estado de servidão a que se viu submetido o escravo em certas etapas da história humana” (ROMITA, 1979, p. 72). Tratava-se de uma mudança de filosofia idealista. Retira-se simbolicamente o nome de sujeição pessoal, mas esta alteração de nomenclatura nada modifica a realidade de sujeição pessoal. Isto porque não era conveniente ao capitalismo (ou a doutrina juslaboral) resgatar traços do trabalho forçado, mesmo que estes fossem os mais aproximados ao da nova realidade.
Na atualidade pós-fordista, as formas atípicas de trabalho – novas formas – são o sintoma maior da crise da subordinação. Um dos traços marcantes deste pós-fordismo que mais contribuiu para a formação destas situações atípicas é precisamente a tônica de colaboração e autonomia. Com as potencialidades de gestão e a possibilidade de controle na dispersão, a reengenharia produtiva não se vale mais do clássico padrão de trabalho apoiado nas relações de hierarquia-disciplina. No pós-fordismo, é possível visualizar outro cenário para o modo de trabalhar: não se exige a presença do trabalhador na sede da empresa; os serviços são determinados e até executados eletronicamente; a jornada não é fiscalizada, inclusive porque se prefere a remuneração por produtividade, a qual, pelo seu baixo valor, exige o máximo de trabalho, já impondo jornadas maiores, inclusive sem pagamento de horas extraordinárias; dispensa-se o poder punitivo ao repassar, por meio do expediente formal da falsa parceria, a posse (embora se diga que houve venda) da mercadoria a ser comercializada, fazendo com que a maior punição – não receber pelo trabalho prestado – ocorra quando a atividade não for realizada devidamente.
Estas novas estratégias de gestão da mão de obra sinalizam para a aparência de autonomia e independência. Presos a uma versão estreita e limitada do conceito de empregado como aquela jungida à subordinação pessoal e hierárquica, o dogmatismo não mais identifica o estado de dependência aonde ele sempre esteve. Com isso, operou-se a redução dogmática do campo de aplicação do Direito do Trabalho pela cegueira dogmática-jurisprudencial.
Por outro lado, os problemas do critério da subordinação vinculam-se a uma tentativa de redução de custos através de estratégias gerenciais. Ao apenas visualizar o empregado como aquele que vive de ordens e teme punição, a doutrina juslaboral quase que, subliminarmente, estimulou a gestão de pessoal a, retirando este traço fundamental de ordens, eliminar também a proteção trabalhista. Isto é, a limitação jurídica do conceito de empregado propiciou o sucesso econômico da nova técnica de gestão de pessoal. A consequência prática é que a restrição do conceito de subordinação à tão somente subordinação pessoal e hierárquica produziu a exclusão da proteção aos assalariados que não são rigidamente hierarquizados.
Por isto, é preciso notar que a fuga da subordinação representa o ideal de lucro sem responsabilidade, confirmando a lógica capitalista de extração de mais riqueza mediante a redução dos custos. Logo, não pairam dúvidas de que o motivo principal do esvaziamento ou da própria crise da subordinação jurídica é justamente o interesse de evasão à proteção trabalhista, precisamente ao custo desta tutela legal. Não somente o discurso modista de formas novas de trabalho e de um novo perfil do trabalhador legitima a opção por uma contratação de força de trabalho “por fora” do marco regulatório do emprego. É antes uma decisão econômica – redução de custos como necessidade da intensa concorrência, inclusive com práticas sistêmicas de dumping social – que conduzem a criar novas modalidades de contratação, inclusive sob a lógica de colaboração e autonomia.
A insuficiência da subordinação jurídica se demonstra, porquanto seu sentido prevalecente e hegemônico (subordinação subjetiva) é a noção de subordinação pessoal ou hierárquica. Seu conteúdo corresponde essencialmente ao dueto ordem-punição, elementos externos pautados numa relação rigidamente hierárquica do empregador (superior) com o empregado (inferior). Ocorre que as dinâmicas contemporâneas de trabalho firmam-se, cada vez mais, numa relação aparente de colaboração, ruindo com a antiga rígida hierarquia. A contemporaneidade enfraquece o enunciador (ordens e fiscalização) para uma afirmação subliminar do enunciado (trabalho).
Antes mesmo das formas novas e das dinâmicas de autonomia, a concepção clássica da subordinação jurídica era, numa perspectiva crítica, incapaz de justificar situações distintas do tradicional trabalho operário-fabril. A subordinação clássica sempre teve dificuldades de abranger o trabalho intelectual ou especializado tecnicamente, tendo que, para estes tipos de trabalhadores, ser reformulada para uma subordinação “externa” e “tênue”[4]. Nestas situações, é preciso considerar a subordinação por “indícios externos”, tal como respeito a horário de trabalho e necessidade de comparecimento na empresa (BARASSI, 1953, p. 411). No mesmo sentido, a noção clássica de subordinação não explica satisfatoriamente o trabalho a domicílio, inclusive porque, nestes casos, sequer pode valer-se da ideia de subordinação externa, pois não controla nem o tempo e nem o local da prestação dos serviços.
Ademais, a ideia de controle se manifesta igualmente em outras situações distintas daquela de trabalho dependente. Ou seja, afirma-se, cada vez mais, que o controle se realiza sem a clássica subordinação. Existe controle nos contratos de obra/resultado e estes, ainda assim, podem ser desenvolvidos sob o prisma da autonomia ou da dependência. Há controle nas terceirizações, conforme se constata numa leitura atenta destes contratos de apoio empresarial, notadamente quando as empresas prestadoras de serviços e seus empregados observam atentamente o padrão de trabalho e a cultura organizacional da tomadora. Nos contratos de franquia, ocorre a observância de um padrão minucioso de trabalho, caracterizando manifesta subordinação técnica e organizativa do franqueado para com seu franqueador. Logo, a sujeição à forte subordinação não se restringe ao trabalho dependente, o que demonstra que a subordinação não é algo exclusivo da relação de emprego.
Nestes termos, se a condição originária do Direito Laboral foi a proteção aos trabalhadores economicamente fracos e se a atual crise limita esta proteção ao contingente diminuto de pessoas, a perspectiva futura do Direito do Trabalho – caso queira permanecer com sua ontologia – é ampliar sua proteção para os demais hipossuficientes. Para tanto, é imprescindível superar a concepção de subordinação como sujeição hierárquica. Noutro sentido, as concepções renovadas de subordinação objetiva[5] têm seus méritos, especialmente seu esforço em corrigir uma redução conceitual indevidamente realizada pela doutrina ao contentar-se com uma forte hierarquia. Todavia, continuam considerando uma consequência do fenômeno – a direção ampla subjacente à integração – como o próprio fenômeno do trabalho dependente.
A teoria da subordinação jurídica nunca rompeu a superficialidade da questão do estado de assalariado, justamente por creditar correção teórica à uma concepção insustentável epistemologicamente. A essência do assalariamento, como modelo capitalista de organização das relações de trabalho, não reside nos conceitos jurídicos, os quais somente visualizaram sua epiderme quando se vincularam à ideia de ordens (hierarquia) ou integração (acoplamento). É o mito da completude da ciência jurídica que legitima e impulsiona uma explicação apenas “jurídica” para a realidade social, ainda no afã irrefletido de uma “teoria pura”, no caso para o Direito do Trabalho.
Diante da principal consequência do assalariamento – “receber ordens” – e ansiosa por rejeitar os “perigos” de uma concepção econômica de dependência, a doutrina encontrou seu “melhor” critério, passando a definir o empregado – expressão jurídica do assalariado – como aquele sujeito subordinado. À primeira vista, os assalariados ao venderem sua força de trabalho colocavam sua energia à disposição dos seus tomadores, aceitando, então, como necessidade técnica, a direção dos seus serviços. Logo, o conteúdo jurídico imediato da situação econômica de assalariado era estar “sob ordens”.
No entanto, este primeiro cenário de disposição da força de trabalho se modifica sensivelmente nas situações de trabalho intelectual (ou domínio técnico) ou em domicílio. Nestas hipóteses, a principal consequência fica mitigada, “adelgaçada”, “diluída” e “ténue”. Assim, o local de trabalho ou fiscalização de horário de trabalho não servem como referência de comprovação da subordinação. Igualmente, o contexto pós-fordista implementa sistemas externalizantes de trabalho, fugindo também da versão clássica de estar “sob ordens”. Assim, pode-se verificar novos e antigos assalariados não sujeitos à subordinação, demonstrando que esta não integra ao conceito de assalariamento.
O assalariado caracteriza-se por colocar a venda sua força de trabalho, ou seja, por dispor de sua energia em favor de outro. Se o traço marcante da relação de emprego é estar à disposição de outrem, derivam-se daí duas possibilidades: a primeira de comandar intensamente esta “disposição”; a segunda de apenas estabelecer o resultado deste trabalho à disposição, considerando que o próprio trabalhador tem as condições (técnicas, intelectuais ou materiais) de realizar seu ofício sem vigilância e fiscalização. Não obstante as duas possibilidades de “disposição”, a subordinação somente visualiza a primeira acepção, apenas compreende a disposição como estrita obediência às ordens contínuas. Por decorrência, a subordinação deve ser vista como consequência da relação de emprego e não sua causa.
Pela sua gênese positivista[6] e pela sua natureza de consequência possível, é urgente retirar do critério da subordinação jurídica o protagonismo da definição da relação de emprego. Ainda no aprofundamento destas questões, averigua-se que é infundada a caracterização do Direito do Trabalho como a regulação fordista do trabalho assalariado. Isto é, o Direito do Trabalho se constitui como o marco regulatório do trabalho assalariado na sociedade capitalista e não como a correspondência jurídica da dinâmica organizativa do fordismo. Com efeito, o instituto juslaboral impregnado de fordismo – e, no caso brasileiro, de positivismo – foi o critério da subordinação jurídica. O Direito do Trabalho não é, portanto, um produto do fordismo, nem sob o aspecto cronológico, nem sobre o aspecto ontológico, embora se possa qualificar a noção clássica de subordinação jurídica como um conceito jurídico delimitado pela realidade fordista. Assim, a opção pela subordinação jurídica, na sua acepção clássica, representou uma guinada reducionista do campo de incidência do Direito do Trabalho, a qual, indevidamente, limitou o conceito de dependência à situação de sujeição hierárquica. Disto, há que se perceber a subordinação jurídica não capta a noção integral de assalariamento, mas apenas as consequências deste fenômeno.
3. Entendendo o trabalho assalariado
Fugindo do positivismo e da dogmática, é imperioso voltar a entender o que é trabalho assalariado para, então, repensar a proteção jurídica desta relação de trabalho. Na filosofia política, Jonh Locke (1978) atribui ao trabalho a fonte da propriedade. Pressupondo que o homem tem a propriedade de sua própria pessoa, terá, igualmente, a propriedade sobre os frutos do seu trabalho. É o trabalho da pessoa sobre os bens naturais, originalmente comuns a todos, que os coloca fora desta propriedade comum e dentro da propriedade individual. Em nome do trabalho realizado, a pessoa se apresenta perante a coletividade como proprietária, exigindo um direito natural à garantia desta propriedade pela sua justa origem no trabalho. Este noção, impregnada de individualismo, pressupõe que a liberdade individual somente se concretiza quando o indivíduo é proprietário de si mesmo, sendo a sociedade o mercado de encontro entre estes proprietários.
Além de criar a propriedade, o trabalho também cria a riqueza. Rompendo com a crença fisiocrata de que a agricultura é a criadora da riqueza, Adam Smith (2010) credita a riqueza das nações não ao acúmulo de metais ou aos ganhos das trocas mas sim ao trabalho humano. Em grande medida, a riqueza cresce conforme a divisão do trabalho, que exerce a função de motor deste crescimento e que desenvolve os papéis dos indivíduos no sistema social. A divisão do trabalho se perfaz como tendência natural do desenvolvimento dos processos de troca, sendo, entretanto, dependente de uma acumulação de capital. A partir daquele considerado como pai da economia política, o trabalho é concebido como ideia abstrata que cria valor e, simultaneamente, como atividade concreta produtora dos homens.
No entanto, a estruturação social capitalista, notadamente a divisão da propriedade, não permitiu que os trabalhadores fossem os titulares do resultado do seu labor, como deveria ocorrer pela ideia de Jonh Locke. Descontados as despesas com os meios de produção (matéria-prima, instalações e instrumentos), a criação de riqueza se expressa na diferença entre o valor criado pela força de trabalho (produto apropriado pelo capitalista) e a remuneração paga a mesma força de trabalho. Isto porque o salário, em essência, não pode corresponder ao total do valor criado pelo trabalho, sob pena de não ser salário, mas uma retribuição integral do trabalho agregado, tal como numa legítima sociedade. Adam Smith já tinha percebido que o produto do trabalho não é somente do trabalhador. “[...] todo o produto do trabalho nem sempre pertence ao trabalhador. Ele deve, na maioria dos casos, dividi-lo com o proprietário do estoque, que o emprega” (SMITH, 2010, p. 44).
A riqueza social, então, é o produto do trabalho social, sendo apropriada, no bojo das relações salariais, pelos contratantes proprietários, na forma de mais-valia (trabalho excedente não pago). Karl Marx elucida a questão: “O modo capitalista de apropriar-se dos bens, decorrente do modo capitalista de produção, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, baseada no trabalho próprio”. Vê-se que nas relações de trabalho entre proprietários e não-proprietários, o primeiro se apropria dos valores produzidos pelo segundo, o que ocorre sob a aparência (ou pela ocultação) de livre contrato de trabalho com um salário “justo”. A apropriação do valor se converte em (nova) propriedade: a propriedade das mercadorias produzidas pelos trabalhadores.
Despossuído de propriedades e possuído por prementes necessidades de subsistência, o trabalhador surge discursivamente como um sujeito livre, por não mais estar sob os grilhões da escravidão ou o pagamento sensorial da corveia na servidão. Robert Castel desvela: “O assalariado é então 'livre' para trabalhar, mas a partir do lugar que ocupa num sistema territorializado de dependência, e o trabalho que executa é exatamente o mesmo tipo do da corvéia”. O capitalismo empreende um discurso de ampla liberdade de trabalho, que se estende da possibilidade de escolha do emprego ou mesmo da desistência deste a qualquer tempo. Entretanto, estrutura relações sociais, políticas e econômicas que tecem fios invisíveis que limitam tais possibilidades, alocando, em regra, o trabalhador sempre na condição de dependente. Ao privar da substancial propriedade, impele sempre uma dependência do não-proprietário para com o proprietário, até porque a pobreza vicia a liberdade.
Uma real liberdade de trabalho corresponderia à liberdade de acesso aos meios de produção, não a situação de imperativo de sobrevivência que compele o trabalhador a, com a necessidade subjugando a vontade, trabalhar. A maioria das funções, na atual divisão social do trabalho, não são desejadas, mas aceitas por razões de necessidade e realizadas sem desejo, de modo insosso e desprezível. Em outras palavras, a separação dos meios de produção do trabalhador acarreta também em alienação/estranhamento e sub-alternatividade do trabalhador frente à mercadoria. O estranhamento no trabalho remete a caracterização deste como mercadoria, talvez por isso seja chamado de “mão de obra”.
Com isso, a situação objetiva de trabalhar para outrem já significa a subordinação formal deste que trabalha em favor daquele que recebe o trabalho. Esta subordinação cinge-se ao manifesto controle do tomador do serviço, através não da direção técnica, mas sim da detenção da propriedade dos meios de produzir. Nestas circunstâncias, o direito de propriedade na circulação capitalista empreende o papel de sonegar qualquer propriedade oriunda do trabalho para aquele é que não previamente proprietário, como o trabalhador. Portanto, o assalariado se caracteriza pela constante necessidade e dependência, pois somente possui sua força de trabalho. A coação ao trabalho se faz pela miséria e pela necessidade de obter meios para a sobrevivência[7], embora esta condição de dependente esteja camuflada pela formatação jurídica de liberdade contratual oriunda de individualismo e formalismo jurídicos iluministas. Como reforço a esta dependência estrutural, visualiza-se, ainda, a situação dos desempregados que formam um exército industrial de reserva, o qual reitera a disputa pela condição de vendedor de força de trabalho.
A questão central do modelo capitalista é, portanto, o monopólio por uma classe social dos meios de produção, impelindo a classe não-proprietária a vender sua força de trabalho, inclusive com cessão de trabalho excedente. Diferentemente dos modos de produção anteriores – que se pautavam em trabalho forçado (escravo, corveia, etc) através da atuação do poder do Estado –, o capitalismo construiu um modelo de trabalho formalmente livre, mas que, pela não detenção dos meios de produção, realiza-se como trabalho socialmente imposto. Se antes a coação era baseada na lei, agora ela ocorre pela própria estrutura social e, assim, de modo invisível.
Em síntese, a liberdade de trabalho dos não-proprietários num regime capitalista cria um estado estrutural de dependência do assalariado em face do capital, a despeito das garantias jurídicos-formais. A liberdade de trabalho do assalariado subjaz a necessidade imperiosa de sobrevivência, explicada pela perda anterior da titularidade dos meios de trabalho e reforçada pelo receio de prosseguir nas fileiras dos desempregados. Por fios invisíveis, estabelece-se uma dependência estrutural de um para com o outro, daquele que, como imperativo de sobrevivência, precisa imediata e cotidianamente vender-se ao outro, quer seja por não haver outra possibilidade econômica (ausência de propriedade), quer seja porque, em termos técnicos, não sabe desenvolver outro ofício senão aquela função parcelar-polivalente.
A produção dessa riqueza tem observado a lógica da intensificação do processo de trabalho, sendo esta a tônica do capitalismo[8], ora pela extensão da jornada de trabalho, ora pelo aumento de produtividade oriundo das inovações técnicas e da divisão do trabalho, ou mesmo pela conjunção de ambas. Para obter mais produtividade no mesmo tempo, é necessária a intensificação do trabalho (obtenção de maior eficácia), seja pelo aumento da velocidade da máquina, seja pela cumulação da operação de máquinas para um único empregado, seja pela maior disciplina e controle para eliminar os “poros da jornada”.
Precisamente, as diversas formas de organizar a produção (fordismo e toyotismo), com metodologias distintas, somente concretizam a lógica do capital de mais acumulação através da intensificação do trabalho. O diferencial do pós-fordismo não reside no avanço tecnológico, mas na relativa ruptura com o parcelamento das funções e com a implementação de uma lógica voraz de colaboração de classes. Como decorrência, o toyotismo foi economicamente bem sucedido porque conseguiu, pela sua sistemática de gerência produtiva, dar respostas satisfatórias (ganhos de produtividade e lucro) às oscilações contemporâneas do mercado (retração e expansão), além da incorporação da precariedade ao sistema produtivo.
Esta análise, pautada essencialmente na crítica de Karl Marx à economia política clássica, revela-se adequada para explicar as relações contemporâneas de trabalho no capitalismo. A compreensão dialética da totalidade do conjunto social permitiu a Marx identificar as estruturas gerais do trabalho assalariado e formular suas implicações, notadamente a ideia central: a dependência estrutural e prévia do assalariado ao empregador. Como consequência, o sujeito assalariado é aquele que, forjado no despossuimento, é impelido, embora juridicamente livre, a vender-se como mercadoria – como uma força – em troca do salário, cujo proveito econômico resultante deste trabalho é apropriado por outro. Despossuído, coagido e expropriado são termos delimitadores do conceito de trabalhador assalariado.
No Brasil, o assalariamento segue esta estrutura geral, com o tempero próprio da historicidade e política latino-americana. De início, a formação do mercado de trabalho brasileiro foi caracterizada por políticas e mecanismos legais de coação para a condição de assalariado. Com destaque, teve-se a não inclusão dos ex-escravos e o aprisionamento das terras, além do aprisionamento “contratual” dos imigrantes. Estas circunstâncias históricas engendram, também nas terras brasileiras, uma estrutural dependência daqueles não-proprietários para com os proprietários daqui. Ou seja, o ponto de partida dos assalariados brasileiros foi justamente a construção política-social do despossuimento da maioria, forjando necessária venda da mão de obra como condição de sobrevivência dos trabalhadores.
Por isso, a liberdade de trabalho somente reside nos planos dos discursos, inclusive por que sequer foi albergada nas ordens jurídicas anteriores a CLT, vide o exemplo do trabalho do imigrante da Lei 108/1837. A pseudo liberdade também inscreveu suas marcas neste país como o efeito palpável da retórica política e jurídica de trabalho livre, quando a necessidade destes despossuídos corroía totalmente a livre opção de trabalhar. O despossuimento do obreiro brasileiro é a marca forte do capitalismo local. Como garantia do reforço desta imposição da venda da força de trabalho, o mercado de trabalho local ainda se vale dos expedientes do exército industrial de reserva (desemprego) e da persistente informalidade. A dependência aqui revela-se intensa e viciadora da vontade do trabalhador, inclusive ocultada numa legislação pensada e operacionalizada pelo positivismo.
Agravando a dependência, os novos discursos da reengenharia pós-fordista tentam recolocar a situação de precariedade e instabilidade anterior ao próprio trabalhismo. No tempo presente, a principal consequência desta precariedade do trabalho tem sido o esvaziamento da forma clássica do emprego pelas diversas medidas de externalização e precarização. Talvez como resposta do capital a um certo status de proteção legal obtido na forma jurídica emprego ou mesmo apenas a renovação da lógica ontológica de extração de lucro, foram criadas novas formatações de não-emprego para a prática de trabalho assalariado.
Assim, o cenário político-social do mercado de trabalho nacional assemelha-se a um grande mosaico, com figuras aparentemente dispares e antagônicas – assalariado protegido e precário, toyotismo e fordismo, flexibilização de relações já “flexíveis”, trabalho escravo contemporâneo e robotização – que se firmam como integrantes de uma mesma dinâmica. Sem prejuízo da singularidade histórica, a expansão do capitalismo – leia-se mais extração de riqueza do trabalho – realiza-se com mais intensidade e com mais enfraquecimento dos trabalhadores, o que lhes atribui uma condição estruturalmente mais dependente do Capital quando comparada aos países de capitalismo central. Por sinal, o verbete “dependente” desacompanhado de qualquer adjetivo é justamente o texto literal da definição legal de empregado, consoante art. 3º da CLT. Todavia, o positivismo e seu afã puritano reduz, intencionalmente, esta dependência à subordinação jurídica.
O mercado de trabalho brasileiro, portanto, não é destinatário, em termos hegemônicos, da proteção do Direito do Trabalho. Conjuntamente com as questões sociais, políticas e históricas descritas acima, a conceituação de empregado adotada pelos operadores jurídicos tem uma parcela de responsabilidade nesta considerável ineficácia do Direito Laboral. Justamente a subordinação jurídica, precisamente sua vertente subjetiva, simboliza um acesso estreito e limitado para o mundo da tutela trabalhista. Como visto, esta “pequenina entrada” colabora significativamente para impedir que mais assalariados recebam a proteção social que o Estado brasileiro juridicamente se comprometeu.
Nestes termos, a subordinação jurídica exerce o papel de concausa para o agravamento deste cenário de reduzido reconhecimento da relação empregatícia. Por força dos limites que a doutrina trabalhista lhe imputou, a subordinação jurídica não deu conta do trabalho ilegal e informal e, principalmente, sucumbiu diante dos discursos da autonomia e colaboração amparados na acumulação flexível. Se já se apresentava como um critério estreito diante da totalidade dos assalariados, assume a tendência, na contemporaneidade, de distanciar o conceito de assalariado do conceito de emprego, pois os assalariados dependentes de hoje são coordenados/integrados a empresas, mas não classicamente subordinados.