4. O retorno dependência econômica
Diante dos problemas do conceito clássico da subordinação jurídica e das situações paradoxais de trabalho dependente não-subordinado, a dependência econômica tem sido novamente cogitada como nota distintiva do Direito do Trabalho. Por consequência, parcela da doutrina nacional e estrangeira cada vez mais se vale da antiga ideia de dependência como critério mais pertinente para o enfrentamento das situações atuais de trabalho. O critério, outrora renegado e tido como inaceitável pelo seu conteúdo extrajurídico, desponta novamente no debate doutrinário.
No horizonte estrangeiro, o debate está franqueado, tendo a dependência econômica um lugar de destaque como alternativa ou complemento à subordinação jurídica. As novas figuras atípicas nas relações de trabalho são todas envoltas pelo estado de dependência econômica que é de difícil enquadramento na clássica subordinação. O professor português José João Abrantes (2004, p. 94-95) enuncia que: na Itália a legislação valeu-se do epíteto “parassubordinado” (il lavoro parasubordinato); na Alemanha designa-se “pessoas semelhantes a trabalhadores” (arbeitnehmerähnliche persone)[9], pois são prestadores de serviço economicamente dependentes (tarifsvertragsgesetz), também intitulados quase-trabalhadores; em Portugal, denomina-se contratos equiparados.
No espectro da Organização Internacional do Trabalho – OIT, discute-se o problema do conceito de empregado e o seu campo de destinatários. No debate da 91a Reunião da OIT em 2003[10], enfrentou-se a questão do “ámbito de la relación de trabajo” e, por consequência, as situações de “trabajo encubiertas o ambiguas”. No relatório do debate, afirma-se que “La dependencia económica, es cierto, no entraña subordinación en todos los casos, pero puede ser un criterio útil para determinar si un trabajador es un asalariado y no un empleado por cuenta propria” (OIT, 2010, p. 31-32).
No Brasil, Arion Sayão Romita, o mesmo autor que introduziu no país o conceito de subordinação objetiva, já sinaliza para a retomada da dependência econômica, afirmando que o atual contexto “propicia a revalorização da dependência econômica como critério legitimador da aplicação das leis a quem contrata serviços remunerados por conta de outrem, ainda que não juridicamente subordinado” (ROMITA, 2004, p. 1287).
A condição de dependente do trabalhador é indiscutivelmente a causa e a razão de ser do Direito do Trabalho. Com efeito, é o traço da dependência o constitutivo da singularidade do juslaboralismo, haja vista que seu caráter protetivo, limitador da exploração deste trabalho, é o caractere que o distingue das demais disciplinas das relações privadas. Serve, então, como medida de garantia de civilidade a uma relação econômica que é estruturalmente injusta e desproporcional. O Direito do Trabalho destina-se aqueles que somente têm a força de trabalho como possibilidade de vida e, assim, como serem dependentes daqueles que lhes ofertem um salário.
A oferta de trabalho, na forma de assalariamento capitalista, resulta em exploração da própria pessoa, porque se manifesta como apropriação alheia do trabalho daquela. Perante as situações de excessiva exploração do trabalho humano, a ontologia juslaboral foi criada almejando combater a exploração do homem pelo homem, seja por sua atenuação (reformismo cristão), limitação (socialismo utópico) ou mesmo a supressão (comunismo). Independentemente dos graus de tolerância da exploração, resta clarividente o compromisso ontológico do Direito do Trabalho em questionar a desigualdade entre o patrão (tomador dos serviços) e o trabalhador (prestador dos serviços), ou melhor, em contestar a hipossuficiência nas relações laborais, embora persista sua função geral de legitimar a exploração capitalista.
A justificação histórica e ontológica da criação de uma tutela legal para as relações de trabalho é a condição essencialmente dependente do trabalhador assalariado para com o Capital. Por esta razão, o critério da dependência econômica detém uma força histórica marcante no Direito do Trabalho, como delimitação conceitual jurídica da condição de assalariado. Apesar dessa importância histórica e ontológica, entendeu-se que a dependência econômica era tão somente a causa “pré-jurídica”, nada além disto. Estando fora da seara jurídica, não poderia, então, servir como critério jurídico, sob pena de ofensa ao puritanismo conceitual positivista. Há inexplicável paradoxo nesta rejeição de importância e utilidade.
Noutro sentido, a dependência econômica é, de igual modo, o fundamento da expansão do Direito do Trabalho. Na busca pela proteção dos sujeitos em debilidade econômica, o Direito do Trabalho empreende um histórico de recorrente alargamento do campo dos seus destinatários. Rememore-se que a intervenção protetiva da legislação trabalhista iniciou-se exclusivamente para as “meias forças” – mulheres e crianças –, embora adstrita ao fundamento geral de integridade física, garantida por meio da limitação da jornada. Adiante, afirmou-se como sistema protetivo para os operários fabris, baseando-se não mais em poder de polícia, mas agora considerado como um direito social: o Direito do Trabalho. Ultrapassa a fronteira da fábrica ao estender esta proteção aos empregados do comércio em geral, inclusive abrangendo sujeitos economicamente médios como os alto-empregados e gerentes. Transcende o trabalho manual em direção ao trabalho intelectual. Chega à residência familiar protegendo os domésticos e ao campo tutelando os rurícolas e, ainda, afirma-se como tuitivo mesmo para o trabalho fora da fábrica, aquele praticado no domicílio obreiro.
Todo o fundamento do princípio da proteção trabalhista e, igualmente, do princípio da irrenunciabilidade é a debilidade econômica frente ao empregador, e não a subordinação jurídica. Ademais, a própria legitimação ontológica da subordinação jurídica se dava pelo paralelismo do seu conceito com o de dependência econômica, ou seja, pela existência conjunta com esta última noção. Da história e da ontologia, confirma-se que a tutela do trabalho sempre foi legitimada socialmente pela condição hipossuficiente do trabalhador. E a medida desta hipossuficiência – de quem trabalhar para outrem – é justamente a dependência econômica. É a razão histórica e ontológica que justifica e legitima o modelo de proteção do Direito do Trabalho em favor daquele sujeito não-proprietário que vende sua força de trabalho, pela sua prévia condição de dependente econômico.
5. Ultrapassando a clássica dependência econômica
A retomada da dependência econômica para que seja mais efetiva deve ser (re)pensada numa dimensão mais aprofundada em relação aquela ideia apresentada no início do século XX. O perfil daquele sujeito que vive da venda do seu trabalho seria a primeira tradução jurídica para o conceito de dependência econômica. O primeiro autor a usar o conceito de dependência foi o francês Paul Cuche em 1913, para o qual a dependência econômica decorria de dois requisitos inseparáveis. Primeiro, o trabalho deverá ser a única ou principal fonte de sobrevivência do trabalhador, conferindo ao serviço prestado a condição para o seu sustento. Segundo, o empregador deve absorver de forma regular e integral os serviços prestados pelo trabalhador, havendo, portanto, a inserção e exclusividade do trabalho deste na empresa. Em síntese, o trabalho do obreiro lhe garantiria prevalecentemente sua subsistência e seria exclusivo em favor de um tomador.
Um outro autor francês, Alexandre Zinguerevitch, formulou um conceito mais amplo de contrato de trabalho, a partir dos traços mais gerais da dependência econômica, enfocando especialmente a questão da privação da liberdade econômica. Zinguerevitch pretendia defender uma noção ampla de contrato de trabalho a partir dos critérios gerais da OIT, em especial o princípio diretor de que o trabalho não pode ser tratado como mercadoria, quebrando ou limitando juridicamente o “livre jogo” da lei de oferta e procura de mão de obra no mercado de trabalho.
O pressuposto de Zinguerevitch era “[...] o que caracteriza essencialmente as relações entre o patrão e o empregado é estado de fraqueza e dependência econômica no qual se encontra o segundo em relação ao primeiro” (1936, p. 28). Logo, quem não pode trabalhar para si mesmo e, assim, precisa fornecer seu trabalho para outro é economicamente fraco. Seriam, então, dependentes aqueles sujeitos “privados de liberdade econômica”. Como resposta às críticas, muitos autores aderiram à justaposição da dependência econômica à subordinação jurídica. Cabe notar que o próprio Paul Cuche referia-se à dependência econômica como um critério adicional à subordinação jurídica.
Como visto, a delimitação jurídica do critério da dependência econômica sempre se ateve à superficialidade quando concebe o dependente como sendo aquele trabalhador que vive da remuneração. Este viver de salário representa apenas a epiderme do fenômeno, haja vista que todos os que prestam serviços, inclusive os autônomos, vivem da contraprestação pecuniária recebida. De igual modo, empresas podem se encontrar em uma situação de dependência econômica para com outras empresas maiores, a exemplo dos processos produtivos de subcontratação.
Como reparo a esta superficialidade, José Martins Catharino já esboçava uma acepção relativizada da dependência econômica, visando torná-la mais juridicamente eficaz. “Na sua concepção relativa, [...] bastando que o salário seja o principal meio de vida, e a absorção parcial e predominante do seu tempo disponível por empregador” (CATHARINO, 1982, p. 203). O mesmo autor destaca adiante que ainda assim há falha no critério, invocando a hipótese fática em que uma pessoa trabalhe e seja igualmente remunerada por duas empresas. Entretanto, o professor baiano frisa que a ausência de dependência econômica, ou seja, uma situação de independência econômica do obreiro, é manifestação clara da desfiguração do contrato de emprego. Catharino registra que as divergências com a ideia da dependência econômica não resultam sua invalidade, graças a sua sólida raiz histórica e política do critério que lhes garantem sustentação (1982, p. 204).
Atrelada à aparência primária da dependência econômica, a doutrina juslaboral teceu diversas críticas a este critério, concluindo pela sua imprestabilidade. A primeira negativa à dependência econômica provém do seu caráter extrajurídico[11], que corresponde a um demérito, pois o conceito não foi formulado nos precisos e completos marcos conceituais do direito. Além do equívoco epistemológico advindo do positivismo que sustenta esta crítica à extra-juridicidade, há uma pretensão subliminar de completude do sistema jurídico que, assim, não pode admitir critérios que não sejam autossuficientes no próprio direito.
Outra crítica advém de um cenário hipotético em que o empregado é mais rico do que seu empregador, cuja situação há subordinação, mas não dependência. A princípio, o cenário da crítica é quase fictício, cabendo a indagação de quantos empregados estão nesta situação afortunada. A crítica, então, inicia-se numa pressuposição idealista, porque pouco considera a realidade concreta e sua manifestação cotidiana. Ainda assim, cabe endossar o exercício de imaginação e reiterar a dúvida: teria mesmo o empregado mais propriedade do que a empresa que trabalha? Caso a resposta fosse afirmativa, seria lógico que o sujeito, com possibilidade de comprar uma empresa decidisse, ao inverso, vender seus serviços em manifesto prejuízo econômico? A resposta positiva significaria que o sujeito iria preferir economicamente a redução do seu patrimônio, em manifesta ofensa à lógica capitalista de acumulação. Esta opção, justamente pela irracionalidade diante da dinâmica do sistema, não merece aceitação, porque nega a razoabilidade na vontade do sujeito.
Neste bojo, é possível adequar – tornando-o mais real, racional e factível – o exemplo para aquela situação em que o obreiro não está totalmente privado de patrimônio, seja porque detém uma herança ou outra fonte de renda considerável. Usando o exemplo de Jorge Luiz Souto Maior (2008, p. 63) que nega validade à dependência econômica pode-se, ao contrário, confirmá-la. Trata-se da situação na qual um juiz do trabalho – que aufere grande remuneração quando comparada ao mercado médio de trabalho – atua como professor em faculdade privada. Nesta situação, a condição personalíssima deste professor – excepcionalmente hiperssuficiente pela outra ocupação – não significaria autonomia. Ao inverso, no âmbito das relações internas à faculdade, este professor-juiz é tão dependente quando o professor-professor ou um professor-advogado, pois nenhum destes são os detentores do capital que funda a faculdade. Não sendo proprietários, não lhes cabe estruturar a forma de trabalhar, tampouco fixar os objetivos institucionais da empresa e, principalmente, não lhes é apropriado o resultado do seu trabalho.
A inexistência de dependência econômica no contrato de trabalho é uma “exceção da exceção” quando comparada com a existência de dependência econômica, pois aqueles que não têm os meios de produção (dinheiro, propriedades, etc) têm a liberdade (única opção) de vender seu trabalho em troca da sobrevivência. É este o traço marcante do trabalho assalariado e da relação de emprego. Negar a dependência econômica invocando a hipótese da pessoa rica que se sujeita a trabalhar como empregado é impugnar a realidade social a partir da exemplificação de um “caso de laboratório” (URIARTE; ALVAREZ, 2001, p. 212).
A crítica relativa à exclusividade é infundada, eis que se apresenta como uma consequência superficial do fenômeno. Quem vive de salário deve, por suas necessidades vitais, buscar o número máximo possível de tomadores, a fim de garantir sua sobrevivência. A necessidade de vender-se a mais de uma empresa é, ao contrário, reforço da debilidade econômica do trabalhador que não consegue encontrar os meios de subsistência satisfatória em um único empregador, quando lhe é fisicamente possível trabalhar para diversos tomadores. Note-se que este é o exemplo sintomático do avulso que precisa necessariamente de diversos tomadores para realizar sua sobrevivência.
Todas as críticas acima foram responsáveis para a rejeição do critério da dependência econômica como nota distintiva da relação empregatícia. Embora seja pacífico que a dependência é a causa Urge, portanto, transpor este visão epidérmica, para começar entender com profundidade interdisciplinar a noção de trabalho dependente.
6. Refazendo a delimitação jurídica do trabalho dependente
Se a dependência econômica tem sido, até então, enfrentada sobre seus aspectos superficiais e igualmente criticada pelos problemas oriundos desta aparência, é premente romper com esta análise epidérmica. O aprofundamento da noção dependência implica refazer, agora com o esteio numa compreensão interdisciplinar e crítica, uma delimitação jurídica do trabalho assalariado. Almeja-se resgatar a sinonímia integral entre trabalhador assalariado e trabalhador dependente.
O primeiro elemento desta delimitação jurídica é reconhecer que o poder – e sua consequência potencial de subordinar os trabalhadores – de uma empresa capitalista decorre da sua propriedade. Retomando Karl Marx, vê-se que “O capitalista não é capitalista por ser dirigente industrial, mas ele tem o comando industrial porque é capitalista” (2006, p. 385). O capitalista comanda a empresa em nome da propriedade de que é titular. Por ser o sujeito proprietário, pode-se afirmar como o comandante da empresa. Por decorrência, o poder diretivo é mera consequência da produção capitalista e não sua qualidade distintiva.
O fundamento central da relação de trabalho é a propriedade, precisamente porque o caráter singular desta relação é o intercâmbio entre proprietários e não-proprietários. Entretanto, essa questão é ocultada no Direito do Trabalho. A ênfase que o juslaboralismo confere ao poder diretivo atua, de certa medida, como ocultadora e naturalizadora desta relação entre proprietário e não-proprietário[12]. O contrato de trabalho aparece, então, como o momento jurídico de legitimação da subordinação, embora antes mesmo de contratar, o trabalhador já é dependente por não ser proprietário.
Sendo o assalariado um sujeito despossuído – por ausência de propriedade capaz de lhe permitir atuar como empreendedor – fica “livremente” impelido a vender sua força de trabalho. O despossuimento é que demarca sua condição de dependente e não o fato de depender de salário. A relação de dependência do assalariado para com a empresa é prévia ao contrato de trabalho e estrutural na sociedade capitalista, na medida em que a força de trabalho somente se realiza quando vendida ao Capital. Seu destino dirige-se estruturalmente à alienação em favor do empregador sob a condução sutil dos fios invisíveis da teia capitalista. O trabalho desconectado da propriedade no mundo capitalista reduz o sujeito trabalhador a apenas força de trabalho, ou seja, a algo a ser vendido como mercadoria em troca de salário. Infere-se aí que o viver do salário é a consequência do ser despossuído e não a própria condição de dependente.
A direção dos serviços não é condição essencial para existência de trabalho dependente, embora seja uma das consequências mais habituais. O exemplo do vendedor externo ou do trabalhador intelectual é emblemático no sentido de demonstrar que nem todo trabalho assalariado é heterodirigido. Por isso, é a condição de proprietário dos meios de produção que legitima o comando do capitalista e não a situação inversa. O poder ínsito à propriedade dos meios de produção explica como pode ocorrer trabalho por conta alheia sem a direção dos serviços. Há casos em que o empregador é o dono do resultado do trabalho sem necessitar exercer o comando.
O segundo elemento é a pseudo liberdade de trabalho. A despeito das liberdades discursivas do capitalismo, aos despossuídos cabe a “livre” única opção de vender sua força de trabalho. A liberdade de trabalho dos que não têm substancial propriedade é inócua: se não tem como possuir meios produção, sempre tem que se vender. Neste primeiro sentido, ela é totalmente inexistente.
Conjuntamento com o poder do capitalista baseado em sua propriedade, o assalariado é o sujeito privado de real liberdade. O capitalismo dissocia os fatores de produção (capital versus trabalho) e, consequentemente, sempre força o trabalhador a vender seu trabalho, salvo quando o trabalhador é titular do capital, situação em que ele já é o próprio capital. O capital afasta inicialmente o trabalho dos meios de produção, mas simultaneamente força a venda de trabalho como condição de sobrevivência.
Adiante, num segundo sentido, a liberdade de trabalho é deveras pequena, embora existente quando o empregado pode ter alguma escolha aonde oferecer seu serviço. Em momentos de grande crescimento econômico, a força de trabalho, valorizada pela larga procura, tem alguma liberdade: vender-se para empregador A ou empregador B, conforme o maior quinhão prometido. Neste modelo societal, a liberdade plena de trabalho teria que pressupor a real capacidade de todo trabalhador acessar a condição de empresário. Ou seja, a verdadeira liberdade justificaria que a condição de empregado fosse uma real e livre opção do trabalhador, mas nunca uma necessidade de sobrevivência.
Infere-se que, no capitalismo, o homem trabalhador não mais vende mercadoria (produto do trabalho), mas é a sua força que é comercializada. Dissocia-se, com evidência, o feitor do trabalho e o proprietário do resultado, situação que até então era coligada. O autônomo é aquele que é proprietário da matéria-prima e do resultado do trabalho, sendo que nele foi empregado sua força. Assim, o autônomo tem liberdade para quem vender e não somente se vincula a um único tomador. Aqueles que têm capital razoável para instituir e dirigir sozinhos sua empresa, mas que preferem seguir certos modelos de parceria (franquias, contratos de prestação de serviços, parceiros capitalizados, entre outros) são, por opção, sócios do capital, não sendo dependentes econômicos. É a esta a distinção da dependência econômica com a subordinação objetiva que incluiria estas pessoas integradas a um processo produtivo.
Tudo isto leva a compreender o sujeito assalariado como sinônimo total de sujeito dependente, como aquele tem seu trabalho apropriado pela empresa. Encontra-se o sujeito dependente como o ser despossuído e coagido a se vender como apenas mercadoria (força de trabalho). Neste particular, a subordinação jurídica em nada capta a questão do assalariado e sua pseudo liberdade. A dependência econômica, então, engloba a subordinação jurídica, sendo muito mais ampla do que esta, uma vez que considerando os elementos prévios do assalariado pode também considerar o trabalhador subordinado normalmente como dependente. O trabalho por conta alheia implica estado de dependência do trabalhador, a qual é “uma consequência ou um efeito da prestação de trabalho para terceiros, pertencerem originariamente a pessoa distinta da que efetivamente trabalha, esta se reserva um poder de direção ou de controle sobre os resultados [...]” (OLEA, 1969, p. 32).
O esqueleto geral do assalariamento é a relação de trabalho entre um proprietário e outro não-proprietário, na qual há uma dependência estrutural e prévia do segundo para com o primeiro. É esta dependência prévia a tônica do regime do assalariamento, pois quem vende trabalho e não mercadoria (vendida somente pelo proprietário) é assalariado. Quem vende trabalho é sempre subsumido ao seu comprador, pois vende algo que, por ser uma parte de um produto qualquer, somente se concretiza quando for vendida, isto é, quando colocada em ação na produção. A venda de trabalho (força de trabalho) é, assim, sempre dependente no capitalismo.
Com desenvolvimento econômico-social, a pobreza individual deixa de ser sinônimo de despossuimento. Associa-se, prima facie, assalariamento à pobreza individual, o que é um equívoco consoante análise aprofundada, uma vez que despossuimento não significa necessariamente miséria ou pobreza individual. Como na concepção clássica da dependência econômica, a epiderme do fenômeno foi caracterizada como o próprio fenômeno. O assalariado era inicialmente o sujeito despossuído universal, logo, sujeito pobre ou miserável. Entretanto, o atual assalariado não é necessariamente o sujeito inserido na situação de pobreza. A condição salarial transpõe, para alguns, a margem da pobreza, elevando-os a condição de classe média ou até de altos-empregados. Nem por isso, deixam estes de serem sujeitos dependentes econômicos.
A par desta distinção entre pobreza e assalariamento, falar em despossuimento corresponde a afirmar que o sujeito, tendo algum patrimônio, não tem propriedade suficiente para montar sua empresa, ou seja, não detém os meios de produção. Embora, tenha até um automóvel ou uma residência, o trabalhador não tem como viabilizar economicamente a constituição de uma empresa, o que lhe coloca numa relação social de venda compulsória de força de trabalho. Portanto, é preciso distinguir, novamente, que a dependência econômica atinge o sujeito pobre pauperizado e os demais sujeitos medianos (profissionais intelectuais, artistas, vendedores, técnicos, professores, entre outros) que também ocupam a posição social de assalariado.
Percebendo a dependência como prévia, estrutural e distinta de pobreza, cumpre firmar sua delimitação conceitual não mais pelas consequências do fenômeno do trabalho assalariado – como fez parcialmente a teoria da subordinação jurídica. Sabe-se que as definições construídas sobre as consequências dos fenômenos tendem a não captar a sua inteireza, como também a se esvaziar quando o mesmo fenômeno alterna seus efeitos. São estes os exemplos dos diversos critérios que atuaram como notas distintivas do Direito do Trabalho, eis que todos captavam apenas uma consequência parcial do assalariamento e logo se tornavam inadequados. A dependência técnica não se adequa ao empregado com domínio técnico, a sujeição hierárquica não combina com o trabalho intelectual, a vigilância e fiscalização têm dificuldades de materialização no trabalho a domicílio, a pobreza individual não explica a ocorrência de altos e médios assalariados e, por fim, a integração à empresa comporta, além dos assalariados, os autônomos. Em todos estes casos, a ênfase foi na consequência e não na causa.
O sentido da expressão “venda de força de trabalho” refere-se ao bem cuja utilidade econômica é restrita, por depender do seu acoplamento a um empreendimento, mais precisamente pela sua conjunção com a propriedade (meios de produção). Sendo o trabalho um elementos da empresa, seu destino é o de estar contido nesta. O trabalho dissociado da propriedade não pode agir como empresa; somente lhe cabe retornar a empresa pela “venda compulsória de força de trabalho”. Ao contrário, quando o trabalho encontra-se associado à propriedade seu resultado deixa de ser apenas força de trabalho (valor-de-uso) e passa a ser uma real mercadoria (valor-de-troca), recebendo os epítetos jurídicos de produto ou serviço.
Nesta definição, é preciso realçar que o trabalhador dependente é exatamente aquele que, por ser despossuído, trabalha por conta alheia e, assim, não se apodera dos resultados desta entrega de trabalho. O trabalho por conta alheia origina o sujeito dependente como fundamento do Direito do Trabalho. Daí, forma-se, por simetria, o conceito de empresa como ente que se apropria dos resultados positivos e negativos – os riscos do negócio –, inclusive porque normalmente dirige a organização da empresa.
Neste particular, dirigir a organização da empresa é um conceito muito mais amplo do que o estabelecimento da hierarquia e de sua faceta mais visível de “emitir ordens”. O ícone da empresa não é o mando, mas a propriedade. Mais importante do que dirigir os serviços – o que pode ser traduzido num controle contínuo da atuação do empregado – é estruturar e organizar os serviços, os quais poderão até ser executados sem esta reiterada direção (vide situação do vendedor viajante). Organizar a empresa diz respeito a estabelecer os rumos da atividade econômica, fixar a dimensão territorial de atuação, definir os preços dos bens e serviços que comercializa e, principalmente, ser juridicamente o proprietário do resultado do trabalho dos seus empregados.
A condição de dono não propicia a atuação como chefe emissor de ordens e fiscalizador, até porque este papel é cotidianamente atribuído aos seus capatazes. O dono cria e organiza, delega a direção aos altos-empregados, mas, sempre, é o proprietário da riqueza gerada pela força de trabalho que comprou. É este o comando geral inerente a qualquer titular de empresa, sendo o modelo fordista apenas uma possibilidade dentre muitas, a exemplo das pós-fordistas, de dirigir a atividade da empresa.
A par disto, o termo “dependente” deve ser compreendido menos como um adjetivo (subordinado e assujeitado) e mais como aquele que predica ação “depender”. O verbo “depender” – ação daquele que é dependente – deve privilegiar a semântica de “pertencer”, “estar condido” e “fazer parte” em detrimento da subordinação advinda do “estar sujeito” ou carecer economicamente (HOUAISS, 2009, p. 616). O empregado é dependente porque sua força de trabalho não se realiza sozinha, pois pertence estruturalmente à empresa, fazendo parte desta e, como consequência possível, podendo ser subordinado.
A demarcação da dependência foi feita, até aqui, sem adjetivos, numa concepção generalizante. Todavia, é preciso fazer uma opção de recorte desta ampla delimitação visando enfatizar seu aspecto preponderante. A ênfase no aspecto econômico consiste no realce da força e do poder da propriedade. Fala-se em “econômica” para sempre relembrar que a causa e a continuidade do estado de dependente advém da apropriação alheia do trabalho, ocorrida em nome da propriedade.
A chave da compreensão crítica da dependência é, então, seu conteúdo econômico, como correlato à ausência de propriedade. Trata-se da percepção de que esta forma de trabalho dependente é estruturada pelas condições econômicas da sociedade capitalista. Em nome da propriedade, coage-se ao trabalho, como também, por força da propriedade, expropria-se a riqueza criada pelo trabalhador. Não é à toa que o centro do capitalismo converge à propriedade e não ao trabalho, embora seja o trabalho fundador da riqueza que se represa em propriedade.
Qualificar a dependência como econômica significa explicitar a natureza capitalista da venda da força de trabalho e seu consequente Direito capitalista do Trabalho, que na fuga conveniente do extrajurídico termina esquecendo suas imbricações econômicas. Almeja-se destacar que a manifestação concreta de vontade e a liberdade, no capitalismo, pressupõe um sujeito proprietário, sendo remanescente a coação e a restrição da vontade para os não-proprietários. Daí, resta impraticável considerar como contratantes iguais na sua livre vontade negocial o empregado e o empregador, nas recorrentes tendências flexibilizantes de retorno da convalidação da autonomia privada.
Da mesma forma, objetiva rememorar que se os sistemas jurídicos pretendem concretizar o valor da dignidade humana devem combater o poder veiculado pela propriedade, através de limitações constitucionais e legais. O ascendente solidarismo de uma Constituição-Dirigente, para lograr seu firmamento, precisa conter o Capital. Nesta direção, deve-se, cada vez mais, fortalecer as limitações dos poderes dos proprietários, tal como ocorre com a “função social da propriedade”, Direito do Consumidor, Lei do Inquilinato e, ontologicamente, o princípio da proteção do trabalhador no Direito do Trabalho.
Nestes termos, os fios invisíveis da produção capitalista estabelecem a dependência antes do próprio contrato (coação para venda da força de trabalho), limitam as possibilidades de ocupação (dependência técnica) e, no sistema legal brasileiro, caracterizam a execução do contrato como intenso arbítrio sem possibilidade de defesa imediata do trabalho (a dispensa sem justificação, a inexistência de direito de defesa perante a punição, as possibilidades de transferências já previstas em lei) e as demais condições de sonegação de direitos da precariedade brasileira. Por fim, quando da extinção contratual, muitos ainda temem reclamar na justiça, receosos do poder do ex-empregador em posterior perseguição (lista suja e informações desabonadoras).
A relação de trabalho assalariado perpassa, nestes termos, pelas ideias de propriedade, poder e sujeição. A propriedade confere poderes e obriga àqueles que são proprietários apenas de si a se sujeitaram, como condição de vida, ao trabalho para o outro. Em essência, a leitura jurídica do fenômeno social do assalariamento indica que o trabalhador vive sob “sujeição” porque atua conforme o interesse alheio, por falta de propriedade. Assim, a dependência equivale a “sujeição”, destacando o traço do poder nesta relação, enquanto a econômica elucida que o fundamento deste poder é a propriedade. Enfim, serve para que não se esqueça que o Direito do Trabalho é, essencialmente, o Direito Capitalista do Trabalho, que confere uma dita civilidade à expropriação do trabalho dos não-proprietários.