Resumo: A Reforma do Poder Judiciário instituída pela EC n. 45/2004 com o escopo de acelerar os processos judiciais, prestando uma justiça mais efetiva, instituiu várias inovações no Direito Processual, onde se destacam as súmulas vinculantes e a repercussão geral das questões constitucionais debatidas nos autos como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. Ambos os institutos têm por finalidade diminuir o número de processos e recursos distribuídos nos tribunais superiores, sobretudo no STF. Em que pese as medidas contribuírem para o “desafogamento” do Poder Judiciário brasileiro, devem ser questionados alguns pontos: os novos institutos, de um ponto de vista, afrontam os princípios da separação dos poderes, do livre convencimento do juiz, do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa, do acesso à justiça, entre outros. Além disso, os novos remédios constitucionais podem ter um efeito colateral perverso, qual o seja, o “engessamento” do Poder Judiciário. No presente trabalho, estudar-se-á os dois institutos, analisando os efeitos positivos e negativos de sua aplicação no direito brasileiro.
Palavras-chave: Súmula vinculante; repercussão geral; recurso extraordinário; livre convencimento; engessamento.
1.Introdução
O Supremo Tribunal Federal, como órgão de cúpula do sistema judiciário brasileiro, tem sido bastante acionado pelos jurisdicionados, seja em grau recursal ou nas vias originárias (ações constitucionais), causando um grande acúmulo de processos em pauta para julgamento.
Diante da crescente demanda, foram criadas normas que vieram restringir o acesso ao Pretório Excelso, dentre as quais se destaca a repercussão geral das questões constitucionais debatidas no processo como requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário e a criação das súmulas vinculantes.
Malgrado seja louvável a iniciativa da criação desses institutos como forma de “desafogamento” do Poder Judiciário e, assim, garantir a celeridade e razoável duração do processo, o tema deve ser debatido com muita cautela, vez que as novéis restrições vão de encontro aos princípios tradicionais de contraditório, ampla defesa e livre convencimento do juiz.
Além disso, há o risco de engessamento do Poder Judiciário. Como é cediço, o Direito vive em constante mutação, com vistas à sua adequação às necessidades sociais. Uma das fontes do Direito é precisamente a jurisprudência, que tem o importante papel de interpretar regras formais, aplicando-as ao caso concreto. Com a edição de uma súmula vinculante, os juízes estão obrigados a aplicá-la. Vale dizer: a questão não será debatida no âmbito de qualquer processo, não voltando à apreciação dos tribunais superiores, minguando as possibilidades de mudança de posicionamento.
Por isso, o tema ora escolhido parece ter grande relevância, merecendo estudo aprofundado sobre as diversas nuances que o envolvem. Objetiva-se com o presente trabalho estudar posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a aplicabilidade prática das súmulas vinculantes e do requisito de repercussão geral, a fim de contribuir para o desenvolvimento da ciência jurídica.
A priori, serão estudados os princípios constitucionais do processo; a seguir, tratar-se-á especificamente do tema, demonstrando pontos positivos e negativos dos institutos ora em enfoque.
2. Princípios Constitucionais do Processo
Os princípios são a base de qualquer ciência em todos os ramos do conhecimento. Segundo José Cretella Júnior, citado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro[1], “Princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subseqüentes. Princípios, neste sentido, são os alicerces da ciência”. Dessa forma, é possível dizer que os princípios estão acima do ordenamento positivo, não podendo ser revogados pela lei. Quando se trata de princípios constitucionais, mormente aqueles insculpidos no artigo 5º da Carta Magna, nem mesmo a emenda à Constituição pode contrariá-los, a teor do artigo 60, § 4º, inciso IV da Lei Maior, in verbis:
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV – os direitos e garantias individuais”.
Trataremos, aqui, de alguns princípios constitucionais do processo atinentes ao tema, quais sejam: ampla defesa, contraditório, livre convencimento do juiz, celeridade e razoável duração do processo.
2.1 .Princípio da Ampla Defesa
O princípio da ampla defesa tem previsão no artigo 5º, inciso LV da Carta Magna. Garante a todos os litigantes, em processo judicial ou administrativo, uma defesa plena, com os meios e recursos a ela inerentes.
Por ampla defesa, leciona Alexandre de Moraes[2], “entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade”.
Ou seja, o princípio da ampla defesa deve possibilitar ao litigante todos os meios disponíveis à sua defesa, especialmente o manejo de recursos para esclarecimento das questões debatidas nos autos.
2.2.Princípio do Contraditório
O princípio do contraditório tem a mesma previsão constitucional do princípio da ampla defesa. Por esse princípio, aos litigantes deve ser garantida igualdade de condições no processo para debater as questões e apresentar provas. A cada elemento (prova ou interpretação jurídica) apresentado por uma parte, deve ser dada oportunidade para a outra parte se manifestar a respeito.
Segundo Alexandre de Moraes[3], “o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor”.
Importante transcrever a lição de Andrioli, citado por Humberto Theodoro Júnior[4]: “Embora os princípios processuais possam admitir exceções, o do contraditório é absoluto, e deve ser sempre observado, sob pena de nulidade do processo”.
Assim, deve ser dada às partes a oportunidade de se manifestar a respeito de provas e teses apresentadas pela parte adversa, sob pena de invalidação do processo.
2.3 .Princípio do livre convencimento do juiz
Pelo princípio do livre convencimento, o magistrado prolata suas decisões conforme suas convicções, desde que motivadamente. Importa dizer que o juiz, no exercício de suas funções, deve decidir da maneira que lhe pareça em conformidade com o Direito.
Conforme preleciona Isabella Rodrigues Rocha de Carvalho[5], o princípio do livre convencimento
“confere ao magistrado liberdade para embasar suas decisões, dentro dos limites impostos pela lei e pela Constituição, levando em conta sua livre convicção pessoal motivada, cabendo ao mesmo, ainda, decidir a lide à luz das provas e argumentos colacionados durante a instrução processual”.
Ou seja, na sua atuação, o juiz não pode estar vinculado a qualquer posicionamento jurisprudencial ao qual não concorde, sob pena de ofensa ao princípio ora em apreço.
Vale dizer: o juiz deve ter liberdade para decidir conforme seu convencimento embasado nas provas apresentadas e na interpretação das normas jurídicas, sem qualquer vinculação.
Nesse sentido, merece trazer à baila preclara lição de Luis Fernando Sgarbossa e Geziela Jensen[6]:
“é premissa básica às teses a seguir expostas a ampla possibilidade de o juiz decidir a lide de conformidade com seu convencimento, valorando, para tanto, não só as provas com liberdade, mas também interpretando a totalidade do ordenamento jurídico com ampla liberdade e meticulosamente”.
O princípio não tem previsão constitucional, mas deve ser entendido como desdobramento do princípio do devido processo legal, sendo, portanto, regra a ser observada na alçada constitucional, não podendo ser abolida mediante emenda à Constituição (inteligência do artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF).
2.4 .Princípio da Celeridade Processual e da Razoável Duração do Processo
Trata-se de inovação constitucional inserida na Carta Política pela EC n. 45/2004, que incluiu o inciso LXXVIII no artigo 5º da CF, in verbis: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
José Afonso da Silva, citado por Gustavo Rabay Guerra[7], afirma que o princípio é despiciendo, já que a garantia de acesso à justiça por si só já garante uma prestação jurisdicional em tempo hábil. Ainda segundo o autor, a crônica morosidade do aparelho judiciário frustra tal garantia. Dessa forma, explica ele, a simples enunciação formal de um direito não implica em garantia de eficácia, já que não se resolve um problema com uma simples declaração, como num passe de mágica.
Alexandre de Moraes[8], por sua vez, também entende que o princípio não inova o sistema constitucional processual, já que a duração razoável do processo e a celeridade processual já estavam contempladas, a seu ver, nos princípios do devido processo legal e da eficiência (aplicável à Administração Pública).
Em que pese o novel inciso fazer apenas uma declaração formal, sem, contudo, indicar meios para sua eficácia, o princípio deve ser bem recebido, haja vista que traz a lume uma situação bastante crítica que macula o sistema judiciário brasileiro, constituindo, no dizer de Guerra[9], uma redundância benéfica.
De fato, com a declaração desse novo princípio surgiram diversos outros institutos jurídicos que objetivam dar celeridade e razoável duração do processo, se destacando as súmulas vinculantes e a exigência de demonstração da repercussão geral das questões debatidas nos autos como requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário, dos quais se tratará mais detidamente adiante.
3. Repercussão Geral das questões debatidas nos autos
Uma das inovações trazidas com a Emenda Constitucional n. 45/2004, a Reforma do Judiciário, foi a introdução do § 3º ao artigo 102 da CF, in verbis:
“No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.
O instituto tem por finalidade filtrar os recursos impetrados perante o Supremo Tribunal Federal.
Deste modo, conforme afirma Lúcio Flávio Siqueira de Paiva[10], “recursos que a despeito de discutirem questões constitucionais se mostrarem irrelevantes, não serão conhecidos por não terem passado por esse novo filtro da repercussão geral”. O autor explica que questões irrelevantes seriam aquelas que se prestem apenas a interesses egoísticos da parte recorrente.
Muito se tem discutido a respeito do que seria repercussão geral. O artigo 543-A, § 1º, do Código de Processo Civil define repercussão geral como a existência de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
Conforme ensina Alexandre de Moraes[11],
“a ratio constitucional do § 3º, do art. 102, é permitir ao Supremo Tribunal Federal dedicar-se, em sede de recurso extraordinário, somente às matérias de interesse geral, que transcendam o mero interesse individual das partes, e cuja decisão, por ser de interesse da sociedade, sirva de direcionamento a todos os órgãos judiciais e administrativos”.
Segundo o STF[12], o objetivo dessa ferramenta é possibilitar que o Tribunal selecione os recursos que irá analisar, com base em sua relevância, diminuindo consideravelmente o número de demandas a serem julgadas.
O instituto possibilita ao Supremo não conhecer do Recurso Extraordinário quando dois terços (o que significa oito ministros) dos seus membros entenderem pela inexistência de repercussão geral. Isto é, previamente à análise do mérito do recurso, a Corte pode negar seguimento ao pedido caso não se verifique que a questão tenha relevância do ponto de vista econômico, social, político ou jurídico.
Vale dizer: as questões constitucionais debatidas no processo devem transcender os interesses subjetivos da causa, devendo haver interesse geral para que o recurso seja julgado. Segundo Humberto Theodoro Júnior[13], é preciso que as questões repercutam fora do processo.
Assim, questões que digam respeito somente às partes litigantes ou a um pequeno número de interessados não podem ser objeto de Recurso Extraordinário, por mais que a decisão atacada esteja afrontando a Constituição Federal.
Vinícius Martins Pereira[14] assevera que:
“No momento em que o julgamento daquele recurso deixar de afetar apenas as partes do processo, mas também uma gama de pessoas fora dele, despertando interesse público, tem aquela causa repercussão geral”.
A inovação constitucional dividiu a doutrina, estando longe de pacificação. Enquanto alguns doutrinadores vêem no novo instituto a solução para os problemas encontrados no Judiciário brasileiro, mormente a longa duração dos processos, outros o encaram como mais um complicador e como uma medida retrógrada.
Entre os argumentos favoráveis ao instituto, encontramos: a celeridade processual; desafogamento do STF, demonstrando que ele é órgão de cúpula e não terceira ou quarta instância recursais; evita recursos com efeito procrastinatório.
Segundo André Luiz Galindo de Carvalho[15]:
“Juristas altamente gabaritados defendem a compreensão de que o instrumento da repercussão geral é de suma importância para o desafogamento do Judiciário brasileiro, tendo em vista o enorme numerário processual que encontrava-se em poder do STF anteriormente à promulgação da EC 45/04, apoiando, inclusive, a extensão de tal requisito de admissibilidade para outros órgãos do Poder Judiciário, objetivando com tal alcance o aniquilamento dos recursos que, transparentemente, já em seus nascedouros encontram-se eivados por questões notoriamente irrelevantes”.
Vinicius Martins Pereira[16] aduz que
“deve-se aplaudir a postura do legislador ao introduzir a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, atuando de acordo com os anseios da sociedade de descongestionar o STF e acelerar a prestação jurisdicional e, não menos importante, atendendo as vontades dos membros do nosso Tribunal de cúpula”.
Segundo Bruno de Matos e Silva[17], a função essencial do STF é a guarda da Constituição e, dessa forma, ele deve ser alçado a atender ao interesse público diretamente relacionado com a necessidade de interpretação uniforme do direito constitucional e sua concretização, não devendo atender simplesmente ao interesse individual da parte em litígio. O autor cita, ainda, manifestação do Deputado Odair Cunha, relator do projeto de lei n. 6648/2006, que deu origem à Lei n. 11.418/2006, abaixo transcrita:
“Faremos, pois, que o STF deixe de ser um Tribunal de terceira ou quarta instância para apreciação de questões já decididas por outros tribunais. Alteraremos o seu perfil, alçando-o à condição de corte constitucional, cuja jurisdição será desvinculada do caso concreto, ainda que continue a ser um órgão do Poder Judiciário.”
Em que pese, existem vários pontos desfavoráveis quanto ao instituto.
Inicialmente, cumprir ressaltar que o instituto afronta o princípio da igualdade, na medida em que o interesse singular de uma minoria não será julgado, enquanto o interesse geral será objeto de deliberação. Vale dizer, alguns interesses, mesmo que de grande importância no plano individual, não serão objeto de julgamento perante a Suprema Corte, enquanto questões de caráter geral, que aduzem a direitos semelhantes aos de caráter individual, serão julgados, tratando desigualmente pessoas que, em tese, estariam em situações quase iguais, não fosse o caráter geral de umas e o individual de outras.
Nesse ponto, Milso Nunes Veloso de Andrade[18] aponta uma situação que pode ocorrer decorrente da aplicação do instituto: em determinado momento, uma parte interpõe Recurso Extraordinário, não logrando êxito por ter repercussão geral não reconhecida pelo STF; porém, se aparecerem, algum tempo depois, vários casos parecidos, culminando pelo reconhecimento da repercussão geral, restaria gravemente maculado o princípio da igualdade, já que, inobstante as causas serem idênticas, umas pessoas tiveram negado seu acesso à justiça, enquanto outras, em situação idêntica, foram atendidas.
Mais adiante, o articulista ressalta que, uma vez que o pressuposto da repercussão geral só é exigido em sede de Recurso Extraordinário, não sendo exigido no Recurso Ordinário, tampouco nas ações de competência originária, novamente está sendo ofendido o princípio da igualdade, visto que, segundo ele, “a exigência da repercussão geral para as causas apreciadas em grau de recurso extraordinário torna as partes recorrentes “menos iguais” em relação àquelas, autoras ou apelantes, nas vias processuais de atuação concentrada do STF ou tendo este como única instância recursal”.
Sob essa ótica, Andrade questiona a constitucionalidade da EC n. 45/04, vez que afronta o princípio da igualdade, cláusula pétrea (CF, art. 60, §4º, IV). Além disso, viola o direito de acesso ao Judiciário (CF, art. 5º, XXXV).
Além disso, a exigência de repercussão geral destoa do princípio da ampla defesa, vez que restringe a possibilidade de recursos na defesa de direitos constitucionais. Com efeito, uma pessoa que tenha, em tese, direito constitucional violado não poderá defender seus interesses via recurso extraordinário, por lhe faltar repercussão geral.
Esse é o posicionamento de Pedro Borba Vaz Guimarães[19], cujo posicionamento é no sentido de que os princípios devem ser considerados como cláusula pétrea, não podendo ser violados mediante emenda constitucional. Segundo o autor, o requisito da repercussão geral como pressuposto de admissibilidade do Recurso Extraordinário fere, além do princípio da ampla defesa, os princípios do duplo grau de jurisdição e da recorribilidade. Diante disso, conclui que a emenda n. 45/2004 deve ser considerada inconstitucional. E assevera:
“Assim sendo, a repercussão geral, criou um estorvo ao cidadão, pois, terminou por impedir que o acesso ao supremo órgão judicial brasileiro seja livremente utilizado por todos aqueles interessados, que tenham preenchidos os requisitos para a interposição do recurso extraordinário, como por exemplo, uma decisão em afronta a constituição federal. Provocando assim, uma tremenda injustiça”.
Afirma, ainda, que:
“Neste toar, verifica-se que o instituto da repercussão geral criou óbice ao perfeito e completo acesso ao judiciário, ao mesmo tempo que terminou por aniquilar direitos e garantias individuais, ao jogar parcialmente no lixo os princípios da ampla defesa, recorribilidade e duplo grau de jurisdição”.
A propósito, veja-se lição de Suélen Silva Rodrigues[20]:
“O que se verifica é uma dupla afronta aos direitos fundamentais. Primeiro, diretamente, se restringe o acesso dos litigantes à justiça, direito este assegurado na Constituição Federal, na medida em que condiciona a admissibilidade do recurso extraordinário à verificação de um interesse geral da sociedade. Ou seja, cria-se uma distinção entre questões constitucionais mais ou menos importantes, de modo que os recursos que versarem sobre questões que não transcendam os interesses das partes serão desde logo inadmitidos, o que por si só já é um absurdo. Em segundo momento, a afronta a direito fundamental se dá obliquamente, já que, uma vez privados os litigantes do acesso à justiça por sua questão de direito não ser considerada de interesse geral, o mérito, ou seja, o seu direito subjetivo/particular, mesmo que preencha os demais requisitos de admissibilidade, restará prejudicado. Retira-se, portanto, o manto de proteção aos direitos fundamentais de todos os cidadãos”.
Ademais, a aplicação do instituto na prática pode “engessar” o Poder Judiciário brasileiro. À luz do § 5º do artigo 543-A do Código de Processo Civil, a decisão pela inexistência de repercussão geral terá efeito vinculante vertical, vez que valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica. Ou seja, não haverá possibilidade de a matéria voltar à apreciação do Supremo Tribunal Federal, já que será preliminarmente indeferida. Em que pese o dispositivo legal (§ 5º do art. 543-A do CPC) ter a previsão de “salvo revisão da tese”, não haverá possibilidade da mesma ser revista, tendo em vista que o recurso será liminarmente indeferido. Em outras palavras, pode-se dizer que o recurso não chegará à apreciação do STF, correndo o risco da matéria cair no esquecimento, por falta de oportunidade de debate da questão. Vale dizer, a tese será matéria não analisável pela Suprema Corte. Sobre esse aspecto, abordaremos mais adiante.
Outro argumento desfavorável é o de que, ao invés de diminuir os serviços do STF, a inovação pode aumentar a carga de trabalho, já que prevê a intervenção do amicus curiae (CPC, artigo 543-A, § 6º). A participação de terceiros no processo, embora possa enriquecer a decisão, poderá atrasar ainda mais o processo, indo de encontro à finalidade de Reforma do Judiciário.
Além disso, como a repercussão geral deve ser reconhecida por dois terços dos membros do STF, ou seja, onze ministros, o plenário deve deliberar, previamente à decisão de mérito, sobre a existência ou não de repercussão geral, congestionando ainda mais os trabalhos no Pretório Excelso. Veja-se o que diz a respeito Vinicius Martins Pereira[21]:
“Seria preciso então reunir todos os Ministros do STF (ou ao menos oito, se se acreditar na constante unanimidade) para enfrentar a repercussão geral do recurso e, após isso, remeter o processo ao julgamento na Turma, o que tornará ainda mais complicado e demorado o tempo de tramitação do processo perante o STF. Há coerência? Há senso prático? Estar-se-ia descongestionando o STF e acelerando a prestação jurisdicional?”
Sobre o assunto, transcrevemos preclara lição de Milso Nunes Veloso de Andrade[22]:
“Quanto ao STF, talvez não tenha o volume de trabalho reduzido, porque a admissão do RE foi mantida sob sua responsabilidade, e não foi eliminada a possibilidade de interposição de agravo de instrumento contra decisão denegatória do seguimento do recurso extraordinário, por parte do Presidente do Tribunal recorrido. Na verdade, além do juízo de admissibilidade pelo Ministro-Relator, na forma anterior, ou do recurso de agravo, o trabalho fica acrescido da análise da demonstração da repercussão geral, feita pelo recorrente, formal e materialmente”.
Importante observar, também, que o artigo 543-B, § 1º, do CPC evidencia um contrasenso. O dispositivo legal prevê que, havendo multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, caberá ao tribunal de origem selecionar um ou mais recursos e encaminhá-los ao STF para pronunciamento a respeito da repercussão geral. Ora, se há multiplicidade de recursos, por óbvio há repercussão geral, pois a decisão de mérito afetará vários processos.
Ademais, cabe observar a descrição do § 1º do artigo 543-A do Estatuto Adjetivo. Com base nele, repercussão geral será considerada a existência de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico. Ora, o Recurso Extraordinário se presta para atacar decisão que, em tese, contrariar dispositivo constitucional, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, julgar válida lei ou ato de governo local contestada em face da Constituição, julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Assim sendo, todos os recursos extraordinários teriam repercussão geral, já que todas as hipóteses de cabimento possuem grande relevância jurídica, pelo seu teor constitucional.
Leonardo de Faria Bernardo, citado por André Luiz Galindo de Carvalho[23], assevera que falar em “’relevância da questão constitucional’ é nitidamente pleonasmo, tendo em vista que qualquer decisão que viole dispositivo ou princípio constitucional é, per se, relevante”. Em suma, para o jurista, não é possível se falar em uma decisão judicial que viole norma constitucional sem que a mesma seja relevante
Por seu turno, Milso Nunes Veloso de Andrade[24] aponta uma contradição ao se afirmar que uma questão constitucional devidamente pré-questionada não seja, por si só, de repercussão geral.
Aduz o articulista, com aplausos:
Sendo assim, a decisão que não reconhecer, à questão, o atendimento ao pressuposto, porém, admitir que a matéria, o objeto de que trata o recurso, é constitucional, estará consagrando o entendimento de que existem normas constitucionais mais gerais que outras (no sentido de sua repercussão para o povo brasileiro). Melhor dizendo, que existiriam normas constitucionais tão específicas que não são de alcance geral. O reconhecimento disto, ainda que possível em tese, em decorrência de exacerbações indesejadas insculpidas na Carta Magna pelo Legislador Constituinte, corresponderia a uma declaração de inconstitucionalidade, vis-a-vis o conceito de que a Constituição – diploma que constitui a República – é, representa ou contém elementos de Lei Fundamental (portanto, é composta por normas que são, por natureza, genéricas, abrangentes, universais – no contexto da nação brasileira). Em conseqüência, uma tal decisão denegatória da generalidade corresponderia a uma declaração de inconstitucionalidade de uma “questão constitucional”?!
Em outras palavras, é afirmar que a Constituição da República Federativa do Brasil não tem relevância jurídica suficiente para, em possível desrespeito aos seus preceitos, ter apreciado recurso que invoca os seus ditames.