Um tema não muito frequente na sociedade é o questionamento sobre quem está atrás das grades, dentro dos estabelecimentos prisionais do nosso país. É uma discussão ampla e, normalmente, não gera o interesse das pessoas que estão em liberdade, pelo descaso e eventuais preconceitos da própria sociedade com o criminoso.
Newton Fernandes fez uma abordagem interessante, buscando destituir a ideia de monstro que a sociedade atribui aos condenados, utilizando-se das palavras de Dráuzio Varella, que em seu livro “Estação Carandirú”, narra na época algumas experiências por ele vivenciadas no interior do estabelecimento prisional do Carandirú.
Varella apud Fernandes (2000, p. 436) coloca que “Os detentos recolhidos no Carandirú formam aquilo que na gíria das prisões, se costuma chamar de malandragem, isto é, uma “elite” de criminosos que a sociedade [...] encarcera na categoria de monstros”.
Em uma entrevista ao jornal “O Estado de São Paulo”, relatada por Fernandes (2000, p. 436-440), Dráuzio Varella expõe:
Existe uma solidariedade muito forte nas prisões, a qual não vejo fora do presídio nada igual. O cara fraquinho, doente, tem apoio dos outros, eles o pegam no colo, o levam para o pátio para que tome sol. Os paraplégicos na cadeia são muito paparicados. O elevador está quebrado? Eles o carregam nos braços, descem com eles as escadas, depois os trazem de volta. Você nunca vai ver alguém bater num paraplégico e nem fazer mal a ele. [...]
Na cadeia ninguém conhece moradia de verdade. Dentro do presídio você nunca sabe de que lado está a verdade. São presos que simulam doenças, são atores excelentes, fingem maravilhosamente bem. Eu tento ser racional. É uma coisa difícil, porque essa atitude do sujeito que desconfia é incompatível com a figura do médico. O médico policial é personagem inviável. [...]
A palavra na cadeia você não pode trair, a palavra no presídio tem um peso muito forte. Fora de lá, isso se perdeu há muito tempo e poucos cumprem com sua palavra, ainda, às vezes, mesmo que exista um contrato assinado. Já na cadeia o que faz um homem ser respeitado é a palavra e não a força física. A força física na cadeia não é individual, é a do grupo, e para você chefiá-lo tem que ter palavra. Isso é muito bonito. É a palavra que vale. [...]
Ao ser questionado se o seu livro é um livro de “defesa aos criminosos”, Dráuzio responde:
Os presos não são animais, são homens como nós, bons e maus homens,não estou julgando os valores, muitos merecem estar lá e muitos até, mereciam mais do que isso.Sou contra a impunidade. Ela é a principal causa da violência social em que vivemos, mas nem por isso, igualo aqueles homens. Apesar de tudo, alguns deles são até mesmo homens que você aprende a respeitar e gostar.
Com os relatos expostos, pode-se verificar uma realidade do interior dos estabelecimentos prisionais desconhecida pela maioria das pessoas. Existe uma necessidade da sociedade se mostrar diferente daqueles que estão lá dentro, e talvez por isso, a falta de interesse neste tipo de perspectiva.
Como consequência dessa diferenciação social atribuída aos reclusos, e até mesmo aos egressos, que são sempre titulados como “ex-presidiários”, desencaixados socialmente, é que os índices de reincidência são altíssimos no Brasil.
Nas palavras de Dráuzio Varella, um antigo mito, tabu, ou seja lá o que for, também cai por terra. É o que está na mente de muitas pessoas, naturalmente desapegadas ao tema, de que “todos os criminosos são verdadeiras feras enjauladas”, e os mais radicais ainda afirmando, que justamente por isso, mereceriam uma pena de morte (FERNANDES, 2000, p. 440).
Todo criminoso é assim por natureza?
Esta é uma ideia que possui dois desdobramentos. Há uma ideia criminológica adotada, por exemplo, pelo doutrinador CesareLombroso, que busca identificar o criminoso como alguém que está predestinado ao crime, com uma explicação genética, alguém que nasceu para violar a lei. Em outro norte desse pensamento, é a ideia de que, se o criminoso é alguém que nasceu para delinquir, não existe recuperação para ele, não é mesmo? Estar-se-ia, então, diante de uma doença incurável, devendo haver apenas duas soluções para a criminalidade, a neutralização ou eliminação do indivíduo, eis que surge o bordão “bandido bom é bandido morto”, como bem coloca Alberto Marques dos Santos (SANTOS, 2007, p. 36).
No entanto, levando em conta essas teorias dos fatores biológicos, sendo o crime um fardo, não há como responsabilizar eticamente ou legalmente o criminoso, pois não se trata de uma escolha, mas de um destino resguardado à sua vida, inevitável, imprescindível. Também não se sustenta essa ideia após uma visita aos estabelecimentos prisionais, onde pode-seencontrar pessoas de diversas naturezas, com incríveis diferenças de histórico de vida, e que cometeram crimes pelas mais diversas razões, como por impulso, desespero, ignorância, cobiça, etc. (SANTOS, 2007, p. 37).
Aplica-se, com efeito, o que determina a lei?
Existe essa ideia generalizada, de que as penas cominadas no Código Penal brasileiro ou em legislações esparsas são muito brandas, benevolentes. Trata-se de uma meia verdade. Ao mesmo tempo em que há delitos que causam maximizado repúdio social, em decorrência da conduta que se pratica, e são punidos por penas que, para a sociedade, parecem muito “leves”, há muitos outros, em que abstratamente no tipo, vislumbram-se penas bem severas (SANTOS, 2007, p. 41).
Para melhorar visualizar o que foi dito acima, basta imaginar, como exemplo, que a pena mínima por emitir um cheque sem fundo é de um ano de prisão, que o furto de um botijão de gás, se em concurso de agentes, tem uma pena mínima de dois anos de reclusão, que a venda de CD pirata pode trazer até quatro anos de cadeia, etc. (SANTOS, 2007, p. 41).
Sendo assim, basta examinar as penas que são impostas à algumas práticas corriqueiras, como tirar fotocópia de um livro, deixar um filho menor de idade dirigir, piratear CD, ser credor de alguém e interferir no seu trabalho, descanso ou lazer, dentre muitas outras situações que muitas pessoas praticam, e estar-se-ia diante de uma legislação penal rigorosa. No entanto, essa rigorosidade aos “pequenos” delitos, vem sendo objeto de alternativas pelo poder público, que traz cada vez mais benefícios em prol destes condenados, tirando quase que completamente a eficácia da pena cominada em abstrato (SANTOS, 2007, p. 41-42).
Enfim, ocorre que a lei não é benevolente, mas inconsistente e ineficaz. A ameaça por trás de alguns tipos penais, como por exemplo, dois anos de reclusão, acaba se transformando em uma pena alternativa, e “dois anos” de impunidade mascarada. Mas isto não caracteriza brandura, e sim incoerência do sistema penal brasileiro, que consequentemente acaba estimulando a criminalização e desorientando o cidadão (SANTOS, 2007, p. 43).
Brasil, conhecido como o país da impunidade?
Esta é outra meia verdade que o povo brasileiro gosta de falar, escondendo a verdade plena, muito pior. Para a maioria das pessoas que se enquadram no padrão dos reclusos dos nossos estabelecimentos prisionais (pobres, analfabetos, desempregados), quase não existe impunidade. O que ocorre no Brasil é uma impunidade seletiva, das classes privilegiadas, aos demais, resta apenas o sonho da impunidade (SANTOS, 2007, p. 44).
Se realmente fosse um problema de impunidade, as cadeias não estariam superlotadas e agravando o problema da criminalidade. Como bem coloca Alberto Marques dos Santos, de forma sarcástica: “É mais fácil achar um brasileiro que foi à França do que um brasileiro que não sonegue impostos. E é mais fácil achar um brasileiro que foi à Lua do que um sonegador na cadeia.” (SANTOS, 2007, p. 44-45).
Relacionando os Estados Unidos da América com o Brasil, por exemplo, é gritante a diferença de segregados por crimes de corrupção ou sonegação fiscal, pois aqui, os índices são baixíssimos, mostrando claramente que o sistema garante a impunidade dos criminosos organizados, profissionais e de bom nível econômico. (SANTOS, 2007, p. 44-45).
O julgamento indevido dos acusados
Este é um fenômeno que não ocorre somente no Brasil, nesta ótica, a imprensa se converteu no grande juiz, que julga as pessoas com base nas versões, e não nos fatos, e que possui influência direta no andamento processual de determinado delito, tanto pela pressão que exerce no magistrado, bem como, em casos de tribunal do júri, nos jurados. Afinal de contas, como pode a imprensa e a sociedade condenar, e um juiz absolver? (SANTOS, 2007, p. 46).
O que é publicado é que acaba se tornando verdade para a sociedade, mas acontece que, o ideal de justiça, é um objetivo muito mais lento, a imprensa se preocupa em ser célere, chegar a uma conclusão rápida e publicar antes da concorrência, enquanto um processo judicial ou uma ação policial, busca a atitude correta, justa, pelo menos em boa parte das vezes (SANTOS, 2007, p. 46).
Portanto, fica impossível a imprensa e a justiça andarem de mãos dadas ao mesmo tempo, pois a segunda, é uma conclusão após uma detalhada análise dos fatos, enquanto a primeira, além de possuir fins desvirtuados, é superficial e imprecisa. Mas, claro, essa conclusão não é a mesma da maioria dos brasileiros (SANTOS, 2007, p. 46).
Uma perspectiva peculiar
Luiz Flávio Gomes, em um artigo irônico publicado, expõe que, conforme o Ministro da Justiça, o índice de reincidência dos presídios brasileiros é de 70%, e que devido as condições atuais de tais estabelecimentos, o índice pode ser considerado baixo (GOMES, 2008, p.1).
A população carcerária é crescente, de 1990 à 2008, este crescimento chegou a atingir 500%, possuindo aproximadamente 500.000 (quinhentos mil) neste último ano, sendo o quarto país do mundo com o maior número de presos (GOMES, 2008, p.1).
Até pode-se considerar que um quarto destes detentos são de baixa periculosidade, e por viabilidade, poderiam ser punidos com penas alternativas, acontece que, se assim fosse, estariam impedidos de participar do aprendizado criminal (GOMES, 2008, p.1).
Ainda referente ao mesmo autor, criticando fortemente o tratamento prisional, presume que a prisão, gerando reincidência, não é um fracasso, mas um sucesso – curioso não? – pois consegue produzir uma espécie de delinquência, é como uma escola do crime. Por exemplo, os mais famosos grupos organizados, como o PCC, Comando Vermelho, etc., são frutos dos estabelecimentos prisionais, lá as experiências foram trocadas, os contatos foram feitos, e a “escola” foi prosperada (GOMES, 2008, p.1).
Continua sua justificativa, dizendo que o crime violento precisa ter visibilidade, e em decorrência disto, é que existe a necessidade de se expor nos meios de comunicação tais brutalidades. As pessoas precisam perceber que este tipo de conduta existe, é extremamente necessário que certa ira popular se volte para este tipo de criminalidade, pois somente assim, fica fora da percepção a delinquência mais suja, a fraudulenta, como a corrupção, que é típica das camadas sociais privilegiadas (GOMES, 2008, p.1).
Os delinquentes reclusos, ou em iminência de reclusão são os temíveis, próximos das pessoas, que podem estar em qualquer lugar. Eis a função do noticiário policial, que com todo drama inerente, se preocupa em mostrar um delinquente marginalizado. Acontece que assim, as investigações da polícia federal voltadas às pessoas poderosas, como juízes, promotores, parlamentares, empresários, etc., ficam fora da perspectiva popular, o que de extremo interesse de tais classes (GOMES, 2008, p.1).
O autor, de forma sarcástica e surpreendente, expõe uma perspectiva muito peculiar. Realmente é de se surpreender com os índices de reincidência, e principalmente, com o fato de que continuam altos desta forma há tantos anos. Outro ponto é que a população carcerária continua em ascensão, mesmo levando em conta o desenvolvimento populacional do país, é notável que, algo aqui, não está dando certo.
Agora, hipoteticamente, tornando-se uma sociedade de poucos crimes violentos, as pessoas se sentiriam condicionadas a apresentar seu repúdio por aqueles crimes que, antes não notados, passaram a ser uma das únicas coisas “fora do lugar” em uma convivência harmônica, tais como, aqueles cometidos pelas classes privilegiadas.
Há autores, como Alessandro Nepomoceno Pinto, por exemplo, que falam em “funções não declaradas” do sistema carcerário, mantendo a mesma linha de pensamento, ao verificar que os grandes delitos, políticos, ecológicos, econômicos, por exemplo, onde o sujeito passivo é a coletividade, sendo o dano exacerbado, não são apenados com a mesma eficácia, isto porque são cometidos pela classe privilegiada da sociedade (PINTO, 2002, p. 187).
Então, parece efetivamente que o foco do sistema penal está para os vulneráveis da sociedade, enquanto que a criminalidade “invisível” permanece sendo punida ocasionalmente, não sendo a toa que a população carcerária dos estabelecimentos prisionais, como já visto anteriormente, é composta de pessoas pobres e com baixo nível de instrução (PINTO, 2002, p. 187).
O direito penal, ao invés de combater a violência, acaba por intensifica-la, tendo êxito naquilo que não foi projetado, na sua função não declarada, produzindo criminosos específicos, convenientes ao sistema, e consequentemente isentando algumas ilegalidades específicas (PINTO, 2002, p. 190).
Concluindo, é de se pensar, será mesmo que o sistema, ao não alcançar uma efetiva melhora nos índices criminais do país, assim o faz por mera incompetência prática, ou realmente, porque diante dos benefícios que alcançam os privilegiados, é conveniente que as coisas continuem como estão?
Bibliografia:
FERNANDES, Newton. A Falência do Sistema Prisional Brasileiro. São Paulo: RG Editores, 2000.
SANTOS, Alberto Marques dos. Criminalidade: causas e soluções. 1ª ed., 2ª tiragem. Curitiba: Juruá, 2007.
GOMES, Luiz Flávio. Presídios brasileiros geram "baixa produtividade": "Só" 70% de reincidência. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1705, 2 mar. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11001>. Acesso em mai. 2013.
PINTO, Alessandro Nepomoceno Pinto. O sistema penal: suas verdades e mentiras. In: Verso e reverso do controle penal: (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Vol. 2.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002