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A Lei Maria da Penha e o princípio da igualdade

07/11/2013 às 12:13
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O artigo aborda a questão da violação ou não ao princípio constitucional da isonomia em razão da proteção dada especialmente às mulheres pela lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha.

1. INTRODUÇÃO

A lei Maria da Penha, como ficou conhecida a lei nº 11.340/2006, é um importante instrumento de proteção da vida, saúde e, de uma maneira geral, da dignidade das mulheres. A partir de sua promulgação, as mulheres passaram a contar com um precioso estatuto, o qual visa não apenas a instituição de medidas repressivas, mas também preventivas e assistenciais[1].

 Em que pesem os avanços no campo da proteção das mulheres contra a violência doméstica trazidos pelo diploma legal em comento, surgiram na doutrina questionamentos acerca da constitucionalidade do mesmo, ao argumento de que o texto normativo possuía redação discriminatória, superprotegendo as mulheres em detrimento dos homens.

A alegação de inconstitucionalidade, grosso modo, se fundamentou basicamente na ocorrência de violação do art. 5º, I da CF, o qual dispõe serem iguais em direitos e deveres os homens e a mulheres, bem como na violação do art. 226, §8º, da Carta Magna, que garante a proteção de ambos os sexos contra a violência doméstica.


2. LEI MARIA DA PENHA, IGUALDADE E PROPORCIONALIDADE

A discussão acerca do sentido da palavra “igualdade” insculpida na Constituição Federal tanto quando trata das relações entre homens e mulheres, como no que tange a outras relações jurídicas, encontra-se atualmente superada, ao passo que é cediço ter a Carta Magna adotado o princípio da isonomia material, segundo o qual se admite o tratamento desigual de pessoas desde que na medida de sua desigualdade.

A questão, portanto, não diz respeito simplesmente à possibilidade de uma lei criar regras mais duras para tratar da violência doméstica em que a vítima é do sexo feminino, mas sim, se tal norma, da maneira que foi instituída, estabeleceu critérios diferenciadores proporcionais entre homens e mulheres, ao passo que a diferenciação de tratamento só se legitima até a medida em que as diferenças deixam de existir, não podendo se  admitir que sob o pretexto de se proteger uma pessoa hipossuficiente, transfira-se a hipossuficiência para o outro polo da relação.

Conforme a análise meramente literal da lei 11.340/2006 não é difícil se entender o porquê de tanta resistência por parte da doutrina em aceitar a constitucionalidade da norma. É bem verdade que muitos dispositivos inseridos nessa lei contemplam uma mulher extremamente sensível e abalável por quaisquer das mais ínfimas condutas dirigidas contra si no âmbito das relações domésticas. Um bom exemplo disso encontra-se no art. 7º da Lei Maria da Penha, o qual enumera as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo o inciso II desse dispositivo, considera-se violência psicológica “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.

Como se vê, o detalhamento das condutas quem possam gerar violência doméstica contra a mulher chega a ser exagerado, ao passo que, se levada em consideração a interpretação literal desse dispositivo, qualquer discussão entre cônjuges ou companheiros, o que eventualmente é normal em qualquer relacionamento, poderia já ser configurada como uma forma de violência ensejadora da incidência dos procedimentos previstos no estatuto jurídico em cotejo.

Daí a necessidade de se fazer uma interpretação da Lei Maria da Penha pautada no princípio da proporcionalidade, de modo a impedir os excessos que a aplicação fria da lei poderia causar.

Aliada a essa questão da necessidade de aplicação da lei de maneira a evitar excessos, tem-se que ter em mente também as razões que levaram a se promulgar uma norma tão específica de proteção das mulheres. Nesse sentido, a tese da inconstitucionalidade bem que poderia vingar se a lei 11.340/2006 tivesse como hipótese de incidência todo e qualquer caso de violência contra a mulher, e não apenas a doméstica. Assim, seria flagrantemente inconstitucional se a Lei Maria da Penha pudesse ser aplicada no caso de uma mulher ser agredida na rua por um estranho.

A Lei Maria da Penha tem como escopo, pois, dar proteção às mulheres especificamente em relação aos membros de sua comunidade familiar, a qual compreende relações formadas por vínculos de parentesco natural, civil e afetivo. Isto é, assegura maior proteção frente àqueles indivíduos que deveriam proporcionar à vítima (mulher) um mínimo de amor, respeito e dignidade, valores que devem estar presentes em qualquer entidade familiar[2].


3. CONCLUSÃO

A Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher prevê a possibilidade da adoção de ações afirmativas pelos Estados que visem a acelerar o processo de obtenção da igualdade entre os gêneros. Assim, é plenamente legítima a adoção de políticas públicas cujo objetivo seja beneficiar as mulheres sob o pretexto destas serem consideradas o “sexo frágil” dentro das relações familiares.

Destarte, é inegável que a Lei Maria da Penha seja uma lei de caráter misto, na medida em que dispõe tanto de dispositivos cujo objetivo é a instituição de uma política pública de proteção à mulher, como também insere no ordenamento jurídico pátrio normas de direito material e processual as quais são responsáveis por pôr em prática os objetivos visados na lei. No entanto, só uma ação positiva que seja suficientemente proporcional e que não produza dano desproporcional a terceiros será constitucional e poderá implantar-se com êxito na sociedade atual.

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Nesse diapasão, a Lei Maria da Penha pode se tornar um bom exemplo de ação afirmativa caso aplicada com proporcionalidade, uma vez que a tutela do gênero feminino justifica-se pela situação de vulnerabilidade e hipossuficiência em que se encontram as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar.


4. REFERÊNCIAS

BARBOSA, Andresa Wanderley de Gusmão; CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. A constitucionalidade da lei maria da penha. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/10249/a-constitucionalidade-da-lei-maria-da-penha. Acesso em: 11 ago 2013.

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 3ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011.


Notas

[1] CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 3ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 31.

[2] BARBOSA, Andresa Wanderley de Gusmão; CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. A constitucionalidade da lei maria da penha. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/10249/a-constitucionalidade-da-lei-maria-da-penha. Acesso em: 11 ago 2013.

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Sobre o autor
Filipe Pinheiro Mendes

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Defensor Público do Estado da Paraíba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Filipe Pinheiro. A Lei Maria da Penha e o princípio da igualdade . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3781, 7 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25716. Acesso em: 18 abr. 2024.

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