5. A sucessão de leis e eventual retroatividade
Conforme referido, vige atualmente a terceira formatação legal do crime de embriaguez ao volante. Comparando-as, observa-se que os principais elementos modificados na sucessão de leis no tempo dizem respeito ao elemento espacial do crime, à quantidade de álcool e aos mecanismos de prova.
Relativamente ao primeiro, somente a versão original do dispositivo previa que o crime se configurava “em via pública”; uma regra de limitação espacial, abandonada a partir de 2008 com o advento da Lei nº 11.705, a partir da qual o crime pode ser praticado em qualquer lugar, ampliando o campo de incidência da norma penal incriminadora. Desse modo, e por aplicação do princípio da irretroatividade da norma penal nova mais gravosa, neste particular a Lei nº 11.705/08 não poderia retroagir para alcançar fatos praticados antes da sua vigência.
No tocante à previsão de quantidade de álcool no sangue, observa-se que este elemento do tipo foi instituído com a edição da Lei nº 11.705/08. Trata-se de regra limitadora da incidência da lei penal, eis que previu quantidade mínima de álcool para tipificar, concretamente, o crime; lembre-se que na redação original do art. 306 não havia referência a essa quantidade, razão pela qual, neste particular, a Lei nº 11.705/08 mostrou-se benéfica ao agente do crime, de modo que deve ser aplicada retroativamente.
Ainda a respeito da quantidade de álcool, nota-se que a Lei nº 12.760/12 retirou do tipo penal esse elemento como essencial para a sua configuração. Com efeito, a partir dela, a centralidade do tipo gravita em torno da alteração da capacidade psicomotora e, com isso, ampliou consideravelmente o âmbito de incidência da norma penal. Por conseguinte, não há como cogitar da aplicação retroativa desta última Lei, que somente poderá alcançar os fatos praticados após o início de sua vigência.
Relativamente aos mecanismos de comprovação da embriaguez, como referido anteriormente, na vigência da Lei nº 11.705/08 somente os testes de alcoolemia - bafômetro ou exame de sangue - foram aceitos para produzir a prova da ebriez. Esta situação persiste, atualmente, quando a opção for por tais meios de prova.
Contudo, a Lei nº 12.760/12 previu outros mecanismos de prova, a incidirem sobre os sinais da embriaguez, fazendo expressa referência aos vídeos e à prova testemunhal, além de outros meios de prova em direito admitidos. Portanto, ampliou o espectro probatório e, nessa medida, não há como cogitar da aplicação retroativa para antes da vigência desta Lei. E, em nada altera a solução o fato de nominar tal norma como sendo de natureza processual que, sabidamente, não retroage.
6. Considerações conclusivas
É sabido, pois largamente divulgado, que o trânsito é uma das principais causas de mortes violentas no Brasil, e que muitos dos acidentes automobilísticos são determinados pela ingestão de álcool ou substância psicoativa pelo condutor. Os nefastos efeitos desses acidentes são sentidos em diversos campos, desde a dor pela perda de entes queridos e de arrimos de famílias, passando pelo sistema de saúde e de previdência públicas, para os quais são projetados os efeitos econômicos dos acidentes, eis que são obrigados a tratar os traumas corporais e suprir a perda da capacidade laborativa ou a invalidez.
Assim visto o fenômeno, nada mais justificado do que o uso do Direito Penal, com suas ferramentas coativas e punitivas, para proteger a incolumidade pública e particular. Ademais, exigível que a legislação penal tenha racionalidade e efetiva aplicabilidade, para ser instrumento eficaz de proteção dos bens jurídicos envolvidos.
Nesses termos, considera-se que a legislação que tipifica criminalmente a embriaguez ao volante foi alvo de significativas melhoras. As principais: a) a expressa ampliação dos meios de comprovação da embriaguez, notadamente a análise dos sinais, com o que foi superada a impossibilidade da prova do estado de ebriez na hipótese em que o condutor recusava-se a utilizar os meios de medição; b) o abandono do elemento espacial do tipo penal “em via pública”; c) a formatação do tipo penal como de perigo abstrato, com o que se superou a exigência da causação do risco em concreto.
Espera-se que a legislação em tela cumpra a finalidade para a qual foi editada, que é reduzir o número de acidentes automobilísticos causados pela anterior ingestão de álcool e, desse modo, concretizar o princípio da segurança viária ou direito a um trânsito seguro, previsto no § 2º do art. 1º do Código de Trânsito. E que esta medida seja buscada também por outras formas, em especial medidas administrativas e a permanente educação para o trânsito.
Referências
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NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed. rev.atual. e amp. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais, 2010.
OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 11. ed. 2009. Rio de Janeiro: Lúmen Júris.
SOUZA, Bruno Preti de. Considerações sobre as alterações produzidas nos artigos 165, 276, 277, 306 do código de transito brasileiro pela Lei 11705/08. Revista Ajuris, v. 36, n. 114, p. 27, 45, jun. 2009.
TROIS NETO, Paulo Mario Canabarro. Direito a não autoincriminação e direito ao silêncio. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2011.