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A configuração atual do crime de embriaguez ao volante - art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro

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08/11/2013 às 15:16
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Analisa-se o tipo penal do art. 306 da Lei nº 9.503/97 - embriaguez ao volante -, com as alterações promovidas pelas Leis nº 11.705/08 e nº 12.760/12. Trata do elemento central do tipo, que é a alteração da capacidade psicomotora, e das formas de sua comprovação.

Sumário: 1. Noções gerais; 2. Capacidade psicomotora: conceito e modos de constatar a sua alteração; 3. Condução de veículo automotor; 4. Natureza do crime e aspectos probatórios; 5. A sucessão de leis e eventual retroatividade; 6. Considerações conclusivas; Referências.

Resumo: O texto analisa o tipo penal previsto no art. 306 da Lei nº 9.503/97 - embriaguez ao volante, com as alterações promovidas pelas Leis nº 11.705/08 e nº 12.760/12. Trata do elemento central do tipo, que é a alteração da capacidade psicomotora e também das formas de sua comprovação. Por fim, aborda a matéria referente à natureza jurídica do tipo penal, bem como eventual retroatividade das normas penais que se sucederam no tempo.


1. Noções gerais

A Lei nº 12.760, de 20 de dezembro de 2012, fez diversas modificações e inserções no Código de Trânsito Brasileiro, instituído pela Lei nº 9.503/97, de 23 de setembro de 1997.

Um dos dispositivos alterados foi o art. 306, no qual vem criminalizada a conduta de dirigir veículo automotor sob a influência de álcool ou outra substância psicoativa, crime conhecido como embriaguez ao volante.

Desde a vigência do Código de Trânsito, é a terceira formatação legal deste crime.

Com efeito, inicialmente ele consistia em “Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”. As penas cominadas eram: detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Em vista do elevado número de acidentes de trânsito, muitos com vítimas fatais e motivados pela anterior ingestão de álcool pelo motorista, em 2008 o legislador fez editar a Lei nº 11.705, que foi denominada de “Lei Seca”, numa tentativa de recrudescer a ação estatal nesse campo e prevenir a prática dessa conduta.

Relativamente ao crime em comento, ele passou a configurar-se com o ato de “Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.

Previu a Lei, portanto, uma quantidade de álcool por litro de sangue para configurar o tipo penal, não obstante qualquer quantidade de álcool que viesse a ser constatada, mesmo inferior àquela, configurava infração de trânsito, conforme evidencia o art. 165 da Lei nº 9.503/97: “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Infração - gravíssima; Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação”. Atualmente, a penalidade para esta infração é de “multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses”.

A concentração de álcool por litro de sangue, portanto, passou a integrar o tipo penal, dado que ensejou graves dificuldades quanto à prova desta infração penal. Com efeito, tal elemento deveria ser comprovado por meio pericial, com o uso do bafômetro, ou por meio de exame de sangue.

A par desta condicionante na prova do crime que, portanto, somente poderia ser feita pelo meio pericial, assentou-se na doutrina e jurisprudência a noção de que o condutor suspeito de conduzir veículo em estado de embriaguez não poderia ser coagido a utilizar o aparelho de medição da quantidade de álcool existente no sangue, assim como não poderia ser obrigado a permitir a coleta de sangue para fazer o exame. E o fundamento para tais negativas lícitas foi calcado no princípio da vedação da autoincriminação, mais conhecido pela expressão segundo a qual ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si - em latim, nemo tenetur se detegere.

Esses dois elementos jurídicos foram fixados na jurisprudência dos Tribunais Superiores de forma definitiva.

A título de exemplo, o Supremo Tribunal Federal, por intermédio da Primeira Turma, no julgamento do HC 93916/PA, decidiu que:

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBLIDADE DE SE EXTRAIR QUALQUER CONCLUSÃO DESFAVORÁVEL AO SUSPEITO OU ACUSADO DE PRATICAR CRIME QUE NÃO SE SUBMETE A EXAME DE DOSAGEM ALCOÓLICA. DIREITO DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO: NEMO TENETUR SE DETEGERE.

Não se pode presumir a embriaguez de quem não se submete a exame de dosagem alcoólica: a Constituição da República impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo [...]. (Relatora Min. Carmem Lúcia, julgado em 10/06/2008, Dje 117, publ. 27/06/2008).

O Superior Tribunal de Justiça assentou as premissas acima citadas no julgamento do REsp 1.111.566/DF, ementado dessa forma:

PROCESSUAL PENAL. PROVAS. AVERIGUAÇÃO DO ÍNDICE DE ALCOOLEMIA EM CONDUTORES DE VEÍCULOS. VEDAÇÃO À AUTOINCRIMINAÇÃO. DETERMINAÇÃO DE ELEMENTO OBJETIVO DO TIPO PENAL. EXAME PERICIAL. PROVA QUE SÓ PODE SER REALIZADA POR MEIOS TÉCNICOS ADEQUADOS. DECRETO REGULAMENTADOR QUE PREVÊ EXPRESSAMENTE A METODOLOGIA DE APURAÇÃO DO ÍNDICE DE CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL NO SANGUE. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.

1. O entendimento adotado pelo Excelso Pretório, e encampado pela doutrina, reconhece que o indivíduo não pode ser compelido a colaborar com os referidos testes do 'bafômetro' ou do exame de sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se autoincriminar (nemo tenetur se detegere). Em todas essas situações prevaleceu, para o STF, o direito fundamental sobre a necessidade da persecução estatal.

2. Em nome de adequar-se a lei a outros fins ou propósitos não se pode cometer o equívoco de ferir os direitos fundamentais do cidadão, transformando-o em réu, em processo crime, impondo-lhe, desde logo, um constrangimento ilegal, em decorrência de uma inaceitável exigência não prevista em lei.

3. O tipo penal do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro é formado, entre outros, por um elemento objetivo, de natureza exata, que não permite a aplicação de critérios subjetivos de interpretação, qual seja, o índice de 6 decigramas de álcool por litro de sangue.

4. O grau de embriaguez é elementar objetiva do tipo, não configurando a conduta típica o exercício da atividade em qualquer outra concentração inferior àquela determinada pela lei, emanada do Congresso Nacional.

5. O decreto regulamentador, podendo elencar quaisquer meios de prova que considerasse hábeis à tipicidade da conduta, tratou especificamente de 2 (dois) exames por métodos técnicos e científicos que poderiam ser realizados em aparelhos homologados pelo CONTRAN, quais sejam, o exame de sangue e o etilômetro.

6. Não se pode perder de vista que numa democracia é vedado ao judiciário modificar o conteúdo e o sentido emprestados pelo legislador, ao elaborar a norma jurídica. Aliás, não é demais lembrar que não se inclui entre as tarefas do juiz, a de legislar.

7. Falece ao aplicador da norma jurídica o poder de fragilizar os alicerces jurídicos da sociedade, em absoluta desconformidade com o garantismo penal, que exerce missão essencial no estado democrático. Não é papel do intérprete-magistrado substituir a função do legislador, buscando, por meio da jurisdição, dar validade à norma que se mostra de pouca aplicação em razão da construção legislativa deficiente.

8. Os tribunais devem exercer o controle da legalidade e da constitucionalidade das leis, deixando ao legislativo a tarefa de legislar e de adequar as normas jurídicas às exigências da sociedade. Interpretações elásticas do preceito legal incriminador, efetivadas pelos juízes, ampliando-lhes o alcance, induvidosamente, violam o princípio da reserva legal, inscrito no art. 5º, inciso II, da Constituição de 1988: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

9. Recurso especial a que se nega provimento. (Relator Min. Marco Aurélio Belizze, Relator para o acórdão, Min. Adilson Vieira Macabu, julgado em 18/03/2012).

Essa linha de pensamento produziu resultados desastrosos no âmbito de incidência da norma penal em questão, frustrando a intenção do Legislador com a edição da Lei nº 11.705/08. Aliás, este próprio foi corresponsável pelo desastre, quando previu que a embriaguez somente poderia ser comprovada pelo uso do bafômetro ou pela realização de exame de sangue.

Na realidade, ocorreu a conjugação da ineficiência legislativa com a afirmação, pelo Poder Judiciário, de um garantismo penal míope e parcial e, por isso, não razoável, notadamente com milhares de vítimas de acidentes provocados por condutores embriagados, que lograram, com o citado mecanismo, solene impunidade.

De fato, o reconhecimento do absoluto direito ao condutor de não se submeter ao teste do bafômetro e ao exame de sangue passou a funcionar como barreira intransponível aos órgãos de fiscalização de trânsito no trabalho de comprovação da embriaguez ao volante.

E o efeito prático que se produziu foi a absolvição da grande maioria dos condutores contra os quais foi instaurada ação penal pela prática do crime, ensejando uma inaceitável situação fomentadora da impunidade. Efetivamente, os poucos condutores condenados pela Justiça criminal foram os incautos que se submeteram a um dos exames mencionados; em síntese, criou-se um patético mecanismo em que a decisão em responder ou não à ação penal estava na mão do condutor suspeito de embriaguez, pois, bastava exercer o direito referido que estaria totalmente inviabilizada a perspectiva de sucesso na persecução penal.

Com isso, a pretendida diminuição dos acidentes causados pela ingestão de álcool também não se verificou e foi totalmente frustrada.

Esses foram os principais motivos que ensejaram nova reformulação do tipo penal inscrito no art. 306 do Código de Trânsito, promovida pela referida Lei nº 12.760/12. A atual redação deste artigo é esta: “Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.

Observa-se, portanto, que o elemento central do tipo penal deixou de ser a quantidade de álcool por litro de sangue e passou a ser a “capacidade psicomotora alterada”, determinada pela “influência de álcool ou de substância psicoativa que determine dependência”.


2. Capacidade psicomotora: conceito e modos de constatar a sua alteração

Tem capacidade psicomotora aquele que consegue integrar em seu corpo as funções motoras e as psíquicas. Segundo estudos médicos, há uma região no cérebro humano que preside e determina os movimentos dos músculos, e o seu controle é a denominada capacidade psicomotora que, desse modo, compreende: a) a coordenação motora (utilização eficiente das partes do corpo), b) a tonicidade (adequação de tensão para cada gesto ou atitude), c) a organização espacial e percepção visual (acuidade, atenção, percepção de imagens, figuras de fundo e coordenação viso-motora), d) a organização temporal e percepção auditiva (atenção, discriminação, memória de sons e coordenação auditiva-motora), e) a atenção (capacidade de apreender o estímulo), f) a concentração (capacidade de se ater a apenas um estímulo por um período de tempo), g) a memória (capacidade de reter os estímulos e suas características), h) o desenvolvimento do esquema corporal (referência de si mesmo) e i) a linguagem. (http://www.bhonline.com.br/marta/psicomot.htm).

Uma das formas de alterar essa capacidade psicomotora é a embriaguez que, como se sabe, é uma intoxicação aguda e transitória, determinada pela ingestão de álcool ou de substâncias de efeitos psicotrópicos, cujo principal efeito é eliminar ou diminuir a capacidade motora e de entendimento.

A alteração dessa capacidade psicomotora, ainda segundo a Lei em comento, pode ser verificada por dois meios.

De um lado, pela concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar. Nesse particular, manteve-se o padrão já existente na legislação anterior, a partir da constatação, por meio de estudos técnicos, de que a referida quantidade de álcool efetivamente afeta a capacidade psicomotora do condutor de veículo.

Lembre-se que a verificação dessa quantidade de álcool no corpo do agente, segundo a jurisprudência acima mencionada, somente poderia ser obtida pelo uso dos aparelhos que a medem ou pelo exame de sangue. Contudo, no § 2º do art. 306 o legislador da Lei nº 12.760/12 fez constar que “A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova”. Portanto, ampliaram-se os meios de prova da condição do agente, ressaltando-se os vídeos e a prova testemunhal, de obtenção mais fácil e que independem da vontade do condutor.

Por outro lado, e nisso há outra inovação legislativa, a alteração da capacidade psicomotora também pode ser comprovada por sinais que a indiquem. A esse respeito, a Lei nº 12.760/12 determinou que o Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) elaborasse e publicasse Resolução para especificar quais seriam esses sinais e a forma de sua coleta e comprovação.

Essa providência foi adotada, havendo o citado Órgão publicado a Resolução nº 432, de 23 de janeiro de 2013, que “Dispõe sobre os procedimentos a serem adotados pelas autoridades de trânsito e seus agentes na fiscalização do consumo de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, para aplicação do disposto nos arts. 165, 276, 277 e 306 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 – Código de Trânsito Brasileiro (CTB)”.

No art. 3º da Resolução, consta que “A confirmação da alteração da capacidade psicomotora em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência dar-se-á por meio de, pelo menos, um dos seguintes procedimentos a serem realizados no condutor de veículo automotor: I – exame de sangue; II – exames realizados por laboratórios especializados, indicados pelo órgão ou entidade de trânsito competente ou pela Polícia Judiciária, em caso de consumo de outras substâncias psicoativas que determinem dependência; III – teste em aparelho destinado à medição do teor alcoólico no ar alveolar (etilômetro); IV – verificação dos sinais que indiquem a alteração da capacidade psicomotora do condutor”. No § 1º foi previsto que “Além do disposto nos incisos deste artigo, também poderão ser utilizados prova testemunhal, imagem, vídeo ou qualquer outro meio de prova em direito admitido”.

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Sobre os sinais de alteração da capacidade psicomotora, dispõe o art. 5º da Resolução que eles poderão ser verificados por: a) exame clínico com laudo conclusivo e firmado por médico perito; ou b) constatação, pelo agente da Autoridade de Trânsito, dos sinais de alteração da capacidade psicomotora, conforme anexo. O §§ do art. 5º determinam que, para confirmação da alteração da capacidade psicomotora pelo agente da Autoridade de Trânsito, deverá ser considerado não somente um sinal, mas um conjunto de sinais que comprovem a situação do condutor; ademais, que os sinais de alteração da capacidade psicomotora deverão ser descritos no auto de infração ou em termo específico.

Por outro lado, o Anexo II da Resolução nº 432/13 especifica os elementos que devem ser considerados para se concluir pela alteração da capacidade psicomotora, classificados em cinco grupos:

I. Quanto à aparência, se o condutor apresenta: sonolência, olhos vermelhos, vômito, soluços, desordem nas vestes e odor de álcool no hálito.

II. Quanto à atitude, se o condutor apresenta: agressividade, arrogância, exaltação, ironia, se está falante ou se apresenta dispersão.

III. Quanto à orientação, se o condutor: sabe onde está, sabe a data e a hora.

IV. Quanto à memória, se o condutor: sabe seu endereço e lembra dos atos cometidos;

V. Quanto à capacidade motora e verbal, se o condutor apresenta: dificuldade no equilíbrio, fala alterada.

É importante atentar para o fato de que, na atual configuração do tipo penal de embriaguez ao volante, não é exigido que a capacidade psicomotora esteja suprimida; basta que ela esteja alterada, fora do estado normal, e por isso, os sinais acima mencionados e que constam no Anexo II da Resolução têm relevância e aptidão para a prova do crime.

Por fim, deve-se lembrar que, para a ocorrência do crime em questão, essa alteração deve ser determinada pela influência do álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência física ou psíquica; estas últimas, naturalmente, são as drogas ilícitas, objeto, no Brasil, da Lei nº 11.343/2006, conhecida como “Lei de Drogas”.


3. Condução de veículo automotor

Outro elemento necessário para a configuração do crime previsto no art. 306 do Código de Trânsito é que o agente esteja conduzindo veículo automotor. A esse respeito, há no Brasil interpretação autêntica, aquela que procede do próprio órgão que editou a norma; com efeito, no Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro há inúmeros conceitos, dentre os quais o de veículo automotor: “todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico)”.

Relativamente ao local em que o veículo automotor é conduzido, há um dado importante a referir: a redação do art. 306 anteriormente à edição da Lei nº 12.760/2012 trazia o elemento “em via pública”, e atualmente a conduta é simplesmente “conduzir veículo automotor”, tendo sido suprimido, portanto, esse elemento espacial do tipo penal.

Desse modo, impõe-se concluir que o crime em questão poderá ser praticado em qualquer lugar, aí incluindo as vias existentes no interior de propriedade privada, em estacionamentos e garagens. Esta forma de redação da regra punitiva, além de implicar em ampliação do âmbito de sua incidência, ajustou este tipo penal a dois outros constantes no mesmo Código de Trânsito, o homicídio culposo (art. 302) e a lesão corporal culposa (art. 303), relativamente aos quais nunca vigorou o elemento espacial em referência.

Ademais, mostra coerência com o teor do art. 1º do mesmo Código, no qual consta que ele se destina a regular o trânsito nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, lembrando que o conceito de “via”, constante no Anexo I, é “superfície por onde transitam veículos, pessoas e animais, compreendendo a pista, a calçada, o acostamento, ilha e canteiro central”.


4. Natureza do crime e aspectos probatórios

Outro elemento de importância é classificar o crime de embriaguez ao volante como sendo de perigo concreto ou de perigo abstrato. Lembre-se que, neste particular, as infrações penais classificam-se em crimes de dano, que somente se consumam com a efetiva lesão ao bem jurídico, e crimes de perigo, que se consumam com a simples possibilidade de dano ou a colocação em perigo do bem jurídico. O perigo, ademais, pode ser abstrato ou presumido pela lei em face de determinado ação ou omissão, situação em que há a dispensa de prova da sua existência/ocorrência. Noutras situações, o perigo é concreto, ou seja, o acusador, na ação penal, tem o ônus de provar que o bem jurídico foi exposto ao perigo.

Com tais premissas, observa-se que na redação original do art. 306 constava “Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem” (grifado); portanto, tratava-se de crime de perigo concreto, ensejando a necessidade de comprovar-se no curso da persecução penal a prática de ação perigosa por parte do condutor, como o excesso de velocidade, o andar em ziguezague ou em cima de calçadas e acostamentos, ou qualquer outra manobra anormal ou perigosa.

Entretanto, quando editada a Lei nº 11.705, em 2008, o legislador abandonou a fórmula anterior, configurando o crime com o ato de “Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. E, na atual redação do art. 306, também não há nenhuma referência a dano potencial, bastando conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada.

Portanto, fica evidente que o crime previsto no art. 306 do Código de Trânsito, atualmente, é de perigo abstrato, ou seja, é a lei que presume que conduzir veículo nas condições referidas é ação perigosa, atraindo o condutor, com a simples condução nesse estado, a incidência da norma penal, mesmo que a referida condução apresente-se normal e, no caso concreto, não oferte perigo potencial. O risco, portanto, é presumido pelo legislador.

No ponto, conveniente referir que essa formatação legal para o crime em comento já foi objeto de questionamento sob a perspectiva da constitucionalidade. Com efeito, argumenta-se contra os crimes de perigo abstrato que eles importam em responsabilidade penal objetiva, há muito abandonada pelo Direito Penal, e também que ofendem os princípios da lesividade - só há crime com a efetiva lesão ou quando concretamente posto em perigo o bem jurídico protegido -, da culpabilidade e do estado de inocência.

Em favor dos crimes de perigo abstrato sustenta-se que há determinadas condutas que naturalmente geram alto grau de risco para a coletividade, como, por exemplo, o porte ilegal de arma de fogo; por terem intrínsecas a elas esse elevado risco, devem ser coibidas preventivamente, induzindo as pessoas a delas se absterem, com o que estará prevenida a prática do respectivo crime; caso não se abstenha, o agente é passível de punição criminal pela simples ação, sem que tenha gerado dano ou risco concreto de dano. Naturalmente, a asserção é válida apenas em relação aos bens jurídicos mais relevantes para o convívio social.

O Supremo Tribunal Federal, quando incitado a decidir a respeito do art. 306 do Código de Trânsito sob esse ponto de vista, rechaçou a pretensão de vê-lo declarado inconstitucional. De fato, a 1ª Turma daquele Tribunal, ao julgar, no dia 08/05/2012, o RHC 110258/DF, Relator o Min. DIAS TOFFOLI, decidiu que:

Recurso ordinário em habeas corpus. Embriaguez ao volante (art. 306 da Lei nº 9.503/97). Alegada inconstitucionalidade do tipo por ser referir a crime de perigo abstrato. Não ocorrência. Perigo concreto. Desnecessidade. Ausência de constrangimento ilegal. Recurso não provido.

1. A jurisprudência é pacífica no sentido de reconhecer a aplicabilidade do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro – delito de embriaguez ao volante –, não prosperando a alegação de que o mencionado dispositivo, por se referir a crime de perigo abstrato, não é aceito pelo ordenamento jurídico brasileiro.

2. Esta Suprema Corte entende que, com o advento da Lei nº 11.705/08, inseriu-se a quantidade mínima exigível de álcool no sangue para se configurar o crime de embriaguez ao volante e se excluiu a necessidade de exposição de dano potencial, sendo certo que a comprovação da mencionada quantidade de álcool no sangue pode ser feita pela utilização do teste do bafômetro ou pelo exame de sangue, o que ocorreu na hipótese dos autos.

3. Recurso não provido.

A Segunda Turma do STF também se posicionou nesse sentido quando julgou o HC 109.269-MG, Relator o Min. Ricardo Lewandowski. Sobre o ponto em questão, disse:

HABEAS CORPUS. PENAL. DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO REFERIDO TIPO PENAL POR TRATAR-SE DE CRIME DE PERIGO ABSTRATO. IMPROCEDÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

I - A objetividade jurídica do delito tipificado na mencionada norma transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da proteção de todo corpo social, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança nas vias públicas.

II - Mostra-se irrelevante, nesse contexto, indagar se o comportamento do agente atingiu, ou não, concretamente, o bem jurídico tutelado pela norma, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para o qual não importa o resultado. Precedente.

III – No tipo penal sob análise, basta que se comprove que o acusado conduzia veículo automotor, na via pública, apresentando concentração de álcool no sangue igual ou superior a 6 decigramas por litro para que esteja caracterizado o perigo ao bem jurídico tutelado e, portanto, configurado o crime.

IV – Por opção legislativa, não se faz necessária a prova do risco potencial de dano causado pela conduta do agente que dirige embriagado, inexistindo qualquer inconstitucionalidade em tal previsão legal.

V – Ordem denegada.

Em consequência da higidez jurídico/constitucional do art. 306 em questão, cabe ao acusador fazer a prova de que o condutor/acusado encontrava-se dirigindo veículo automotor com a capacidade psicomotora alterada pela influência de álcool ou substância psicotrópica; provados estes dados, estará configurado o tipo penal, não afastando tal conclusão eventual alegação de que a condução do veículo foi normal e não causou perigo a ninguém.

E à defesa caberá concentrar-se em afastar a prova da alteração da capacidade psicomotora, pois, como já referido, o argumento segundo o qual não houve dano, nem perigo de dano, não afasta a incidência da norma penal em comento.

Exsurgem, portanto, no contexto da prova da infração penal em comento, duas situações: de um lado, será presumida e estará provada para fins penais a alteração da capacidade psicomotora se for constatada, em exame, concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama por litro de ar alveolar, independentemente da condução anormal do veículo ou da aparência do agente, pois, ainda que o condutor não demonstre sinal de embriaguez, o crime estará configurado em virtude da quantidade de álcool no corpo.

Por outro lado, se o condutor não se submeter a nenhum teste de alcoolemia, a alteração da capacidade psicomotora poderá ser demonstrada, para fins penais, mediante gravação de imagem em vídeo, exame clínico, prova testemunhal ou qualquer outro meio de prova lícita; caso provada a alteração por esses meios, o crime estará configurado e, por se tratar de crime de perigo abstrato, também neste caso não há necessidade de provar a condução anormal do veículo.

Ainda no campo da prova da infração penal, é conhecida a regra geral prevista no art. 158 do Código de Processo Penal, segundo a qual “Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”. Vestígio, do latim “vestigium”, é todo e qualquer sinal, marca, objeto, situação fática ou ente concreto sensível, de qualquer modo relacionado a uma pessoa ou a um evento de relevância penal, ou então presente em um local de crime. Do crime em questão, são vestígios o álcool ou a substância psicotrópica no corpo do condutor, e que são a causa da alteração na capacidade psicomotora.

Aplicando-se a regra processual mencionada, é inegável que, quando se pretender provar a infração penal por meio da quantidade de álcool no sangue ou no ar dos pulmões, inegável a necessidade de prova pericial. Ademais, pela objetividade e capacidade probatória, esta medição mostra-se ideal para a prova da infração penal em questão. Contudo, quando o condutor recusar-se a tanto, e tem o direito de fazê-lo segundo os parâmetros fixados pela jurisprudência a respeito, há a outra possibilidade probatória, que é a verificação dos sinais da alteração. Neste caso, não se trata, necessariamente, de prova pericial.

Por isso, não se poderia utilizar a norma do art. 158 do CPP para tentar infirmar a prova assim coletada, pois a referida regra vem complementada por outra, também constante na codificação processual penal, no artigo 167, onde consta que “Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta”. A descrição dos sinais da alteração em auto próprio e o testemunho a respeito, portanto, são elementos de prova suficientes para a comprovação da embriaguez.

Portanto, os dois meios de prova referidos e admitidos pelo Código de Trânsito para a comprovação da alteração da capacidade psicomotora de condutor de veículo automotor encontram guarida nas normas gerais sobre a prova em Processo Penal.

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Sobre o autor
Dario José Kist

Mestre em Direito, Professor de Direito Penal e Processo Penal, Promotor de Justiça no Estado da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIST, Dario José. A configuração atual do crime de embriaguez ao volante - art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3782, 8 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25748. Acesso em: 18 dez. 2024.

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