O problema ambiental gerado pela elevação contínua do nível dos mares passa a ameaçar a integridade territorial de muitos países, como: Cuba, República Dominicana, Fiji, Haiti, Ilhas Salomão, Santa Lúcia, Vanuatu, ilhas de Naurú, Seychelles. Além de Sri Lanka e Indonésia (arquipélago com mais de 13.500 ilhas), Holanda e de Nápoles, na Itália. Em alguns casos, o país inteiro ficará ou já totalmente submerso, tendo desaparecido um dos elementos essenciais na definição de Estado: o território. Seus habitantes são náufragos ambientais, despossuídos de nacionalidade e sem direitos assegurados.
O náufrago ambiental de hoje pode, é e será o náufrago jurídico, social, econômico, climático de hoje e de amanhã. No caso concreto analisado, a poluição gerada pelos países desenvolvidos elevou o nível dos mares e isto deixou, literalmente, a soberania de alguns embaixo d’água. Algumas soluções foram aventadas, como a aquisição de território em outros Estados independentes, a ser pago com trabalho. Não colou muito a ideia porque a pretensa alternativa produziria trabalho em condições análogas à escravidão, uma vez que os valores pagos seriam exorbitantes, visto que se compraria a soberania de um território e não apenas uma parcela de terra.
Outra alternativa – possivelmente seja esta a opção mais recorrente – seria a ONU oferecer o direito de nacionalização aos cidadãos dessas Ilhas-países para que não ficassem apátridas. Esta saída seria jurídica, de acordo com o direito internacional público, no entanto, seria imoral e equivaleria a aplicar o antidireito para solucionar um problema global. Trata-se de uma solução fundada no antidireito porque a soberania de um Estado foi aniquilada pela ação global de todos os países associados à ONU, cada um com sua parcela de ação e de culpa, e, portanto, equivaleria a uma declaração de guerra mundial, em que um país muito frágil fosse totalmente arrasado e sem que nenhum dos Estados agressores fosse responsabilizado.
Por seu turno, a solução real – a mais complexa e de difícil orquestração – exigiria a aplicação da metodologia da pegada ambiental, de forma que cada país-membro da ONU participasse de acordo com sua responsabilidade na degradação ambiental-global e, assim, todos os membros da ONU pagariam pela cota-parte a fim de que um outro território – soberano – fosse adquirido pelo Estado-náufrago. Como vemos, as concepções tradicionais de soberania advindas dos juristas brasileiros são insuficientes para captar esta ação de responsabilidade global e comum (Carvalho, 2009, p. 127).
As concepções não estão erradas, porém, ocorre que independência tem sido tomada por irresponsabilidade. O caminho seria retomar e dar aplicabilidade internacional à ideia de soberania profunda, como expressa pelo jurista suíço: “É soberano aquele que edita leis conforme regras prescritas, das quais o povo aprova o caráter vinculante” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 242 – grifos nossos). Nesta concepção está a autoridade – como responsabilidade global pelos atos e efeitos públicos – e não apenas a força do Estado. Mais precisamente, nesta concepção está delimitada a responsabilidade do Estado pelo dano ambiental, uma vez que seu povo é conhecedor de sua parcela de industrialização e de degradação ambiental. Pela lógica inclusiva do direito internacional – da prevenção e da precaução não adotadas –, esta seria a única forma de se ter a reparação do dano ambiental, provocado pelo efeito global da industrialização e sem que a ONU adotasse uma solução jurídica baseada no antidireito.
A soberania é a atribuição de poderes exclusivos e legítimos ao Estado, está correto, mas antes disso é a constituição/verificação de direitos, funções e responsabilidades compartilhadas por seu povo. A ideia de soberania absolutista, em que o Estado mandava e desmandava em seu território, é passada. A perspectiva da soberania profunda se adapta às exigências do século XXI, como na enunciação da ecologia profunda e a partir de suas implicações mentais, sociais e ambientais (Guattari, 1991). A soberania profunda impõe responsabilidades ao Estado, interna e externamente, com o dever da precaução, da prevenção, da indenização e da reparação, respectivamente, e de modo semelhante à responsabilidade objetiva prevista no direito brasileiro.
Por sua vez, este novo rumo sugere a imbricação de outros novos/velhos ramos e/ou áreas recobertas pelas várias gerações de direitos humanos, bem como novos/velhos dilemas: direitos políticos (soberania X excipio); direitos fundamentais (direito de propriedade X direito à vida saudável); ecologia e meio ambiente; direitos humanitários (asilo político, ajuda humanitária). Em suma, exige-se uma soberania político-ambiental, se podemos falar assim.
Bibliografia
CARVALHO, Kildare Gonçalvez. Direito Constitucional. 15 ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2009.
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. São Paulo : Martins Fontes, 2006.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas, São Paulo : Papirus, 1991.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.