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O problema hermenêutico da força normativa da Constituição

12/11/2013 às 14:10
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Enquanto desconheço o homem e sua humanidade, sou estranho aos princípios.

Trivial na doutrina de nossos dias a consideração de que a leitura constitucional do direito positivo ordinário encontra-se presente não apenas como uma necessidade retórica da Carta Magna, porém como um marco evolutivo necessário do ponto de vista da legitimidade do ordenamento nos direitos e garantias aqui ou acolá embrenhados nos enunciados daquela.

Quando se fala, por exemplo, em força normativa da Constituição (Hesse) não se perdeu de vista o juspositivismo de Kelsen simplesmente por retirarmos do quadro das pesquisas a tendência metafísica moderna de perseguir uma norma hipotética fundamental de matriz do transcendentalismo neokantiano. Simplesmente ocorreu a substituição de um paradigma por outro, vale dizer, o que antes se via enquanto sombra de uma norma fundamental hipotética, que Kelsen chamaria, no fim da vida, de mera ficção, agora se vê na figura da força normativa da Constituição, certamente um paradigma menos fictício e absolutamente mais real, pelo menos em teoria. 

A Constituição passa a ser o centro de validade e legitimidade do direito legislado e, igualmente, das interpretações possíveis de enunciados normativos, sobremaneira aqueles cuja hipótese de incidência e o consequente são indeterminados, como é o caso das cláusulas gerais – técnica legislativa de conforto ao Legislador, criada mais em função de uma crítica histórica à letargia e ao legalismo burocrático do que, efetivamente, um representativo de que o direito positivo precisa ampliar-se ao nível de plasticidade adequada à complexidade das relações jurígenas das sociedades plurais.

Diz-se que os princípios estão ao lado das regras no domínio da Teoria das Normas. Não se diz, por outro lado, no que consistem esses princípios e no que, em verdade, se distinguem das regras – ou, quando se diz, é o óbvio. Parece, pois, que não se abandonou na Teoria do Direito enveredada neste campo os vícios metafísicos da modernidade, que afinal não terminaram o projeto do Iluminismo justamente pelo desprezo (intencional ou leniente) às investigações dos pressupostos do Ser pensante, ao invés dos pressupostos do pensar enquanto tal.

Chega-se, pós-metafisicamente, a um Habermas cujo desejo é finalizar o projeto inacabado da modernidade a partir do estabelecimento de uma pragmática universal no seio da afirmação da racionalidade comunicativa, algo absolutamente louvável e arquitetônico, porém crente quase sempre no procedimento formal do discurso que permita pretensões de validade generalizáveis tendentes ao consenso, algo oportuníssimo numa Situação Ideal de Fala onde, dentre outras circunstâncias, enfim conseguiríamos emancipar-nos do colonialismo sistêmico do dinheiro e do poder no mundo da vida.

A ideia de que nascemos em uma sociedade pronta, portanto, em um mundo da vida colonizado pelas forças de produção, pela catástrofe do progresso, para mencionarmos Benjamin, resulta na concepção mediadora da Filosofia e, afinal, do próprio Direito, entre, portanto, facticidade do mundo perturbado e validade do mundo da vida livre. O sujeito que neste momento está nascendo tem poucas chances de transformar as instituições, de combater as veleidades do Estado e, quase sempre, o protagonismo da sua personalidade incorrerá, para ser válido, numa hermenêutica vazada, embora legítima, dos direitos fundamentais. Isto é, extraem-se dos direitos fundamentais perspectivas que, se deles houvesse investigação suficiente, teria se dispensado a luta jurídica contra forças atávicas da sociedade. Talvez, por outro lado, isso represente o próprio início da derrota dessas forças de produção, apegadas a modelos precários e limitados mundo, em função da crescente vitória de novas forças de produção, tencionadas no encalço ideológico de um neoconstitucionalismo perseverante. Foi assim, sobremaneira no direito de família, considerando-se sua evolução nos últimos vinte anos, e é assim, hoje, no direito como um todo.

O distanciamento do positivismo jurídico é parcial e ocorre pelas vias do neoconstitucionalismo, o que não quer dizer propriamente um pós-positivismo jurídico. Assim, a Constituição possui uma força normativa (Hesse), um papel mediador (Habermas), possui princípios e regras numa estrutura intrassistemática de ponderação, proporcionalidade (Alexy), porém não consegue fugir do mito beligerante da modernidade do sujeito do conhecimento, tampouco com a perspectiva da razão comunicativa habermasiana, porquanto a pós-metafísica como vetor desse último plano, nada mais faz do que acreditar num consenso que se mostra cada vez mais difícil de ser obtido no nível do macrocosmo do ordenamento.

A pós-metafísica, sinal da incredulidade contra o conceito em-si de metafísica, quer colocar-nos no horizonte de uma modernidade possível, o que, no plano do neoconstitucionalismo, por exemplo, constitui uma ideologia de substancialidade dos direitos fundamentais, conquistada através de uma ética do discurso cujas pretensões de validade sejam generalizáveis e, assim, situadamente verdadeiras enquanto universalmente aceitas pela comunidade geral de intérpretes. A consequência disso é a perda da força normativa da Constituição do ponto de vista da ideologia neoconstitucionalista, que afinal de contas busca um discurso estético dos direitos fundamentais (esses como centro da evolução do reconhecimento público de direitos) – digamos – em metadiscursos belíssimos, contudo insubsistentes da perspectiva filosófica, que a pragmática tenta suplantar na razão prática do discurso formador de consensos situados, cada vez mais amplos até o discurso geral da democracia.

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O que há, portanto, entre uma e outra tentativa? Há o esquecimento do pós-positivismo como vetor hermenêutico-ontológico cuja envergadura pode possibilitar: (i) a fuga do esquecimento clássico e moderno do Ser, a partir da investigação das verdades do mesmo no nível dos seus pressupostos existenciários no sentido de estabelecimento de uma visão de mundo plenamente realizável e não excludente dos variados mundos socioculturais, através do conhecimento definido na Teoria dos Princípios e; (ii) a concretização de um conceito de neoconstitucionalismo possível no interior do processo de produção interpretativa de princípios essenciais eticamente vinculadores das pretensões situadas de verdade engajadas no projeto definido de direitos fundamentais ideologicamente posicionados na Constituição.

Quer-se com isso dizer que o Direito pode ser um médium, porém o é a partir de uma teoria ontológica dos princípios essenciais, enquanto formação de um paradigma sensato de mundo da vida, tal qual se busca na doutrina contemporânea do neoconstitucionalismo, mas que não se sabe, apesar disto, por onde definitivamente encontrar fundamentos razoáveis de validade e legitimidade. Por outro lado, a teoria dos princípios essenciais, ética e hermenêutica, não perde de vista os horizontes de sentido obtidos no domínio da razão comunicativa situada para a formação de consensos, porquanto permite, por um conceito ético-político incompleto de justiça, a implantação de compreensões originais constituídas no consequente resultado de um discurso intersubjetivo, por sua vez estabilizado por um conceito formal de justiça, por onde também reverbera o Ethos dos princípios essenciais, donde, ao lado daquele primeiro conceito mencionado de justiça (incompleto), indica o melhor mundo possível, cuja realização será mediada no potencial sintagmático do entendimento das situações intersubjetivas existenciárias.

Daí que o Direito é o médium dos princípios essenciais e esses, por sua vez, o médium de designativos humanos universalizáveis formados no domínio da projeção forte de direitos fundamentais paradigmáticos (papel ideológico do neoconstitucionalismo)[1] e no potencial sintagmático de versões justas à nível hermenêutico profundo da existencialidade humana.

A contribuição do neoconstitucionalismo para a Teoria do Direito é mais do que o papel normativo da Constituição, dentre outras coisas, mas a necessidade de revitalizar-se a teoria dos princípios enquanto médium de versões trazidas pelos sujeitos numa situação de discurso com vistas a potencialização de condições de vida aperfeiçoáveis, ou ainda, na revitalização da justiça em bases racionalmente aceitáveis.

Diz-se, pois, da necessidade autêntica de considerar o pós-positivismo jurídico como a colocação dos discursos normativos, racionais e estéticos, no terreno da teoria dos princípios, com a qual, portanto, o neoconstitucionalismo poderá obter êxito em sua proposta reformadora; e a pragmática hermenêutica de longa via o êxito em sua proposta de formação de consensos, dispensando-se, para tanto, o ponto de referência da Situação Ideal de Fala, porquanto se poderá lograr, ainda que mediante o decurso de certo tempo, o consenso aqui mesmo, no plano existenciário.    

Deve haver o entendimento, em contrapartida, que nem sempre será obtido o consenso, mas não porque houve falha no procedimento ou deficiência dos agentes da comunicação. Simplesmente porque em certas vezes não se deve exigir o consenso, em prol do respeito ao que, por exemplo, é da própria substância de uma determinada visão de mundo. Quer dizer que o discurso mediador dos princípios essenciais é possível ainda que não convirja numa situação concreta de comunicação intersubjetiva. O consenso é bom para o Direito em diversos aspectos, contudo nem sempre a incidência da normatividade decorre de uma situação projetada de conflito, porém pode ser que advenha de situação meramente declaratória de um estado de coisas frente a uma interpretação principiológica de um direito positivo ou de um direito fundamental ligado a uma determinada visão de mundo.

 Enquanto, pois, não se buscar o conhecimento hermenêutico do homem em sua humanidade, na agonia, no desespero, no projeto existencial onde viça o úbere seio da angústia, não se poderá argumentar sobre direitos fundamentais, sobre princípios. A releitura do positivismo é uma desconstrução reconstrutiva, no processo mesmo do engajamento. Os ruídos de princípios que ouvimos, não serão poesia até que os versos formados por suas linhas estejam escritos na tábua, até então desprezada, da condição humana. O neoconstitucionalismo deve suportar o ônus idiossincrático que, no fundo, carrega, de modo que, ao assumir seu projeto ideológico, modifique-nos, enquanto pessoas, ao ethos originário que queremos e que, muito embora, somos já senhores.


Notas

[1] Projeções arquetípicas. 

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Sobre o autor
Luiz Felipe Nobre Braga

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas; Advogado; Consultor e Parecerista; Professor de Direito Constitucional e Lógica Jurídica na Faculdade Santa Lúcia em Mogi Mirim-SP; Professor convidado da pós-graduação em Direito Processual Civil e no MBA em Gestão Pública, da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas/MG. Autor dos livros: "Ser e Princípio - ontologia fundamental e hermenêutica para a reconstrução do pensamento do Direito", Ed. Lumen Júris, 2018; "Direito Existencial das Famílias", Ed. Lumen Juris-RJ, 2014; "Educar, Viver e Sonhar - Dimensões Jurídicas, sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna", Ed. Publit, 2011; e "Metapoesia", Ed. Protexto, 2013.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Luiz Felipe Nobre. O problema hermenêutico da força normativa da Constituição . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3786, 12 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25842. Acesso em: 26 abr. 2024.

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