3. Da não aplicação do precedente julgado pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3599.
Resta, ainda, assinalar que não se aplica à tese até aqui desenvolvida, o precedente julgado pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3599, cuja transcrição de parte do seu teor se faz necessária, para melhor compreensão da matéria:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Leis federais 11.169/2005 e 11.170/2005, que alteram a remuneração dos servidores públicos integrantes dos Quadros de Pessoal da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Alegações de vício de iniciativa legislativa (arts. 2º, 37, X, e 61, § 1º, II, a, da CF); desrespeito ao princípio da isonomia (art. 5º, caput, da Carta Magna); e inobservância da exigência de prévia dotação orçamentária (art. 169, § 1º, da CF). (...) A ausência de dotação orçamentária prévia em legislação específica não autoriza a declaração de inconstitucionalidade da lei, impedindo tão somente a sua aplicação naquele exercício financeiro. Ação direta não conhecida pelo argumento da violação do art. 169, § 1º, da Carta Magna. Precedentes : ADI 1.585-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, unânime, DJ de 3-4-1998; ADI 2.339-SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, unânime, DJ de 1-6-2001; ADI 2.343-SC, Rel. Min. Nelson Jobim, maioria, DJ de 13-6-2003. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente conhecida e, na parte conhecida, julgada improcedente."
(ADI 3.599, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 21-5-2007, Plenário, DJ de 14-9-2007.)
Na ocasião, as Leis Federais nº 11.169/2005 e 11.170/2005, que alteraram a remuneração dos servidores públicos integrantes dos Quadros de Pessoal da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, não foram previstas no orçamento vigente. De acordo com entendimento do Supremo Tribunal Federal, essas leis são existentes, válidas, porém ineficazes. A eficácia, a seu turno, estaria condicionada à previsão das referidas despesas na lei orçamentária anual.
No caso em exame, os aumentos previstos nas leis que concederam os reajustes, diferentemente do referido julgado, foram incluídos no Anexo V do PLOA 2013, havendo, pois, orçamento para pagamento das suas despesas.
Por derradeiro, não se pode esquecer que o Congresso Nacional, ao mesmo tempo em que aprovou as leis dos reajustes aos servidores do Poder Executivo, com a previsão de que as novas tabelas nelas previstas vigorassem a partir de janeiro do corrente ano, sem a fixação de qualquer condicionante, concordou com a proposta do Poder Executivo materializada no art. 50, I, da LDO 2013, no sentido de autorizar a execução provisória da lei orçamentária, incluída aí, como visto, as autorizações dos reajustes previstos no Anexo V do PLOA 2013.
Analisando a questão sob o prisma do princípio nemo potest venire contra factum proprium18, ou seja, que veda a adoção de comportamentos contraditórios, corolário do princípio da boa-fé, da lealdade e da confiança legítima, não seria razoável admitir que o Congresso Nacional depois de aprovar as referidas leis, rejeitasse o aumento correspondente, quando do exame do projeto da lei orçamentária anual.
O Superior Tribunal de Justiça, por mais de uma vez, já reconheceu a aplicação do referido princípio perante as condutas estatais. Sobre a questão, vale por todos, transcrever trecho do voto proferido pelo Min. Relator Adhemar Maciel, no julgamento do REsp n. 47.015/SP19:
Ora, pelo que se apreende do acórdão recorrido, o Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou – a meu ver, acertadamente – o princípio de que nemo potest venire contra factum proprium (ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa) (...) Realmente, não pode a Fazenda Pública, décadas após a venda do imóvel realizada por funcionário de alto escalão em nome da Administração, vir a juízo pleitear a nulidade dos títulos. Ora, se há mácula no título, essa foi causada pelo próprio poder público, o qual não pode invocar o suposto equívoco do seu secretário de Estado, para prejudicar aquele que legitimamente adquiriu a propriedade, pagando para tanto. Em suma, Senhor Presidente, se o suposto equívoco no título da propriedade foi causado pela própria Administração, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço para fins de aquisição. (...)
Sem querer alongar muito sobre a matéria, é importante frisar que, hodiernamente, a doutrina não destoa desse entendimento, de modo a admitir a aplicação do referido princípio em relação às condutas estatais, em quaisquer de suas esferas: legislativa, administrativa e jurisdicional, conforme se pode verificar da leitura das lições da jurista Raquel de Mello Urbano21:
“Independentemente de se fazer inserir, ou não, no princípio da segurança jurídica a ideia de certeza, é sabido que todos reconhecem ao referido princípio o objetivo de subtrair a atividade pública das áleas do arbítrio, assegurando-se a estabilidade mínima possível em um dado sistema jurídico, embora impossível a estabilidade absoluta nas relações sociais. Se no mundo moderno não se pode esperar o imobilismo, igualmente rejeitada é a instabilidade desagregadora do sistema jurídico. Os interesses individuais e coletivos não podem ser expostos à imprevisibilidade acentuada, nem mesmo a mudanças bruscas e irrefletidas, sendo imperioso proteger a boa-fé dos integrantes da sociedade. Em outras palavras, embora seja inerente ao direito ser um sistema mutante, porquanto relativo a uma sociedade em permanente transformação, deve-se buscar um mínimo de equilíbrio e estabilidade necessários ao futuro das relações sociais.”
(...)
“Especificamente no Direito Administrativo, o exame eminentemente doutrinário e, no Brasil, ainda incipiente sobre o tema, invoca como justificativa à proteção da boa-fé na seara pública a impossibilidade de o Estado violar a confiança que a própria presunção de legitimidade dos atos administrativos traz, agindo contra factum proprium. Não há dúvida que a confiança que os cidadãos têm nas ações estatais, decorrentes do seu presumido acerto do ponto de vista fático e jurídico, justifica sejam os mesmos protegidos do automatismo na incidência do ordenamento jurídico. Não se pode admitir um comportamento público que crie expectativas e que, posteriormente, frustre, de modo desarrazoado, o estado de confiança decorrente até mesmo da presunção de legitimidade reconhecida ao Estado.”
No mesmo sentido, são os ensinamentos do professor baiano Paulo Modesto22:
A moralidade administrativa, porém, exige do administrador uma atuação ética tanto em suas relações externas com os administrados, tomados estes como particulares ou com uma coletividade total e inespecífica de homens, quanto nas relações internas relativas ao funcionamento e estruturação do aparato administrativo.
Nas relações com os administrados a boa fé assegura a proteção da confiança , valor fundamental no Estado de Direito, uma vez que oferece vedação a toda atuação contrária à conduta reta, normal e honesta que cabe desejar tráfego jurídico, assegurando também os efeitos jurídicos esperados justificadamente pelo sujeito que atuou de boa fé.
Dessa forma, resta muito claro que as leis que concederam os reajustes, em atenção ao princípio da universalidade, do equilíbrio orçamentário, e ao disposto no art. do art. 50, I, § 2º e no art. 76. da LDO 2013, atendem às exigências do art. 169, §1º, I e II, da Constituição Federal.
Conclusão
Por todo o exposto, em homenagem à tradição constitucional, aos princípios da universalidade e do equilíbrio orçamentário, ao disposto no art. 50, I e § 2º da Lei n.º 12.708, de 17 de agosto de 2012 – LDO 2013, bem como às regras que norteiam a atividade hermenêutica, impõe-se concluir pela regularidade da execução provisória das despesas referentes aos aumentos concedidos aos servidores públicos federais no exercício de 2013, mesmo sem a entrada em vigor da lei orçamentária correspondente.
Referências bibliográficas.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Grandes Temas de Direito Administrativo. São Paulo. Malheiros Editores, 2009.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1998.
CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Editora JusPodium, 2009. p. 83/84 e 111/112.
CONTI, José Mauricio. Orçamentos Públicos: A Lei 4.320/64 comentada. Coordenador José Maurício Conti. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001.
MODESTO, Paulo. Controle jurídico do comportamento ético da Administração Pública no Brasil. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ, Centro de Atualização Jurídica, n. 13, abril-maio 2002.
Notas
1 Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:
III - os orçamentos anuais.
2 § 5º - A lei orçamentária anual compreenderá: (Destacou-se)
3 Art. 34. da Lei n.º 4.320/64: “O exercício financeiro concidirá com o ano civil.”
4 Conti, José Mauricio. Orçamentos Públicos: A Lei 4.320/64 comentada. Coordenador José Maurício Conti. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 117.
5 Art. 74. da Constituição de 1946: “Se o orçamento não tiver sido enviado à sanção até 30 de novembro, prorrogar-se-á para o exercício seguinte o que estiver em vigor.”
6 Art. 68. da Constituição de 1967: “O projeto de lei orçamentária anual será enviado pelo Presidente da República à Câmara dos Deputados até cinco meses antes do início do exercício financeiro seguinte; se, dentro do prazo de qutro meses, a contar do seu recebimento, o Poder legislativo não o devolver para sanção, será promulgado como lei.”. Na redação à referida Constituição que foi dada pela Emenda 1, de 1969, o tema passou a constar do art. 66, com a seguinte redação: “ O projeto de lei orçamentária anual será enviado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional para votação conjunta das duas Casas, até quatro meses antes do início do exercício financeiro, o Poder legislativo não o devolver para sanção será promulgado como lei.”
7 "Art. 6º. Se o orçamento não for sancionado até o final do exercício de seu encaminhamento ao Poder Legislativo, sua programação poderá ser executada, até o limite de dois doze avos do total de cada dotação, observadas as condições constantes da lei de diretrizes orçamentárias."
8 Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001. P. 101.
9 Art. 4º A Lei n.º 4.320/1964 : A Lei de Orçamento compreenderá todas as despesas próprias dos órgãos do Governo e da Administração centralizada, o que , por intermédio deles se devam realizar, observado no art. 5º.”
10 Esse princípio tem assento no art. 165, § 5º, da Constituição Federal, bem como nos arts. 2º, 3º e 4º, todos da lei n.º 4.320.
11 Art. 4, I, a da Lei Complementar n.º 101/2000: Art. 4. A lei de diretrizes orçamentárias atenderá o disposto no § 2º do art. 165. da Constituição e:
I – disporá também sobre:
a) equilíbrio entre receitas e despesas.
12 Esclareça-se, desde logo, que essas despesas, diferentemente do que é defendido por alguns, não estão sujeitas ao que, tradicionalmente, se convencionou denominar de duodécimo. Isso porque a referida restrição incide apenas sobre as despesas previstas no inciso VI do art. 50. da LDO 2013. É o que dispõe o § 4º do art. 50. da LDO 2013, veja-se:
§ 4º As despesas descritas no inciso VII serão limitadas a um doze avos do valor previsto em cada ação no Projeto de Lei Orçamentária de 2013, multiplicado pelo número de meses decorridos até a sanção da respectiva Lei.
13 Hermenêutica e Aplicação do Direito. São Paulo: Editora Forense, 2001. 19ª Edição. P 203
14 Ob. Cit. P. 250.
15 A título elucidativo, permita-me transcrever a autorização presente no Anexo V, para as carreiras do Poder Executivo contempladas com o aumento. Trata-se da versão aprovada no Relatório da CMO de 17.12.2012. Perceba-se que são identificados os PL´s referentes à reestruturação de carreiras e aumento de remuneração. Registre-se que o item 5 identifica as programações orçamentárias, em nível de UO e funcional programática, correspondentes ao provimentos e aumentos de remuneração, todas elas pertencentes ao Grupo de Natureza de Despesa- GND 1 -. Veja-se:
16 § 8º Os recursos que, em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária, ficarem sem despesas correspondentes poderão ser utilizados, conforme o caso, mediante crédito especiais ou suplementares com prévia e específica autorização legislativa.
17 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição.São Paulo: Saraiva, 1998, p. 164-165.
18 A propósito, oportuna as lições de lições de Celso Antonio Bandera de Mello, que, ao examinar a matéria, defende a aplicação do aludido princípio à atuação da Administração, presentes na obra Grande Temas do Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 177.
21 CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Editora JusPodium, 2009. p. 83/84 e 111/112.
22 MODESTO, Paulo. Controle jurídico do comportamento ético da Administração Pública no Brasil. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ, Centro de Atualização Jurídica, n. 13, abril-maio 2002.