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Limitações às emendas:

a manutenção da força normativa da constituição

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05/12/2013 às 09:24
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1.3 Caracteres do Poder Constituinte

O Poder Constituinte, em sentido amplo, é a manifestação da vontade soberana da nação, no sentido de elaborar uma Lei Maior, responsável pela organização do Estado, política e juridicamente. É através do Poder Constituinte que o povo, diretamente ou por meio de representantes, aprova o Texto supralegal, altera-o, posteriormente, bem como o revoga, pela edição de uma nova Constituição. O Poder Constituinte se divide em Originário e Derivado, conforme o momento de sua atuação e as suas características primordiais.

O Poder Constituinte Originário, também nomeado de inicial ou inaugural, é aquele que cria o Estado, através de uma nova Constituição, formando as bases de um ordenamento jurídico distinto do anterior. É o poder que o povo possui de criar e recriar a sua própria Constituição, que irá nortear a atividade estatal, na busca do bem comum.

São dois os momentos em que o Poder Constituinte Originário se manifesta: no ato inaugural, ante a inexistência de um ordenamento constitucional anterior, quando é denominado fundacional; ou então no instante em que quebra a estrutura de poder vigente, por meio de uma nova Constituição, hipótese em que é caracterizado como revolucionário.

Em qualquer das duas situações acima expendidas, o Poder Constituinte Originário se caracteriza, segundo a maioria dos doutrinadores, como ilimitado e incondicionado, no que diz respeito à sua forma de atuação. Apesar de acostar-se a entendimento diverso deste, que, repise-se, é majoritário, neste artigo se permite não adentrar na discussão acerca das normas constitucionais inconstitucionais, capitaneada por Otto Bachof, por entender que tal problemática não contribui para a presente análise.

Assim, nas palavras de Márcia Haydée Porto de Carvalho: “O poder constituinte originário caracteriza-se por ser um poder inicial, autônomo, incondicionado e ilimitado.”12

Ainda sobre as características do Poder Constituinte Originário, os ensinamentos de Michel Temer:

Como todo movimento inaugural, não há limitações à sua atividade. Materialmente, o constituinte estabelecerá a preceituação que entender mais adequada; criará Estado unitário ou Federal; estabelecerá forma republicana ou monárquica de governo; fixará sistema de governo, parlamentar, presidencial ou diretorial; dirá como se distribui o exercício do poder, descreverá e assegurará, ou não, direitos reputados individuais. Enfim, criará o Estado mediante atuação ilimitada do poder.13

Ocorre, contudo, que o próprio Poder Constituinte Originário, ao aprovar a Carta Magna, prevê as possibilidades de reforma do seu texto, por intermédio do Poder Constituinte Secundário, responsável pela modificação formal das Constituições.

O Poder Constituinte Derivado, também definido como Constituído, Instituído, de Segundo Grau, ou Secundário, é, portanto, aquele que possui a atribuição de adaptar os preceitos constitucionais às mutações sociais, ou seja, alterar o texto constitucional de acordo com as necessidades apresentadas pela sociedade. Não se concebe mais, hodiernamente, uma Lei Suprema imutável. Ápice do ordenamento jurídico, cujas normas apresentam-se como fundamento de validade dos demais comandos normativos, a Constituição deve ter abertura para amoldar-se à realidade, por meio da atuação do Poder Instituído.

Contudo, cuida-se de Poder limitado, condicionado e subordinado aos regramentos ínsitos no Texto Supremo Originário. Não pode, o Poder Constituinte Derivado, extrapolar o seu mister, indo de encontro às emanações proferidas pelo legislador constituinte originário, sob pena de ter a sua produção legiferante declarada inconstitucional, mediante controle de constitucionalidade.

Desta forma, o que delimita o campo de atuação do Poder Reformador são os limites às emendas constitucionais, sejam eles de cunho material, procedimental, temporal, ou ainda circunstancial. Estas restrições, por se tratarem do cerne do presente estudo, serão abordadas com maior afinco nos capítulos III e IV.

Por fim, é de bom alvitre destacar que as limitações ao poder de emenda se apresentam como instrumentos fundamentais para que se preserve a força normativa da Constituição, de forma a evitar que a evolução social torne o seu texto desagregado da realidade cambiante. Trata-se de função imprescindível para a continuidade da Constituição, conforme se enfocará no capítulo seguinte.


2. FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E AS ALTERAÇÕES CONSTITUCIONAIS

2.1 O “Hiperciclo Histórico Constitucional” e a Necessidade de Alterações no Texto Maior

A Constituição, quando de sua aprovação, deve observar o “hiperciclo histórico constitucional”, para que não se torne uma Carta voltada apenas para a época de sua promulgação, chegando a alcançar a longevidade que dela se espera.

Por “hiperciclo histórico constitucional” entende-se o fato de a Constituição trazer o passado para o presente, projetando este para o futuro. Em outras palavras, isso quer significar que as normas constitucionais aprovadas em um determinado momento devem se pautar pela realidade social da época, tendo como fundamento os costumes entronizados pela sociedade desde o passado, mas sem perder de vista a sua continuidade, ou seja, a perspectiva de que as interações sociais do futuro também serão regradas pela mesma Carta Magna.

O art. 28, da Constituição Francesa promulgada em 1793, explicitava esta questão ao prever que: “Um povo tem sempre o direito de revisar, reformar ou alterar sua Constituição. Uma geração não pode submeter as suas leis às gerações futuras.”

O texto constitucional, pois, não pode se pretender imutável, devendo ser passível de alterações que o mantenham em constante sintonia com a evolução da sociedade. Desta forma, à Norma Cume devem ser introduzidas regras que prevejam a possibilidade e as formas de execução de sua reforma, reforma esta que possuirá, por conseguinte, limitações explícitas e implícitas.

Assim, ao vislumbrar o “hiperciclo histórico constitucional”, é de extrema importância que o legislador constituinte originário tenha em mente que as normas constitucionais dirigir-se-ão não apenas a uma geração, cujos interesses são, em tese, homogêneos, mas sim a diferentes épocas, nas quais os anseios sociais se transmudam constantemente.

Por todas as razões supramencionadas, reitere-se, é imperativo que o Poder Constituinte Inaugural abra, no próprio texto da Lex Mater, a possibilidade de alteração do seu conteúdo. Ocorre que as normas decorrentes do Poder Derivado, entretanto, também possuem uma aplicação sucessiva, não esgotando os seus efeitos à época de sua aprovação, portanto igualmente necessitam guardar observância ao “hiperciclo histórico constitucional”. Assim, as reformas do texto devem ater-se às questões contemporâneas, mas também necessitam atender à premente relevância de continuidade do regramento imposto pelo Texto Maior.

Destarte, faz-se mister a observância, pelo legislador constituinte, do “hiperciclo histórico constitucional”, para que se maximize a força normativa da Constituição, conforme se demonstrará adiante. Isto porque quanto menos alterações se impuserem à Carta Magna, maior será a sua possibilidade de simbiose com a realidade social. Neste sentido, as limitações ao Poder de emendar a Constituição não podem deixar de ser destacadas.

De fato, na medida em que o Poder Constituinte atua de maneira equivocada, aprovando um texto que se amolde apenas à realidade fática de seu tempo, as alterações constitucionais se tornam imperiosas, para que a Constituição não se distancie demasiadamente do contexto sócio-político. As reiteradas reformas do texto constitucional demonstram, em primeira análise, a falta de visão em perspectiva dos constituintes.

É de bom tom salientar, contudo, que a possibilidade de alteração das normas ínsitas na Constituição é imprescindível. O que se entende necessário é a manutenção do cerne do texto supralegal.

Garantir, pois, a imutabilidade do que se convencionou chamar de “identidade da Constituição”, assim entendida como um “conjunto de normas e princípios estruturantes de uma determinada ordem jurídico-constitucional”14, é a principal relevância das limitações ao Poder Constituinte Derivado.

Desta maneira, conclui-se que as normas que possibilitam a reforma constituem-se no instrumento capaz de promover a perfeita interação entre estabilidade e inovação, continuidade e mudança, com o objetivo de manter a ordem jurídico-constitucional em conformidade com a realidade social, garantindo, assim, a sua continuidade.

Logo, não há como se vislumbrar a existência de uma Constituição imutável, pois a possibilidade de alteração do texto supralegal é, ainda que paradoxalmente, a garantia de sua durabilidade, ao longo dos anos. Na análise de Ana Cláudia Nascimento Gomes:

Desdramatiza-se, com isso, jurídico-dogmaticamente dizendo, a revolta que as reformas constitucionais pudessem causar aos mais radicais e desavisados conservadores, afinal, sem elas, a Constituição (se possível numa visão antropomórfica) certamente estaria fadada a uma morte prematura.15

Entretanto, as reformas constitucionais são balizadas por limites, conforme já salientado anteriormente. Tais limites, impostos pela própria emanação originária do Poder Constituinte, possuem o condão de manter a “identidade constitucional” intacta, e serão objeto de análise dos próximos capítulos.

2.2 As Frequentes Reformas e a Mitigação da Força Normativa da Constituição

A expressão “força normativa” da Constituição foi introduzida por Konrad Hesse, que estudou a correlação entre o que se pretende através do texto e o que se reproduz na realidade fática, concluindo que quanto mais intrínseca for esta relação, maior é a normatização da Lei Mãe, gerando a sua efetividade e aplicabilidade. É de se anotar, portanto, que uma normatização terá menos chances de efetivar-se, acaso se demonstre dissociada da realidade factual.

O constituinte, quando da aprovação da Lei Maior, deve observar os costumes e anseios da sociedade que por ela será regida, para que o texto constitucional não se distancie destes balizamentos. Logo, quanto maior a força normativa da Constituição, mais será ela ligada à realidade.

Neste sentido, recorre-se à definição de Konrad Hesse:

A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. 16

Analisando a força normativa da Constituição, colaciona-se o magistério de Gustavo Just da Costa e Silva:

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Quanto ao seu conteúdo as normas constitucionais precisam apresentar possibilidade de realização, que se traduz pela vinculação às forças espontâneas e às tendências de seu tempo. Uma normatização terá menos chances de realização quanto mais desconectada estiver das tendências naturalmente verificadas na sociedade.17

Destarte, a força normativa da Constituição é condição sine qua non para a sua efetividade e aplicabilidade em relação ao regramento das relações sociais. Seria inconcebível a existência de normas constitucionais que não fossem respeitadas pelos cidadãos, tornando-se simples comandos inaplicáveis. Mesmo as normas programáticas, que possuem menor grau de efetividade, possuem força vinculante de seus preceitos, por trazerem em seu bojo um norte que deve ser perseguido pelo Estado.

Nesta linha de tirocínio, pontifica Gustavo Just da Costa e Silva:

A força normativa da constituição não desaparece necessariamente por estar a norma em contradição com a realidade atual, mas somente existe se o conteúdo da norma encontrar respaldo ao menos numa realidade potencial, latente, cujos elementos já se fazem presentes, embora possam estar dispersos ou pouco desenvolvidos.18

Ocorre que as constantes reformas promovidas pelo Poder Constituinte Derivado terminam por diminuir a força normativa da Constituição, conforme outrora salientado. Tais alterações implicam uma aceitação de que as relações sociais vigentes destoam da norma, atribuindo às primeiras maior valor, tanto que se impõe a modificação do texto normativo, para que este se adapte à realidade.

No Brasil, já passamos de quarenta emendas à Constituição, em apenas quinze anos de sua existência, além dos diversos Projetos de Emenda Constitucional em tramitação no Congresso Nacional. Trata-se de um abuso do legislador derivado, que se atém apenas ao casuísmo, comprometendo a continuidade da Constituição, bem como a sua força normativa.

Resta, portanto, indubitável que quanto menos modificada for a Norma Cume, maior será a sua capacidade de regulamentar as questões atinentes à sociedade por ela regrada. Como testifica Karl Loewenstein: “Quanto mais acostumada estiver uma nação à sua constituição, mais se resguardará de tocá-la mediante reforma constitucional.”19

No mesmo sentido, transcrevem-se os escólios de Konrad Hesse:

Igualmente perigosa para a força normativa da Constituição afigura-se a tendência para a freqüente revisão constitucional sob a alegação de suposta e inarredável necessidade política. Cada reforma constitucional expressa a idéia de que, efetiva ou aparentemente, atribui-se maior valor às exigências de índole fática do que à ordem normativa vigente. Os precedentes aqui são, por isso, particularmente preocupantes. A freqüência das reformas constitucionais abala a confiança na sua inquebrantabilidade, debilitando a sua força normativa.20

A estabilidade, por conseguinte, é atributo fundamental para que a Constituição mantenha sua eficácia. Neste sentido, as Cartas Magnas serão menos passíveis de alterações, na medida em que se voltem apenas à consagração de princípios fundamentais e aspectos básicos da organização do Estado, como ocorre com a Lei Maior norte-americana, definida como sintética.

No caso da Constituição tupiniquim, que é considerada analítica, por tratar de assuntos que não podem ser considerados materialmente constitucionais21, instaura-se a necessidade de alterações constantes, o que conseqüentemente acarreta a diminuição da sua força normativa: “A constitucionalização de interesses momentâneos ou particulares exige, em contrapartida, uma constante revisão constitucional, com inevitável desvalorização da força normativa da Constituição.”22

Portanto, não se pode olvidar que os limites impostos às emendas constitucionais consubstanciam-se em importantes instrumentos para que se evite a desregrada alteração do texto constitucional, mormente no que tange aos direitos e garantias fundamentais assegurados a todos pela Lex Fundamentalis.

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Sobre o autor
Pedro Pontes de Azevêdo

Professor de Direito Civil na Universidade Federal da Paraíba. Mestre em direito pela UFPB. Doutorando em Direito pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Civil-Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVÊDO, Pedro Pontes. Limitações às emendas:: a manutenção da força normativa da constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3809, 5 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26063. Acesso em: 22 nov. 2024.

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