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Limitações às emendas:

a manutenção da força normativa da constituição

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05/12/2013 às 09:24
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3. LIMITAÇÕES MATERIAIS E TEMPORAIS ÀS EMENDAS CONSTITUCIONAIS

3.1 Limitações Materiais Implícitas

O Poder Constituinte Derivado, instituído pela própria Carta magna, possui, conforme outrora salientado, limitações ao seu âmbito de atuação, de forma a restringir-lhe a possibilidade de alteração da Constituição, de acordo com alguns parâmetros essenciais. Tais limites podem revestir-se de cunho material, formal, circunstancial e temporal. Ocorre que as limitações materiais podem, ainda, ser explícitas, quando expressamente inseridas na Constituição, ou implícitas, indiretamente asseguradas pelo Poder Constituinte.

As limitações materiais explícitas serão analisadas de forma detalhada no subitem destinado às cláusulas pétreas.

Os limites implícitos, por sua vez, são aqueles que não estão prescritos expressamente no texto supralegal, mas possuem a mesma força dos que assim estão.

A doutrina não é pacífica no que tange à consagração dos limites implícitos, observando-se contemporaneamente uma tendência de alargamento do rol dos limites explícitos, exatamente como forma de evitar a proliferação do dissenso doutrinário, que dificulta a aplicação dos impedimentos às reformas.

Contudo, a maioria dos doutrinadores brasileiros aponta para a existência de limites implícitos ao Poder Reformador. Consoante pontifica MICHEL TEMER, dentre outras: “São implícitas as vedações atinentes à supressão do próprio artigo que impõe expressamente aquelas proibições. Não teria sentido emenda que suprimisse o disposto no §4º do art. 60 da CF.”23

Horst Ehmke24, em seu livro Verfassungsaenderung, divide as limitações implícitas em três espécies, a saber: a) transcendentes à Constituição; b) imanentes à Constituição; e c) intermediárias à Constituição.

A primeira categoria de limitações implícitas, as transcendentes à Constituição, é representada por aquelas normas gerais de direito das gentes, somadas a condições econômicas, técnicas e geográficas. Um exemplo de tal limitação é o art. 5º, §2º, da Carta Política brasileira, que prevê a impossibilidade de reforma que venha a abrigar matéria incompatível com o seu conteúdo.

Em segundo plano estariam as limitações implícitas imanentes à Constituição, que são aquelas que tratam da racionalização e limitação do poder. Na Carta Magna de 1988, representam tais limitações os comandos que abordam os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e das coletividades, além das normas atinentes à separação dos Poderes, mormente nos arts. 2º, 5º e 7º, em seus incisos.

Por último, tem-se que as limitações intermediárias à Constituição se caracterizam como as que trazem restrições ligadas ao fundamento de validade do próprio Poder Constituinte, ou seja, os fins da comunidade política. Estas encontram-se normalmente descritas no preâmbulo e nos direitos internacionais reconhecidos ao homem.

Uadi Lammêgo Bulos25, em sua Constituição Anotada, propõe um desdobramento destas categorias acima explanadas, dividindo as restrições em cinco espécies, que, no entendimento do presente estudo, aparentam mais adequadas ao âmbito da Constituição Federal de 1988.

Assim, conforme o pensamento de Uadi Lammêgo Bulos, a primeira categoria de limitações implícitas é a que se direciona aos direitos e garantias fundamentais. Uma emenda constitucional não pode, em nenhuma hipótese, suprimir os direitos e garantias fundamentais consagrados na Lei Maior, sejam aqueles ínsitos no art. 5º, ou aqueles do art. 7º.

No presente texto ousa-se discordar deste entendimento, haja vista que a proibição de emenda que vise a abolir os direitos e garantias fundamentais constantes da Lei Suprema está explicitamente definida no art. 60, §4º, IV. Assim, tirante esta primeira categoria, concorda-se com as demais, a seguir dissecadas.

Como segunda espécie de limitação indireta, releva-se aquela que impede a mudança de titularidade do Poder Constituinte Originário. Isto porque as reformas do Texto Magno, que são empreendidas pelo Poder Constituinte Derivado, não possuem competência para modificar a titularidade do Poder que os originou: “A criatura não se insurge contra o criador, exceto nos casos de subversão da ordem dos acontecimentos, através do nascimento de situações esdrúxulas, anormais, execráveis, inaceitáveis.”26

Ademais, os comandos normativos que aludem à titularidade do Poder Constituinte Inaugural não estão expressamente dispostos na Lei Maior. Aparecem, tais regras, apenas de maneira subliminar, seja no preâmbulo27 ou em disposições de cunho genérico, como o art. 1º da Constituição de 1988, verbis: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou indiretamente, nos termos desta Constituição.”

De maneira similar, existe ainda a limitação implícita à alteração da titularidade do Poder Reformador da Lei Fundamental. Nenhuma emenda constitucional possui o condão de prever que outro órgão, que não o Congresso Nacional, será o responsável pela alteração da Carta Magna, indo de encontro à delegação feita pelo Poder Constituinte Inicial, que é, portanto, insuscetível de transferência. Padeceria de cristalina inconstitucionalidade, uma emenda que atribuísse ao Chefe do Poder Executivo, por exemplo, a competência para emendar a Constituição.

Por fim, como última categoria de limitações implícitas, encontram-se aquelas que impedem a alteração do modo como deve ser conduzido o processo legislativo das reformas constitucionais. Assim, não será possível ao legislador constituinte originário aprovar matéria que tenha como objeto tornar mais simples, ou mesmo mais dificultoso, o processo estabelecido pelo art. 60, da Constituição de 1988, que prevê as condições e requisitos que devem ser obervados quando da proposta de emendas constitucionais.

As limitações implícitas, portanto, possuem importante papel de balizamento da atuação do Poder Constituinte de Segundo Grau, tendo em vista que se constituem de matérias que não estão expressamente dispostas na Lei Maior, mas que, se alteradas, poderiam provocar muitas contradições na organização do Estado.

Há ainda uma questão relevante, relacionada à possibilidade do controle de constitucionalidade de emendas em desarmonia com o cerne constitucional, tendo como fundamento as limitações impostas ao Poder Constituinte Derivado, cuja análise será tema do capítulo V.

3.2 Limitações Materiais Explícitas

Limitações materiais explícitas são aquelas que, de modo expresso, impedem que o Poder Constituinte Derivado aprove emendas que versem sobre determinados temas insertos da Carta Magna, seja no sentido de suprimi-los, ou mesmo de alterar-lhes a substância. Trata-se da espécie mais importante das limitações, tendo em vista que é a de maior aplicabilidade e ocorrência.

As limitações materiais atuam como garantidoras da estabilidade constitucional. É por meio delas que se impede que a atuação do Poder Reformador venha a alterar o cerne constitucional. Desta forma, com os limites materiais, o Texto Magno busca assegurar, no ordenamento constitucional, os benefícios da segurança jurídica e da eficácia do texto supralegal.

São muitas as denominações dadas às limitações materiais, comumente chamadas de cláusulas pétreas. Revestem-se, tais normas, da garantia de que nenhuma emenda tendente a aboli-las deverá ser objeto sequer de apreciação pelo Congresso Nacional, órgão do legislativo a quem cabe a atribuição de aprovar as emendas constitucionais.

Na Constituição Federal de 1988, as limitações materiais estão elencadas no art. 60, §4º, I a IV, cujo conteúdo será analisado pormenorizadamente adiante.

O art. 60, §4, I, trata da forma federativa de Estado. Tal garantia visa assegurar que nenhuma manifestação legislativa objetive ameaçar a existência da Federação, passando-se para um Estado unitário, por exemplo. A inspiração deste comando normativo restritivo encontra-se na Carta Magna francesa de 1884, que previa a impossibilidade de revisão no sentido de abolir a forma republicana de governo. Ressalte-se que a atual Lei Maior excluiu do âmbito das cláusulas pétreas a forma republicana. No entanto, desde a Carta de 1891, existia esta cláusula impeditiva em nossas Constituições, com uma única exceção, ocorrida no Texto Fundamental de 1937.

Acerca da limitação material plasmada no inciso I, José Afonso da Silva testifica:

É claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: “Fica abolida a Federação”, ou “Suprima-se o inciso II do art. 5º.” A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer dos elementos conceituais da Federação no sentido de seu enfraquecimento, isto é, que se encaminhe, “tenda” (emenda “tendente”, diz o texto) para a sua abolição, ou emenda que “tenda” a enfraquecer qualquer dos direitos e garantias individuais constante do art. 5º.28

No inciso II, do art. 60, §4, está consagrado o limite que impede que se tencione à abolição do voto direto, secreto, universal e periódico. Registre-se, por oportuno, que em nenhuma Constituição pretérita havia a consagração de norma assemelhada a esta, sendo a Carta Política de 1988 a primeira a instituir tal impedimento.

O dispositivo sob comento tem como finalidade impedir que se mitigue a participação popular nas eleições, ou ainda que se criem mecanismos que venham a burlar a lisura dos pleitos eleitorais realizados para a escolha dos representantes do povo, seja no Poder Executivo, seja no Legislativo.

Assim, tomemos como exemplo uma proposta de emenda que previsse a possibilidade de publicação dos votos de cada eleitor, como forma de controle da justeza das eleições, para que se evitasse a ocorrência de fraudes. Apesar de aparentemente ser uma idéia de resultado benéfico à população, seu objeto seria claramente inconstitucional, por ferir a cláusula intangível ínsita no art. 60, §4, II, o que impediria a sua tramitação, no Congresso Nacional.

A impossibilidade de separação dos Poderes é a cláusula pétrea consagrada no art. 60, §4, III. Da mesma forma que o inciso anteriormente analisado, esta limitação foi incluída pela primeira vez em nosso ordenamento constitucional pela Lei Suprema de 1988. A separação dos Poderes, todavia, já é regra em nosso país desde a Constituição de 1824. Esta foi a única Carta a prever uma quadripartição do poder, sendo que nas seguintes a teoria da tripartição, de Montesquieu, foi a adotada.

A separação dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), é fundamental para que se mantenha a organização do Estado, de forma a direcionar as atividades estatais para aquele Poder que possui competência para exercê-lo. Em síntese, ao Legislativo cabe elaborar pautas de comportamento, ou seja, as leis, enquanto ao Executivo incumbe administrar o Estado, de acordo com as leis vigentes, cabendo ao Judiciário, por fim, promover a solução dos litígios, por meio da aplicação das normas.

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É exatamente a limitação ao Poder constituinte Derivado que impede que as funções acima descritas sejam deslocadas de um Poder pra o outro. Evita-se, assim, a aparição de um “superpoder”, que viesse a encampar as funções dos demais, impondo as suas idéias e necessidades a todos.

Neste sentido, suponha-se uma emenda constitucional que transferisse ao Poder Executivo a prerrogativa de editar leis sobre a tributação de produtos a serem exportados, por exemplo, com o fito de conferir maior agilidade à produção legiferante acerca de tal matéria, aumentando a competitividade do Brasil no mercado externo. Inegavelmente é o Executivo que possui melhores condições de avaliar e regulamentar a questão da exportação de produtos brasileiros. Entretanto, tal emenda incorreria em clara afronta à separação dos Poderes, não podendo sequer ser objeto de deliberação do Congresso Nacional.

O art. 60, §4, IV, traz a última hipótese de limitação material explícita, que versa sobre a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais.

Neste sentido, cumpre ressaltar que por direitos e garantias individuais, conforme descrito no Texto Constitucional, entende-se toda aquela gama de direitos sociais, econômicos, difusos e coletivos, e não apenas aqueles que se relacionam diretamente com o indivíduo isoladamente, como quer parecer. Assim, a expressão “direitos e garantias individuais”, utilizado pelo legislador constituinte originário, apresenta-se como uma imprecisão gramatical, devendo a ela ser atribuído um sentido de “direitos e garantias fundamentais”.29

Logo, além das liberdades tradicionais, os direitos sociais, econômicos, difusos e individuais homogêneos, previstos na Lei Mãe, não poderão ser abolidos, nem sequer alterados, por via de emenda constitucional.

À guisa de exemplificação, tome-se por base uma emenda que tivesse como objeto a modificação da previsão constitucional do habeas corpus, passando-se a exigir o patrocínio de advogado para a sua impetração, como forma de diminuir o ingresso exorbitante de remédios heróicos, possibilitando maior celeridade no julgamento daqueles que efetivamente fossem impetrados. Como é defeso ao Poder Reformador empreender qualquer alteração nos direitos e garantias fundamentais, tal emenda padeceria de inconstitucionalidade, por afronta à cláusula imodificável expressa no art. 60, §4, IV.

Conclui-se, portanto, que as propostas de emenda que versarem sobre a supressão de qualquer um destes retromencionados não deverão sequer ser conhecidas pelo Congresso Nacional. Infere-se, assim, que o impedimento não é restrito à aprovação da emenda constitucional, estendendo-se à sua simples discussão, impossibilitando a tramitação desta.

3.3 Limitações Temporais

Os limites temporais que podem ser impostos ao Poder Constituinte Instituído consubstanciam-se na previsão de um interregno em que este não poderá promover alterações no texto constitucional.

Normalmente, tais restrições são impostas quando da aprovação do texto original, pelo Poder Inaugural, que determina um lapso temporal mínimo, no qual a Carta Política não será emendada.

Os limites temporais foram muito utilizados pelo Poder Constituinte da França, mormente no período anterior ao constitucionalismo moderno, com o fito de tentar fazer com que o ordenamento constitucional se solidificasse, consoante explicita Paulo Bonavides:

Não é raro deparar-se-nos um texto constitucional que limita no tempo a ação reformista, paralisando o órgão revisor até o transcurso de um certo número de anos. As Constituições francesas anteriores ao século XX apresentam com freqüência disposições desse gênero. Interditam o poder de reforma por determinado espaço de tempo, o que importa uma intangibilidade temporária da Constituição, nomeadamente com o propósito de consolidar a ordem jurídica e política recém-estabelecida, cujas instituições, ainda expostas à contestação, carecem de raiz na tradição ou de base no assentimento dos governados.30

No ordenamento constitucional pátrio, o único exemplo de limitação temporal de que se tem notícia estava inserido na Carta Magna Imperial, de 1824, que em seu art. 174 previa que apenas depois de decorridos quatro anos de sua vigência poderiam ser alteradas suas disposições.31

Não se pode olvidar que o fim colimado pelo supramencionado dispositivo era solidificar o texto imposto pela Carta do Império, impedindo que quaisquer alterações constitucionais fossem aprovadas. O momento histórico vivenciado à época justifica tal providência inserida no corpo constitucional, entretanto tal restrição meramente temporal não se amolda ao Estado Democrático de Direito, vislumbrado contemporaneamente.

Neste sentido, como não poderia deixar de ser, a Constituição atual não prevê qualquer tipo de limitação temporal à atuação do Poder Constituinte Derivado. Houve bem o Poder Constituinte Originário, pois desta maneira permitiu a busca do equilíbrio entre o texto supralegal e a realidade social cambiante, através do labor do Poder Constituinte Instituído, desde que sejam respeitados os demais limites impostos, sejam eles materiais explícitos ou implícitos, circunstanciais ou formais, pois estes já adstringem o seu campo de atuação.

Ademais, instituir restrições temporais como tentativa de perpetuar a Constituição não é uma questão que traga benefícios à sociedade, pelo contrário, normalmente tal situação gera um inconformismo social, que é normalmente o antecedente das revoluções, que vêm para instalar uma nova ordem constitucional, derrogando aquele que se pretendeu impor à população.

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Sobre o autor
Pedro Pontes de Azevêdo

Professor de Direito Civil na Universidade Federal da Paraíba. Mestre em direito pela UFPB. Doutorando em Direito pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Civil-Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVÊDO, Pedro Pontes. Limitações às emendas:: a manutenção da força normativa da constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3809, 5 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26063. Acesso em: 28 mar. 2024.

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