Resumo: Este artigo prentende fazer um breve ensaio sobre a preservação da compatibilidade do § 2º do art. 144 do Estatuto dos Militares, que restringe o casamento aos militares em curso de formação, e a Constituição da República de 1988, sob o enfoque material do princípio da igualdade e as peculiaridades que circundam a vida em caserna, seus valores, princípios e diretrizes pragmáticas, a ponto de identificar uma ideologia própria que aproxima o militar à figura do tendenztrager do direito alemão, permitindo-se, assim, que se veja, pelas lentes das instituições militares, “o outro lado da moeda” e a justificativa racional da existência dessa norma de tratamento diferenciado como medida de desigualação.
Palavras-chaves: Militar. Restrição. Temporária. Casamento. Cursos de formação. Igualdade. Tratamento diferenciado. Justificativa racional. Tendenztrager.
1. INTRODUÇÃO
Recentemente, uma série de ações de controle concentrado foi proposta pela Procuradoria-Geral da República questionando normas legais direta ou indiretamente relacionadas aos militares, entre elas a Arguição de Preceito Fundamental – ADPF nº 290 que tem tem por objetivo principal a declaração de não recepção do § 2º do art. 144 da Lei nº 6.880/1980 pela Constituição da República de 1988, cujo teor ora se transcreve:
Art. 144. O militar da ativa pode contrair matrimônio, desde que observada a legislação civil específica.
(...)
§ 2º É vedado o casamento às praças especiais, com qualquer idade, enquanto estiverem sujeitas aos regulamentos dos órgãos de formação de oficiais, de graduados e de praças, cujos requisitos para admissão exijam a condição de solteiro, salvo em casos excepcionais, a critério do Ministro da respectiva Força Armada.
Nessa ação, construiu-se a tese de que o ato impugnado “é inconstitucional por cercear a liberdade de planejamento familiar, instituindo hipótese de vedação de casamento que não possui qualquer justificativa do ponto de vista do princípio da isonomia ou da hierarquia militar”[1]. Alega-se, ainda, que a parte final do dispositivo questionado viola ao direito de igualdade, tendo em vista que “atribui ampla discricionariedade ao Ministro competente para decidir quais casos concretos não são alcançados pela norma proibitiva”[2].
Em linhas diretas, o cerne da questão jurídica posta em análise é a recepção da vedação de casamento, com qualquer idade, às praças especiais enquanto estiverem sujeitas aos regulamentos dos órgãos de formação de oficiais, de graduados ou de praças, cujos requisitos para admissão exijam a condição de solteiro, contida em dispositivo do Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880/1980, art. 144, § 2º).
Destarte, procura-se traçar uma linha de argumentação que favoreça a possibilidade de se estabelecer essa espécie de discrímen à luz da Constituição da República de 1988. Resta, então, demonstrar a justificativa racional[3] para sua incidência e que esta se harmoniza com os preceitos do sistema normativo constitucional.
Abordar-se-ãos aspectos pragmáticos da realidade da vida em caserna, sob os pilares principiológicos da hierarquia e disciplina, além de peculiaridades que circundam a formação de militares e as atribuições institucionais aos quais estão destinados constitucionalmente como membros das Forças Armadas.
Far-se-á, ainda, um breve paralelo comparativo entre o militar e a figura do tendenztrager da doutrina alemã, ante a singularidade marcante das características de suas atribuições e modo de convivência, ao ponto de conformar o perfil das instituições militares a uma organização (ou empresa) ideológica (ou de tendência), ou seja, organizações institucionalmente expressivas de uma identidade; de uma ideologia própria.
Por fim, demonstrar-se-á que, em aplicação prática do princípio da proteção da confiança, diante de todo acerto constitucional diferenciado e de todas as condições peculiares que cercam os cursos de formação de militares, não pode o Estado agir ou fomentar comportamento contrário à proteção da entidade familiar, excluindo um dos cônjuges desse convívio e, por conseguinte, de seus deveres constitucionais quanto aos filhos e dependentes (crianças e adolescentes) e de assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram.
2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE, A JUSTIFICATIVA RACIONAL PARA O DISCRÍNEM EM RELAÇÃO À RESTRIÇÃO TEMPORÁRIA DO MILITAR EM CURSO DE FORMAÇÃO E A NECESSIDADE DE ADAPTAÇÃO PARA A VIDA CASTRENSE
A igualdade entre homens é tema que vagueia mentes, enreda pensamentos, inquieta o espírito e define comportamentos ao longo de séculos. Inerente à espécie humana, a diferença sempre foi, por sua vez, fator incidente de tormentosos questionamentos jurídicos atinentes à afirmação desse tratamento isonômico, que encontra alicerce na célebre máxima extraída dos ensinamentos do filósofo grego Aristóteles: a igualdade consiste “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade” [4].
Na ocasião em que enaltecia os valores da República, o polímata Ruy Barbosa de Oliveira assevera essa epígrafe em seu discurso intitulado Oração aos Moços:
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se eqüivalessem.[5]
De tal sorte, delinear o princípio da isonomia como “regra dura e fria”, insensível à realidade e às circunstâncias situacionais, resultaria em impedimento ao legislador ou ao intérprete de contrabalancear abstratamente, no mundo jurídico, por meio de regime próprio, a(s) diferença(s) – caractere(s) – que identificam determinado grupo de pessoas (sujeitos indeterminados ou indetermináveis), coisas ou fatos a eles comuns.
Nesse contexto, insere-se o regime jurídico diferenciado que compõe o Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880/80). Não há como negar as características peculiares da vida castrense, em especial, a dedicação e sacrifício pessoal que circundam o ambiente sob as diretrizes fundantes da hierarquia e disciplina; qualidades estas, muitas vezes, desconhecidas ou mal compreendidas por aqueles que, com ela, nunca mantiveram contato algum.
A necessidade de consolidar tais princípios e a própria preparação dos iniciados para a carreira militar exigem certas renúncias. Estas se tornam ainda mais evidentes quando se atenta para a missão (finalidade) constitucional a que estão destinados os membros das Forças Armadas: à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (parte final do art. 142 da Constituição da República Federativa do Brasil), “garantes materiais da própria subsistência do Estado e da perfeita realização de seus fins” (FAGUNDES) [6].
Fator componente é o risco da atividade desempenhada por essa honrosa categoria, que estão dispostos a expor própria vida – ponto mais alto do altruísmo – em nome da preservação Pátria e dos cidadãos que nela vivem. Fato de tamanha relevância que, por si só, justifica firme controle e medidas excepcionais no preparo e treinamento dos membros das Forças Armadas.
Veja-se que não se está aqui a falar de simples profissão, mas de uma verdadeira vocação!
Consciente disso, ao instituir o regime jurídico dos militares (Lei nº 6.880/1980), o legislador ordinário previu e preservou a restrição ao casamento às praças especiais (art. 144, § 2º), mesmo depois de operar alterações e revogações de diversos dispositivos posteriores ao advento da Constituição da República de 1988[7]. Certamente, tomaram-se por consideração fatos e situações ímpares que envolvem a iniciação da vida em caserna para dar este devido tratamento legal distintivo.
Consoante explicita o Professor Emérito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a existência de um regime jurídico diferenciado, com princípios e regras próprios, é algo inerente à lei, que funciona como uma válvula de ajuste da isonomia em relação a situações qualificadas. Em letras:
O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes. Donde, a algumas são deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a outras, por abrigadas em diversa categoria, regulada por diferente plexo de obrigações e direitos.
Exemplificando, cabe observar que às sociedades comerciais quadram, por lei, prerrogativas e deveres diferentes dos que pertinem às sociedades civis; aos maiores é dispensado tratamento inequiparável àquele outorgado aos menores; aos advogados se deferem certos direitos e encargos distintos dos que calham aos economistas ou aso médicos, também diferenciados entre si no que concerne às respectivas faculdades e deveres. Aos funcionários assistem vantagens e sujeições que não são irrogáveis a quem careça desta qualidade. Entre os servidores públicos alguns desfrutam de certos benefícios que falecem a outros, dependendo, por hipótese, de serem concursados ou não. As mulheres se aposentam aos trinta anos, os homens aos trinta e cinco. Os exercentes de função gratificada de chefia percebem uma importância correspectiva, ao passo que os subalternos dela carecem. Os que cumprem certo tempo de serviço sem faltas e notações desfavoráveis são agraciados com licença-prêmio; aos restantes não se dispensa igual benefício.
Em quaisquer dos casos assinalados, a lei erigiu algo em elemento diferencial, vale dizer: apanhou, nas diversas situações qualificadas, algum ou alguns pontos de diferença a que atribuiu relevo para fins de discriminar situações, inculcando a cada qual efeitos jurídicos correlatos e, de conseguinte, desuniformes entre si[8]. (Destaques acrescidos).
Não ocioso é destacar que a Escola Normativista do Direito (ramo do Positivismo) já comungava do entendimento de que a lei detém a atribuição de equalizar – amoldar – a garantia constitucional da isonomia, por meio do estabelecimento de deveres e direitos específicos, conforme a pertinência de seus destinatários. É o que se extrai dos estudos de seu maior representante, o professor e filósofo austríaco, de descendência judaica, Hans Kelsen:
A igualdade dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica, garantida pela Constituição, não significa que aqueles devam ser tratados por forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituição, especialmente nas leis. Não pode ser uma tal igualdade aquela que se tem em vista, pois seria absurdo impor os mesmos deveres e conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos sem fazer quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de espírito e doentes mentais, homens e mulheres.[9]
No caso vertente, pode-se afirmar que a norma legal contida no § 2º do art. 144 do Estatuto dos Militares adotou dois elementos como fatores de desigualação para operar a restrição temporária ao casamento: determinado grupo de pessoas – praças especiais (i); e situação específica: enquanto estiverem sujeitas aos regulamentos dos órgãos de formação de oficiais, de graduados e de praças (ii).
Tomando por empréstimo a literalidade do § 4[10] do art. 16 da Lei nº 6.880/80, Jorge Luiz Nogueira de Abreu aponta as praças especiais como sendo “os guardas-marinha, os aspirantes a oficial e os alunos de órgãos específicos de formação de militares” [11].
Para uma melhor compreensão do que afigura essa categoria – praças especiais – para fins da referida norma legal, bastaria atribuir a identidade comum de militares em formação. Isso porque Guardas-Marinha (Marinha) e Aspirantes-a-Oficial (Exército e Aeronáutica) nada mais são do que as nomenclaturas utilizadas para aqueles que estão em curso de formação da carreira de oficial, ou seja, que aspiram tal posto.
Nessa situação, além dos estudos atinentes ao conhecimento teórico, tais militares em formação desempenham práticas de campo, exercícios, manobras e demais atividades características das instituições militares, todas voltadas a atender a destinação conferida pela Constituição da República (art. 142 – v. transcrição supra).
Quando em formação, sempre fundados nos pilares da hierarquia e disciplina, é de indispensável relevância o fortalecimento dos laços de afeição e convivência, com espírito de camaradagem, estima e confiança[12], formando a unidade necessária à conformação de verdadeiros irmãos de armas[13]. Interação[14] que se apresenta como alicerce fundamental para atuação em caso extremo, como o de guerra.
Para alcançar tais objetivos, o ingresso dos alunos dá-se ainda na juventude, em alguns casos ainda na adolescência (15 anos), a exemplo do Colégio Naval[15], e os cursos se prolongam, em média, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, passando, inclusive, por períodos de internato, longe do convívio familiar, com dedicação exclusiva e integral, tudo com a finalidade primordial de unidade; de gerar homogeneidade na identificação desse grupo de pessoas como militares.
3. A PERCEPÇÃO DAS INSTITUIÇÕES MILITARES COMO ORGANIZAÇÕES IDEOLÓGICAS
Esse e outros traços típicos inerentes às instituições militares revelam princípios, valores e condições de vida que os diferem em regras de tratamento. De modo que, com as devidas mudanças conceptivas, se se fizer um paralelo comparativo com o ordenamento jurídico e doutrina alemã, poder-se-ia enquadrar as instituições militares como uma organização (ou empresa) ideológica (ou de tendência) [16], ou seja, organizações institucionalmente expressivas de uma ideologia [17].
Muito embora essa concepção jurídica de organização ideológica ou de tendência tenha origem e seja mais comumente utilizada nas relações de trabalho, a verdade é que, principalmente na Alemanha, ela tem ganhado conceito amplo, quanto a sua aplicabilidade, em questões similares a presente, cujas controvérsias girem em torno da possibilidade de discrime justificado por uma predisposição de acerto constitucional:
a) Concepto amplio o global, según el cual serían empresas ideológicas aquellas organizaciones dirigidas al logro de fines políticos, sindicales, confesionales, caritativos, educativos, artísticos y similares que presuponen la adhesión a uma particular ideologia o concepción del mundo, genericamente llamada “tendencia”, por parte del prestador de trabajo de ella dependiente[18]. Esta definición expansiva de empresa ideológica es la recogida por el Derecho alemán al regular este tipo de organizaciones[19].
Em complemento, como bem pontuado por OTADUY GUERIN, em tais organizações, a ideologia é o seu fundamento – sua razão de ser – e em função dela fixam sua estrutura organizacional, tuteladas por normas constitucionais que dão relevância jurídica as suas finalidades institucionais:
(...) no es suficiente aducir que se persigue la consecución de um fin que el ordenamiento considera lícito. Es preciso que determinadas normas constitucionales den relevancia jurídica a la finalidad propuesta, finalidad a la que se le reconoce un papel institucional, en orden a la realización de algún aspecto del bien general de la sociedad, y por eso merecedora de una peculiar protección jurídica que se traduce em otorgar unos medios proporcionados al fin [20].
Conforme já anunciado, as finalidades conferidas constitucionalmente às Forças Armadas são destinadas ao bem geral de todos, razão pela qual lhe foi dado tratamento jurídico diferenciado (peculiar) aos seus membros no intuito de proporcionar meios adequados para a consecução institucional proposta.
Portanto, no tocante à relação de pertinência das atribuições que lhes são incumbidas e o objetivo constitucional destinado às Forças Armadas, aproximam-se os militares da figura jurídica do tendenztrager (tomador ou portador de tendência[21]) do direito alemão, conforme elucidação trazida pela assistente do Instituto Universitário de Desenvolvimento e Promoção Social da Universidade Católica Portuguesa, Raquel Tavares dos Reis[22]:
O direito alemão avançou, a este propósito, com a figura do tendenztrager ou portador de tendência para aludir ao trabalhador que exerce tarefas directamente dirigidas à realização da específica finalidade da organização, qualidade que pressupõe uma directa e imediata conexão da prestação desempenhada com o interesse particular da entidade empregadora, de modo que tal tarefa significa a própria expressão das ideias da organização.
Trata-se de funções ou tarefas que encerram directamente a tendência enquanto tal, de modo que a prestação devida não pode ser definida senão em consideração a esta última ou, como bem as descreve Blat Gimeno, de "funções ou tarefas de natureza intelectual, através das quais a organização revela ao exterior a sua própria identidade e prossegue os seus fins institucionais ideologicamente qualificados"[23] (1986: 74).
Nessa linha é que tende a Constituição da República Federativa do Brasil[24] (art. 142, §3º, inciso VIII), quando reserva aos militares regras específicas, que os fazem distintos das demais categorias de trabalhadores, deixando-lhes especificamente de aplicar, na remissão taxativa ao rol elencado no art. 7º, o dispositivo que veda a diferença por motivo de estado civil:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
(...)
§ 3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
(...)
VIII - aplica-se aos militares o disposto no art. 7º, incisos VIII, XII, XVII, XVIII, XIX e XXV e no art. 37, incisos XI, XIII, XIV e XV; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
(...)
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.
Mais que isso, de forma expressa, a Constituição da República confere poderes ao legislador ordinário para dispor sobre o ingresso nas Forças Armadas (art. 142, § 3º, X da CRFB) e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades:
X - a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
Com lastro nos fundamentos lógico-racionais acima delineados, é nesse permissivo constitucional que se concentra a consonância da restrição temporária ao casamento contida no art. 144, § 2º, da Lei nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares).
No âmbito de apreciação do Poder Judiciário, constata-se que, atento à condição singular do militar em formação e aos preceitos diferenciados que regem a vida em caserna durante esse período, sem perder de vista as disposições legais e constitucionais específicas pertinentes, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região manifestou-se favorável à restrição em função do estado civil:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIÇO MILITAR. INGRESSO. CRITÉRIO RELACIONADO AO ESTADO CIVIL DO CANDIDATO. POSSIBILIDADE. PECULIARIDADES DA VIDA FUNCIONAL DO MILITAR. PROVIMENTO.
1. Agravo de instrumento da União contra decisão que deferiu medida liminar determinando que se deixe de exigir, no Concurso de Admissão à Escola Preparatória de Cadetes do Exército, que o candidato, na data da matrícula, seja solteiro, viúvo, separado judicialmente ou divorciado e não possua dependentes nem outros encargos de família.
2. Diversamente do servidor civil, a vida funcional do militar traz ínsita em si a ocorrência de constantes transferências entre unidades militares motivadas por juízo de conveniência e oportunidade da Força Armada à qual ele é vinculado, de sorte que nada mais razoável do que estabelecer desde logo, como critério de ingresso nas fileiras do Exército, que o interessado seja solteiro, viúvo, separado judicialmente ou divorciado e não possua dependentes nem outros encargos de família.
3. A existência de dependentes ou outros encargos de família poderia ainda dificultar o atendimento a um possível chamado em caso de conflito ou emergências previstas em lei.
4. A exigência relacionada ao estado civil do candidato a ingresso nas Forças Armadas encontra respaldo no art. 142, parágrafo 3º, X, da Constituição Federal, e nos arts. 144 e 145 do Estatuto dos Militares.
5. Precedentes desta Corte Regional.
6. Agravo de instrumento provido. (PROCESSO: 00107841120104050000, AG108725/RN, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO WILDO, Segunda Turma, JULGAMENTO: 28/09/2010, PUBLICAÇÃO: DJE 07/10/2010 - Página 563)
ADMINISTRATIVO. MILITAR. CONCURSO PÚBLICO. ESTADO CIVIL. SOLTEIRO. EXIGÊNCIA. ART.142, X DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEI 6.680/80. POSSIBILIDADE.
- O art. 142, inciso X, da Constituição Federal, estabelece que a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades.
- A norma constitucional acima transcrita recepcionou a Lei nº 6.880/80, art. 144, §2º que dispõe: É vedado o casamento às praças especiais, com qualquer idade, enquanto estiverem sujeitas aos regulamentos dos órgãos de formação de oficiais, de graduados e de praças, cujos requisitos para admissão exijam a condição de solteiro, salvo em casos excepcionais, a critério do Ministro da respectiva Força Armada. A exigência determinando estado civil para ingresso no curso de formação de sargentos especialistas da Aeronáutica se mostra perfeitamente admissível e constitucional.
Apelação improvida. (PROCESSO: 200481000007652, AMS92204/CE, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL CESAR CARVALHO (CONVOCADO), Primeira Turma, JULGAMENTO: 02/02/2006, PUBLICAÇÃO: DJ 10/03/2006 - Página 878)
Em suma: além de a garantia contida no inciso XXX do art. 7º da Constituição da República não se estender aos militares, a restrição em relação ao estado civil durante os cursos de formação mostra-se compatível com a natureza e as atribuições a serem desempenhadas durante tais períodos, ante a necessidade de consolidação das tendências ideológicas que consubstanciam as Forças Armadas aos seus futuros membros.
Sobre a possiblidade de atingimento a direitos fundamentais em tais situações, pondera BARROS:
Pelo que se pode verificar, nas empresas de tendência os limites aos direitos fundamentais da pessoa são mais extensos, podendo ser afetadas não só a liberdade matrimonial, mas também a liberdade religiosa, a de opinião e a de expressão[25].
De tal modo, há de se defender a constitucionalidade (recepção) da norma alusiva à vedação temporária do casamento durante o curso de formação de militares, seja pela perspectiva de conformidade formal à Constituição da República, seja frente ao cotejo de seus valores e princípios, a favorecer harmonização com a disposição da liberdade de planejamento familiar insculpida no §7º do art. 226 da CRFB[26].
Ainda, cumpre argumentar que, em nome do princípio da proteção da confiança do administrado[27], sabendo de todas as condições peculiares que cercam os cursos de formação de militares, não pode o Estado agir ou fomentar comportamento contrário à proteção da entidade familiar, a excluir um dos cônjuges desse convívio e, por conseguinte, de seus deveres constitucionais quanto aos filhos e dependentes (crianças e adolescentes) quando existentes[28], nem, muito menos, deixar de assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram[29].
Reproduzindo as lições do doutrinador argentino Pedro José Jorge Coviello, a Professora e Procuradora do Estado de Minas Gerais[30] Raquel Melo Urbano de Carvalho assevera que
(...) a proteção da confiança legítima é o instituto de direito público, derivado dos postulados do Estado de Direito, da segurança jurídica e da equidade, a amparar quem de boa-fé acreditou na validade dos atos (de alcance particular ou geral, sejam administrativos ou legislativos), comportamentos, promessas, declarações ou informes das autoridades públicas. Além da sua face jurídica, tem-se um caráter político: assinala aos governantes que a situação dos particulares e do resto dos corpos intermediários não podem ser desconhecida ou abstraída das decisões que se adotem. É preciso que os poderes públicos tomem consciência de que sua função é visceral: estão a serviço da comunidade e sob esta luz devem tomar suas decisões no marco do exercício da prudência política e jurídica[31].
Por fim, deve-se esclarecer que a vedação ao casamento, nos ditames da norma cuja constitucionalidade ora é questionada (art. 144, § 2º, da L. 6.880/1980), é condição de preservação destinada àqueles que já se encontrem em curso de formação militar, sendo, desse modo, regra devidamente preestabelecida da qual tem ciência e adere o candidato à vida militar, da qual não se pode posteriormente eximir o cumprimento.