A introdução, no ordenamento pátrio, do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias representou um verdadeiro marco na história brasileira, demonstrando a preocupação do constituinte com a proteção de uma minoria especialmente estigmatizada no decorrer da criação do estado Brasileiro.
Com efeito, ao lado das populações indígenas, as comunidades remanescentes de quilombolas receberam um tratamento específico na Carta Constitucional, principalmente destinado a garantir direitos territoriais a tais populações, assegurando-lhes um plexo de direitos ainda mais extenso que o disposto no art. 215 da Lei Maior.
Nesse contexto, como decorrência do caráter emancipatório do aludido art. 68 da ADCT, já era previsível que a concretização de tal norma seria permeada por forte resistência de certos grupos sociais, sobretudo daqueles que tradicionalmente dominaram a distribuição fundiária no Brasil. Nesse cenário de tensão social, era de se esperar que a discussão sobre os direitos consagrados no art. 68 da ADCT teria foro nas trincheiras do Judiciário, razão pela qual se torna importante investigar aspectos processuais que possam ter relevância no deslinde de causas envolvendo a execução da política pública promovida pela citada norma constitucional, qual seja, a de permitir o reconhecimento da propriedade das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades quilombolas.
Partindo dessa premissa, o presente estudo busca discutir sobre a legitimidade “ad causam” da União nos litígios judiciais que envolvam direitos das comunidades quilombolas.
Inicialmente, cabe destacar que o regime jurídico destinado à proteção das comunidades quilombolas encontra-se atualmente alicerçado em duas normas principais, a saber: art. 68 da ADCT e Decreto nº 4.887/03.
Assim, para definir sobre o interesse da União em litígios sobre esse tema faz-se necessário analisar o contido em tais preceitos normativos.
O art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias assim dispõe:
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
No âmbito infraconstitucional, referido dispositivo foi regulamentado pelo Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que estabeleceu as principais diretrizes sobre o tema. Para os fins da presente consulta, vale transcrever os seguintes preceitos:
Art. 3º Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1º O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto.
§ 2º Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios, contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não-governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente.
§ 3º O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer interessado.
§ 4º Aautodefinição de que trata o § 1º do art. 2º deste Decreto será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do regulamento.
Art. 4º Compete à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir os direitos étnicos e territoriais dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos de sua competência legalmente fixada.
Art. 5º Compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de identificação e reconhecimento previsto neste Decreto.
Como se percebe, foi dada ao INCRA a atribuição principal de realizar o procedimento de identificação e demarcação das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombolas. Não obstante, verifica-se que compete também a outros órgãos da administração direta federal participar nas ações de regularização fundiária dessas áreas, a exemplo da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, expressamente mencionada no art. 4º, supra transcrito, a quem incumbe assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de identificação e reconhecimento previsto naquele Decreto.
Desse modo, tendo em mente que existe interesse de órgão pertencente à administração pública direta, o qual deve participar de todo o procedimento demarcatório, exsurge com clareza a legitimidade ad causamda União para intervir nas ações judiciais que versem sobre a proteção dos direitos territoriais das comunidades quilombolas.
Além disso, o processo de identificação e demarcação das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombolas tem, obviamente, o objetivo final de garantir a titulação de tais áreas àquelas comunidades, por meio da expedição de título de reconhecimento de domínio. Assim, vislumbram-se três hipóteses para essa transferência de domínio, quais sejam:
a) quando as terras ocupadas forem de propriedade do Estado, Distrito Federal ou dos Municípios, o “INCRA encaminhará os autos para os entes responsáveis pela titulação” (art. 12 do Decreto nº 4.887/03);
b) já quando as terras demarcadasincidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, “o INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a expedição do título” (art. 11 do Decreto nº 4.887/03);
c) por fim, incidindo nas terras ocupadas“título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber” (art. 13 do Decreto nº 4.887/03).
Com exceção da primeira hipótese (letra “a”), nos demais casos há efetiva participação da União no processo de transferência de domínio das áreas às comunidades quilombolas. Com efeito, o item “b” retrata as situações em que as terras ocupadas pertencem à própria União, sendo patente seu interesse em qualquer litígio ali incidente. Por sua vez, na hipótese “c”, eventual decreto expropriatório deverá ser editado pelo chefe do Poder Executivo Federal, já que apenas os entes federados possuem a chamada competência declaratória para fins de desapropriação, conforme preceitua o art. 6º do Decreto-Lei nº 3.365/1941, não podendo o INCRA, na condição de autarquia, expedir referido ato (a exceção fica por conta do previsto no art. 82,IX da Lei 10.233/01 e do art. 10 da Lei 9.074/95, que tratam, respectivamente, da competência declaratória do DNIT e da ANEEL em situações específicas, ligadas à sua área de atuação finalística).
Portanto, havendo participação direta da União na execução e conclusão do processo de titulação dessas áreas, por mais esse motivo impõe-se reconhecer o seu interesse em integrar os litígios judiciais relacionados à preservação das comunidades quilombolas.
Tal posicionamento, aliás, encontra ressonância na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, como se deflui dos arestos abaixo:
EMEN: RECURSO ESPECIAL - PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO POSSESSÓRIA AJUIZADA POR PARTICULARES CONTRA PARTICULARES - ÁREA OCUPADA POR REMANESCENTES DE COMUNIDADES DE QUILOMBOS - DISCUSSÃO ACERCA DA EXISTÊNCIA OU NÃO DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO PASSIVO ENVOLVENDO A UNIÃO - OBJETO DOS AUTOS QUE EXTRAPOLA QUESTÕES MERAMENTE ADMINISTRATIVAS (A CARGO DA FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES), ENVOLVENDO TAMBÉM A DEFESA DO PODER NORMATIVO DA UNIÃO E A SUA POSSÍVEL TITULARIDADE, TOTAL OU PARCIAL, EM RELAÇÃO AO IMÓVEL QUE CONSTITUI O OBJETO DA AÇÃO POSSESSÓRIA - INTERESSE JURÍDICO QUE FUNDAMENTA A OBRIGATORIEDADE DE CITAÇÃO DA UNIÃO COMO LITISCONSORTE PASSIVA NECESSÁRIA (ART. 47 DO CPC) - RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO PROCESSO - NECESSIDADE - RECURSO ESPECIAL PROVIDO, PARA ESTE FIM. I - Enquanto o litisconsórcio unitário cinge-se à uniformidade do conteúdo do pronunciamento jurisdicional para as partes, o litisconsórcio necessário se dá quando a lei exige, obrigatoriamente, a presença de duas ou mais pessoas, titulares da mesma relação jurídica de direito material, no pólo ativo ou passivo do processo, sob pena de nulidade e conseqüente extinção do feito sem julgamento do mérito; II - A legitimidade da UNIÃO para figurar como litisconsorte passiva necessária na ação tratada nos autos justifica-se em razão da defesa do seu poder normativo e da divergência acerca da propriedade desses imóveis ocupados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, havendo indícios nos autos de que a área em disputa, ou ao menos parte dela, seja de titularidade da recorrente; III - A UNIÃO tem interesse jurídico e deve participar da relação jurídica de direito material, independentemente da existência ou não de entidades autônomas que venha a constituir para realizar as atividades decorrentes do seu poder normativo - tal como a Fundação Cultural Palmares; IV - Recurso especial provido (RESP 200900067006, MASSAMI UYEDA, STJ - TERCEIRA TURMA, DJE DATA:29/05/2012 ..DTPB:.)
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE TERRAS OCUPADAS POR COMUNIDADES DE REMANESCENTES DE QUILOMBOS. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO. OCORRÊNCIA. CONTROLE JURISDICIONAL. POSSIBILIDADE. agravo retido. AUSÊNCIA DE RATIFICAÇÃO. NÃO CONHECIMENTO. PRELIMINARES. QUESTÕES DE ORDEM PÚBLICA. REJEIÇÃO. I - Nos termos do art. 523, § 1º, do CPC, não se conhece de agravo retido se a parte não requerer, expressamente, nas razões ou na resposta da apelação, sua apreciação pelo Tribunal, como no caso, visando rever as condições objetivas da ação. Agravo retido não conhecido. II - A todo modo, por se tratar de questões de ordem pública, que não se submetem ao fenômeno preclusivo, entendo que merecem mesmo ser rejeitadas as preliminares de ilegitimidade passiva da União, porquanto a legitimidade decorre do fato: a) de que, no processo de reconhecimento das comunidades quilombolas, há efetiva atuação de órgãos da Administração Federal; b) de que a norma que reconhece a propriedade (aquisição originária) é de nível constitucional, editada pela União, e por essa razão participa da relação jurídica de direito material, independentemente da existência de entidade pública autônoma sobre a qual recaia o dever de realizar o comando normativo; de ausência de interesse de agir e ilegitimidade ativa ad causam, uma vez que o Ministério Público Federal possui legitimidade para propor ação civil pública visando o reconhecimento de comunidades quilombolas inseridas nos rincões desse país e, de conseqüência, a demarcação e titulação das terras tradicionalmente por elas ocupadas. (AC 200943000075437, DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, TRF1 - QUINTA TURMA, e-DJF1 DATA:26/11/2012 PAGINA:103.)
ADMINISTRATIVO. PROCEDIMENTO PARA IDENTIFICAÇÃO, RECONHECIMENTO, DELIMITAÇÃO, DEMARCAÇÃO E TITULAÇÃO DAS TERRAS OCUPADAS POR REMANESCENTES DAS COMUNIDADES DE QUILOMBOS. DECRETO Nº 4.887/03. PRESUNÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE. IMPUGNAÇÃO DOS AUTORES, ORA APELADOS, QUANTO À CONDIÇÃO DE REMANESCENTES DOS QUILOMBOS. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA AUTO-INTITULAÇÃO A MACULAR O PROCESSO ADMINISTRATIVO. ERRO DE CONSENTIMENTO. 1. Deixo de conhecer do agravo retido interposto pelos autores, ora apelados, uma vez que o pedido não foi renovado nas razões de apelação. 2. Legitimidade da União para figurar no pólo passivo da presente demanda, pois o referido procedimento de regularização fundiária envolve a atuação conjunta de órgãos da Administração Direta e Indireta, além do que existe, na presente demanda, um nítido componente político-ideológico que ultrapassa os limites da ação autárquica, como sustenta o Ministério Público Federal em seu parecer de fls. 719/766. 3. Presunção de constitucionalidade do Decreto nº 4.887, de 20.11.2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT, considerando-se que a referida norma é objeto da ADI nº 3.239, proposta perante o STF, sem que tenha sido deferida, até o presente momento, medida liminar para suspender a sua eficácia. (AC 200750030002876, Desembargador Federal JOSÉ ARTHUR DINIZ BORGES, TRF2 - SÉTIMA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R - Data::28/02/2012 - Página::284/285.)
CONSTITUCIONAL - CIVIL E Processo CIVIL - ADMINISTRATIVO - REMANESCENTES DE COMUNIDADE DE QUILOMBOS - PROPRIEDADE - FORMA ORIGINÁRIA DE AQUISIÇÃO - ARTIGO 68, ADCT - CONDIÇÕES DA AÇÃO: LEGITIMIDADE ATIVA - legitimidade passiva - INTERESSE DE AGIR - REEXAME OBRIGATÓRIO - TERRAS DEVOLUTAS E TERRAS DE PARTICULAR - ORIGEM DA COMUNIDADE COMPROVADA - POSSE COMPROVADA - AÇÃO PROCEDENTE - REMESSA OFICIAL IMPROVIDA. 1. Com a exclusão dos autores do polo ativo da ação, por decisão irrecorrida (que saneou o feito), assumiu a condição de parte-autora a Associação Quilombo de Ivaporunduva, cabendo-lhe a defesa dos interesses de seus associados, então excluídos da lide. 2. As preliminares de ilegitimidade passiva de parte e de carência da ação, argüídas pela União Federal, embora repelidas em primeiro grau de jurisdição por decisão irrecorrida, deverão ser reexaminadas, por força da norma prevista no artigo 267, § 3º, do Código de Processo Civil. 3. A existência da fundação, União Cultural Palmares, dotada de personalidade jurídica, e seus objetivos, ditados pelo artigo 2º, da Lei 7.668, de 22 de agosto de 1988, não retiram da União Federal a legitimidade para figurar no polo passivo da ação, em face dos limites de atuação da fundação, que, à época do ajuizamento da ação, não estava autorizada a promover demarcação e titulação de área ocupada pelos remanescentes de comunidades de quilombos. 4. A legitimidade passiva de parte da União Federal subsiste mesmo em face da competência ampliada da Fundação Cultural Palmares, na medida em que o direito reivindicado não se limita à prática de atos de natureza administrativa, mas envolve um interesse maior, qual seja, o direito de propriedade. Preliminar de ilegitimidade rejeitada. 5. A concordância com os termos da ação, expressada pela Fundação Cultural Palmares, não afasta o interesse jurídico da autora, na medida em que sua manifestação não alcança os interesses da União Federal, que contestou o feito, pugnou pela produção de provas e interpôs recurso de apelação, sendo certo que a desistência deste não legitima o acolhimento da preliminar suscitada, com fundamento na ausência superveniente do interesse de agir, na medida em que a questão envolve um interesse maior, qual seja, a aquisição originária da propriedade do imóvel pela comunidade quilombola, e a conseqüente perda da propriedade do imóvel por parte de pessoa jurídica de direito privado. Preliminar de ausência de interesse rejeitada. (REO 00205564719944036100, JUIZ CONVOCADO HELIO NOGUEIRA, TRF3 - QUINTA TURMA, e-DJF3 Judicial 2 DATA:03/02/2009 ..FONTE_REPUBLICACAO:.)
É de se ressaltar, ainda, que mesmo quando a União não compuser inicialmente um dos polos da lide, sua participação em eventual ação judicial atinente à temática aqui tratada poderá fundar-se no permissivo contido no art. 5º da Lei 9.469/97, denominada pela doutrina de intervenção anômala[1].
Assim, é de se concluir que a União possui interesse em intervir nas ações judiciais que digam respeito à proteção e preservação das áreas ocupadas por remanescentes de comunidades quilombolas, mesmo quando referidas terras não estejam sob o domínio daquele ente federativo.
Nota
[1]Art. 5º A União poderá intervir nas causas em que figurarem, como autoras ou rés, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas federais.