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Lei 12.846/2013 – Lei “anticorrupção”

05/02/2014 às 07:10
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A lei anticorrupção trará reformulações na forma como as empresas têm conduzido suas operações no país e consagrará, ainda mais, o cânone da moralidade na Administração Pública.

Com o clamor das manifestações populares em meados de junho de 2013, publicou-se no dia 02 de agosto de 2013 a Lei 12.846/2013 – Lei Anticorrupção -, que busca responsabilizar objetivamente pessoas jurídicas, no âmbito administrativo e cível, pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira.

Ressalte-se que o diploma legal em voga só passa a vigorar 180 dias após sua publicação, ou seja, em 29 de janeiro de 2014 (art. 31).

O principal objetivo da lei é punir pessoas jurídicas envolvidas em práticas antiéticas em desfavor da Administração Pública. Até então, salvo raras exceções — como nos casos de declarações de inidoneidade ou proibições de contratação com o Poder Púbico —, somente pessoas físicas (agentes públicos e privados) poderiam ser responsabilizadas pela prática desses atos.

Um ponto importante é que, com o advento do diploma Anticorrupção, pessoas abstratas poderão sofrer punições, independentemente da identificação ou responsabilização das pessoas físicas envolvidas nessas práticas.

Assim, para exemplificar: a empresa “X” participa de um certame licitatório fraudulento, sendo contratada após se comprometer a dar parte dos lucros dessa contratação ao agente público. Antes da lei em foco, sofreriam punições apenas as pessoas físicas responsáveis por esse acordo ignóbil. A pena seria aplicada após a individualização da conduta, bem como após comprovação do dolo ou culpa grave dos envolvidos.

Essa necessidade de individualização do procedimento e prova do elemento subjetivo dificultava a punição dos envolvidos e falta de responsabilização das empresas, verdadeiras beneficiadas por esses atos, gerava na sociedade uma certa sensação de impunidade. Agora, com a entrada em vigor da Lei Anticorrupção, as pessoas físicas continuam a ser responsabilizadas, porém, conjuntamente ou não, podem sofrer penalidades as pessoas jurídicas abarcadas na prática.

A lei indica sanções administrativas e judiciais, como multa de até 20% sobre o faturamento bruto, nunca inferior ao valor da vantagem irregular obtida — ou, na impossibilidade desse cálculo, no valor de até R$ 60 milhões. Será possível até a dissolução da empresa, o perdimento de seus bens, além de outras penas já previstas na Lei de Improbidade Administrativa.

Atente-se para o fato de que essa responsabilidade é objetiva, ou seja, basta que seja verificada a existência de uma conduta e seu nexo causal com o resultado, independentemente da comprovação de dolo ou culpa.

Nos termos do parágrafo único, do art. 1º, a lei será aplicada às sociedades empresárias; às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado; a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas; a sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.

Nota-se, portanto, que a Lei Anticorrupção será aplicada às pessoas jurídicas independentemente de estarem formalmente constituídas ou não.

É importante salientar que a redação do dispositivo deixou de mencionar outras modalidades de pessoas jurídicas elencadas no art. 44, do Código Civil, não abrangendo em seu rol as organizações religiosas, os partidos políticos e as empresas individuais de responsabilidade limitada.

Em virtude do caráter sancionador da norma, entendemos não ser possível estender o rol do parágrafo único, do art. 1º, da Lei Anticorrupção, para punir outras modalidades de pessoas morais.

É possível notar, de tudo o que se expôs até o momento, que o diploma legal em voga, além de reduzir o sentimento de impunidade, como já mencionado alhures, traz mais um instrumento de consagração do cânone da moralidade, explicitado no art. 37, caput, da Constituição da República.

Outrossim, consagra ainda mais a probidade no setor público, acaba por robustecer a atenção que a iniciativa privada presta à gestão dos seus funcionários e por exigir a formulação de códigos de conduta e programas de compliance, que reforçam a ética individual e coletiva, acarretando em uma mudança da cultura empresarial do país e beneficiando empresas idôneas.

Nesse ponto, interessante é a previsão da atenuação da sanção se a empresa demonstrar a existência de controles internos, códigos de ética, mecanismos para evitar atos de improbidade, auditorias regulares e mecanismos de incentivo a denúncias (art. 7º, VIII).

É possível notar, de tudo o que se expôs até o momento, que a lei anticorrupção fortaleceu as teorias de governança em rede, que pregam a mudança dos sistemas políticos de governos unitários e hierarquicamente organizados que governam por meio da lei, da regra de ordem, para sistemas de governança organizados de forma mais horizontal e relativamente fragmentado.

A partir de agora não caberá apenas ao Estado vigiar e punir o indivíduo antiético, mas outros atores sociais foram chamados a integrar o quadro, responsabilizando indivíduos e sendo responsabilizados por eles. Nesse sentido, importante notar que

 A experiência internacional mostra que, em vez do foco na punição de poucos, as melhores estratégias de desmonte de redes de corrupção enfatizam a utilização de mecanismos que facilitam a exposição de relações de poder que estão por trás de esquemas. O acento deixa de estar na simples punição e passa a estar na transparência e na responsabilização ininterrupta: é mais barato e mais eficiente garantir que uma empresa (pública ou privada) siga regras de transparência e de responsabilização perante os sócios — que incluem a realização constante de auditorias e a existência de mecanismos internos de incentivo a denúncias — do que regulá-la apenas por meio de prisões, multas e longos e dispendiosos processos judiciais[1].

A preocupação das empresas com sua imagem também é implicação importante do diploma legal, fazendo com que se instaure uma “política de boas práticas”, que acabará por beneficiar o consumidor.

Todavia, não se pode deixar de apontar que referido diploma legal demandará dos Tribunais soluções de conflitos, que seguramente irão surgir, com dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), da Lei de Licitações (Lei 8.666/1993) e da Lei do CADE (Lei 12.529/2011).

Tampouco se pode deixar de mencionar que há pontos severamente críticos na lei, que não podem ser ignorados.

Cite-se o art. 8º, cujo texto diz que

a instauração e o julgamento de processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica cabem à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou mediante provocação, observados o contraditório e a ampla defesa.

Vê-se, assim, que o processo administrativo será decidido pela mesma autoridade que o instaurou, centralizando muitas competências nas mãos de uma única autoridade, o que já é de duvidosa constitucionalidade, frente ao princípio da ampla defesa e contraditório, mas também por se saber que essa modalidade de autoridade ocupa um cargo, em geral, de indicação política, não se garantindo imparcialidade que deveria existir no julgamento, trazendo o risco de instauração de processos para punir, privilegiar ou proteger empresas.

Nesse ponto ainda, importante destacar que não há previsão de recurso dessa decisão da autoridade máxima, o que, uma vez mais, torna imprecisa a constitucionalidade desse procedimento.

Por fim, ressalte-se que a questão das sanções também será um grande desafio, na medida em que prevê punições que podem variar de R$ 6 mil a R$ 60 milhões (art. 6º, parágrafo quarto), não havendo parâmetros objetivos para quantificar o montante de pena, tampouco para mitigar o risco de desigualdade de penas a fatos análogos, já que as instâncias municipal, estadual e federal são independentes.

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Esses são apenas alguns pontos dos quais certamente o Poder Judiciário deverá se manifestar nos próximos anos, para que a lei seja aplicada de acordo com os princípios constitucionais, explícitos e implícitos, e regras aplicáveis atualmente à Administração Pública.

Por fim, não se pode deixar de comentar acerca da previsão do “acordo de leniência” que poderá ser firmado pela autoridade máxima com pessoa jurídica responsável, desde que observados os requisitos arrolados na lei.

Esse “acordo”, que poderia soar como excrescência há algumas décadas, em que se fazia uma leitura inflexível das pedras de toque do direito administrativo (supremacia e indisponibilidade do interesse público), é visto hoje com a mais absoluta naturalidade e, mais ainda, como necessidade. Atualmente, a Administração dialógica entrou em cena para admitir o diálogo com o infrator, permitindo maior efetividade na elucidação e punição.

Nesse ponto, importante citar Thiago Marrara:

Mas – certamente perguntará um leitor – que insanidade é essa? A Administração Pública se corrompeu por completo? A indisponibilidade do interesse público, como bem querem alguns, foi realmente sepultada? Ou foi substituída por novos modismos principiológicos e, de vez, esquecida?

Nenhuma das alternativas anteriores! A cooperação com o infrator que se dá por meio da leniência é a própria concretização da supremacia do interesse público. A explicação é simples. O legislador brasileiro, assim como o europeu e o norte-americano, percebeu que as infrações se tornaram grandiosas, complexas e absurdamente nocivas. Percebeu que nem mesmo os poderes investigatórios mais agressivos às inviolabilidades constitucionais (como a busca e apreensão e as interceptações telefônicas) serão capazes de trazer aos entes públicos as provas necessárias a um processo acusatório bem-sucedido. É nesse cenário que o legislador brasileiro passou a se indagar: é mais sábio tentar punir todos e não punir ninguém ou deixar de punir um no intuito de punir alguém? Os brasileiros conhecem bem o dilema a partir do ditado popular: dois voando ou um na mão? [2]

Enfim, a despeito de qualquer consideração sobre os erros e acertos da lei, é certo que trará reformulações na forma como as empresas têm conduzido suas operações no país e consagrará, ainda mais, o cânone da moralidade na Administração Pública.


Notas

[1] PACHECO, Mariana. Lei Anticorrupção estimula redes de governança. Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-ago-15/mariana-pacheco-lei-anticorrupcao-estimula-formacao-redes-governanca. Acesso em 02/12/2013.

[2] MARRARA, Thiago. “Lei Anticorrupção permite que inimigo vire colega”. Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-nov-15/thiago-marrara-lei-anticorrupcao-permite-inimigo-vire-colega

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Sobre a autora
Caroline Stahl de Souza

Advogada. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2008). Sócia-fundadora do escritório LORENTE ADVOCACIA & CONSULTORIA, que atua na área de direito público (www.lorente.com.br). Aprovada no concurso da Procuradoria do Município de Campinas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Caroline Stahl. Lei 12.846/2013 – Lei “anticorrupção” . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3871, 5 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26610. Acesso em: 28 mar. 2024.

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