No DF, terras que não eram utilizadas passam a ser usadas por famílias que não tinham lugar para morar. Por outro lado, grande parte dos loteamentos irregulares em Brasília são de classe média-alta. Como resolver o impasse entre os loteamentos irregulares e a função social da propriedade?
Sumário:
1. A omissão de regularização fundiária por parte do Poder Público durante longo lapso temporal quando há indícios da sua ciência da ocupação irregular.
2. A (i)legitimidade da demolição de construções em situações nas quais há o compromisso de regularização fundiária da área em questão.
3. O cumprimento da função social da propriedade e o direito à moradia como aspectos norteadores do nosso ordenamento jurídico
4. A ocupação de terras públicas por particular configura mera detenção.
5. O poder-dever do Estado de fiscalização e a possibilidade de embargar e demolir construções irregulares.
As terras públicas no Distrito Federal são, muitas vezes, utilizadas por famílias carentes, que não têm condições de adquirir um imóvel. Entretanto, há muitos casos de pessoas que se aproveitam da conturbada situação fundiária da sede da Capital para auferir vantagens pecuniárias. Alguns argumentos devem ser levados em consideração para resolver o impasse estabelecido entre a função social da propriedade e os loteamentos irregulares que se espalham pelo Distrito Federal. De um lado, deve-se considerar a omissão do Poder Público durante longo tempo quando há indícios de sua ciência da ocupação irregular; também, a (i)legitimidade da demolição de construções em áreas que estão em processo de regularização; além da função social e do direito à moradia como princípios norteadores do ordenamento jurídico brasileiro. Por outro lado, deve-se analisar que a ocupação de terras públicas por particular configura mera detenção; ademais, o Estado tem o poder-dever de fiscalização e a prerrogativa de embargar e demolir construções irregulares. Esses aspectos serão melhor analisados a seguir.
É sabido que compete ao Poder Público exercer a fiscalização e regularização fundiária, conforme amplamente disposto no ordenamento normativo. Começando-se pela Constituição Federal, o art. 30, VIII, fixa a competência do Município para a promoção do adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano[1]. No que tange ao Distrito Federal, o art. 349 da Lei Orgânica do Distrito Federal preleciona ser dever do Governo do Distrito Federal intervir – diretamente e nos limites de sua competência – para estabelecer a racionalização econômica da malha fundiária[2]. Também o art. 326 de referido dispositivo dispõe ser finalidade do sistema de planejamento territorial e urbano do DF a promoção do desenvolvimento do território mediante, dentre outros, “a elaboração, acompanhamento permanente e fiscalização da execução do plano diretor de ordenamento territorial e dos planos diretores locais”[3]. (Grifou-se). Tem-se, portanto, inconteste a obrigação de acompanhamento e fiscalização da Administração, a quem incumbe o poder-dever de zelar pelo disposto no regramento.
Tendo isso por base, em casos nos quais a Administração se quedou inerte por longo espaço temporal, mais de 10 anos, por exemplo, está em boa parte configurada a omissão do Poder Público, que deveria ter se pronunciado muito anteriormente quanto à ocupação. A configuração da omissão é corroborada quando verificado que a Administração conhecia da ocupação e se absteve. Não é razoável, então, que após dez anos a Administração requeira demolir as construções, ou a retirada dos ocupantes, alegando o seu poder-dever de fiscalização. Ademais, são vidas estruturadas em dado local que estão em questão. Tratar-se-ia de avultada geração de insegurança, sem falar na violação ao direito constitucional à moradia, praticamente consolidado no local. Compartilha desse entendimento o Eminente Desembargador Sérgio Bittencourt do TJDFt, em seu voto na Apelação Cível 1999.01.1.048580-6:
De fato, dúvida não há de que foi a omissão do poder público e a adoção, por anos a fio, de políticas fundiárias equivocadas que permitiram a desordenada e caótica ocupação do solo do Distrito Federal. A retirada pura e simples dos invasores e a demolição de construções que já se tornaram antigas, não será, portanto, a solução do problema, mesmo porque é, também, ao Poder Público o dever de propiciar moradia para os seus cidadãos.
Com relação à ciência da Administração, aponta-se que não deve esta se valer do direito de permanecer silente por tanto tempo, uma vez que caracterizaria abstenção do seu exercício fiscalizatório e regulador. Nesse sentido, o seu não-pronunciamento quanto à ocupação irregular por 10 anos possibilita concluir que não haverá pronunciamento algum. Em caso semelhante a essa conjuntura julgado pelo TJDFt, indivíduo que se estabelecia em um imóvel situado em área de parcelamento urbano em processo de regularização recebeu auto de intimação demolitória após mais de 10 anos de estabelecimento no imóvel. Ademais, quando do auto de intimação demolitória, a construção já tinha três andares de construção. Importa salientar que, nesse caso, a área em questão era monitorada por satélite, o que implica na ciência da Administração. A ilustre Desembargadora Carmelita Brasil bem anotou:
Ressalto ainda, em complemento a esses dados existentes nos autos, que, procurada certa vez para esclarecer fatos relativos a uma ação em que tinha por objeto imóvel situado em Arniqueira, procuradores do Distrito Federal me informaram que aquela área está monitorada por satélite, de forma tal que é possível à Administração perceber a cada dia a movimentação de obras que se fazem no local. Ora, diante desses fatos, a omissão do Poder Público é patente. Afirma-nos o autor, fato não contestado pelo réu, que a área se encontra em vias de regularização[4].
No âmbito da questão fundiária do DF, discute-se acerca da legitimidade da ação demolitória em casos nos quais já foi iniciado o processo de regularização. A bem dizer, valores como a função social da propriedade são desqualificados quando há demolição de construções em terrenos que após breve período serão regularizados. É necessário enfatizar que o direito à moradia é de suma importância, presente na Constituição Federal – art. 6º [5] - sendo também corolário do princípio constitucional da dignidade humana. Outro preceito essencial que é desconsiderado quando da demolição de construções é a função social da propriedade – e da cidade. Esse último amplamente erigido no Estatuto da Cidade, que tem como diretriz da política urbana nacional ordenar “o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”. Por conseguinte, demolir por demolir não atende o interesse social, além de violar direitos amparados pela Carta Magna.
Consubstancia-se, portanto, ilegítima a demolição de construções em lotes que estejam prestes a obter a aludida regularização, principalmente por frustrar os anseios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do direito à moradia e da função social da propriedade.
Recentemente, tem se mostrado tendência à maior consideração da função social da propriedade e do direito à moradia. A Lei 4.996, de 19 de novembro de 2012, por exemplo, trata sobre a regularização fundiária no DF, facilitando aos ocupantes a regularização fundiária quando a ocupação é mansa e pacífica e superior a cinco anos:
Art. 2º Para fins de regularização fundiária nas cidades consolidadas, oriundas de programas de assentamento promovidos pelo Distrito Federal, fica autorizada a doação dos imóveis do Distrito Federal aos atuais ocupantes nos casos em que a ocupação for mansa e pacífica há pelo menos cinco anos e um dia na data da publicação desta Lei.
Além de atos normativos, frisam-se os Termos de Ajustamento de Conduta firmados entre o Ministério Público e outro ente, como a Terracap, por exemplo, que definem regras para a regularização de setores habitacionais no DF[6].
A função social da propriedade, além de nortear diretrizes do Estatuto da Cidade, está implícita em algumas medidas do Poder Público, como exemplo a concessão do direito de superfície, bem como o IPTU progressivo, que tem como intuito a penalização daquele que não cumpre a função social da propriedade.
Por outro lado, o art. 1.196 do Código Civil prescreve que “considera-se possuidor todo aquele, que tem de fato o exercício, pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade”. A ocupação de particular sobre bem público, no entanto, não caracteriza posse, nem aquisição de propriedade, mas mera detenção.
Assim, nos autos dos processos 2002.01.1.052508-8 e 2004.01.10054067-5, em tramitação na Justiça do Distrito Federal, discutiu-se a propriedade de terras ocupadas por condomínios irregulares. A Terracap se pronunciou no sentido de ser a legítima proprietária, e que não se admite posse sobre terras públicas. Em suas argumentações, destacou que:
“O que deve ser veementemente rechaçado é a indesejável situação do "fato consumado", onde os invasores, sabedores das dificuldades experimentadas pelos órgãos públicos para conter a ganância, a ousadia e os métodos ardilosos perpetram na ocupação do solo, ocupam determinada área, parcelam e vendem a terceiros que, posteriormente, unidos, provocam a autoridades exigindo uma solução visando à regularização da ocupação”.
O Ministério Público assim se manifestou naqueles autos:
“não restam dúvidas acerca da natureza pública do imóvel, considerando que está demonstrado nos autos o registro das desapropriações da área conhecida como "Fazenda Brejo ou Torto", a qual engloba aáreatotal do imóvel objeto da presente ação.Ou seja, a área reclamada pelos opostos trata-se de área pública, de propriedade da Terracap e, consequentemente, afasta qualquer alegação referente à existência de posse particular sobre o imóvel, considerando que não é possível posse de bem público sem a permissão expressa da Administração Pública.No caso dos autos, evidentemente que não houve tal permissão, de forma que eventual exercício de atividade sobre o imóvel deve ser entendido apenas como mera detenção, portanto, precária e impassível de proteção possessória.Consequentemente, por se tratar de ocupação irregular, verifica-se que estamos diante de esbulho, razão pela qual foi ofertada corretamente oposição pela Terracap."
Em sua decisão, o juiz acompanhou as razões expostas pelo órgão ministerial, determinando o direito à posse plena em favor da Terracap e a desocupação do local por parte dos condomínios que ali estavam, sob pena de reintegração compulsória.
Desse modo, percebe-se que, embora particulares ocupem terras públicas, o simples transcurso de tempo, ou obras realizadas no local, não tem o condão de mudar a natureza da ocupação, assegurando-se o direito do Poder Público em reaver suas terras quando não houver autorização para que particulares a utilizem.
A Administração Pública dispõe de seu poder de polícia para impor limitações aos interesses particulares. Em decorrência desse poder, ela tem a prerrogativa de proteger e fiscalizar o planejamento urbano. O Distrito Federal criou um Código de Edificações, Lei n. 2.105/1998, o qual possibilita à Administração embargar e demolir construções irregulares.
Em recente decisão, na Apelação 2011.01.1.196242-8, o TJDFT se posicionou no sentido de que a Administração pode, e deve, adotar medidas para conter obras irregulares. Tratava-se de imóvel construído no Setor Habitacional Arniqueiras, área pública irregularmente loteada, conforme o acórdão. Concluíram os julgadores, nesse caso, que:
“os atos administrativos que determinam o embargo da obra e a demolição da edificação não estão eivados de qualquer ilegalidade. A Administração Pública nada mais fez que cumprir com o seu dever de fiscalização, impedindo a continuidade e determinando a desconstituição de obra irregular em área pública.”
Diante de construções que mostrem alguma irregularidade, o Poder Público tem o poder-dever de fiscalizar, podendo, inclusive, praticar atos de demolição independentemente de provimento jurisdicional. O Código de Edificações do Distrito Federal positiva as prerrogativas da Administração Pública:
Art. 17. No exercício da vigilância do território de sua circunscrição administrativa, tem o responsável pela fiscalização poder de polícia para vistoriar, fiscalizar, notificar, autuar, embargar, interditar e demolir obras de que trata este código, e apreender materiais, equipamentos, documentos, ferramentas e quaisquer meios de produção utilizados em construções irregulares, ou que constituam prova material de irregularidade, obedecidos os trâmites estabelecidos nesta Lei.
Art. 178. A demolição total ou parcial da obra será imposta ao infrator quando se tratar de construção em desacordo com a legislação e não for passível de alteração do projeto arquitetônico para adequação à legislação vigente.
§ 1º O infrator será comunicado a efetuar a demolição no prazo de até trinta dias, exceto quando a construção ocorrer em área pública, na qual cabe ação imediata.
§ 2º Caso o infrator não proceda à demolição no prazo estipulado, esta será executada pela Administração Regional em até quinze dias, sob pena de responsabilidade.
Destaque-se que, em outros julgados[7], o TJDFT também se posicionou no sentido da legalidade dos atos da Administração que determinaram a demolição de edificações erigidas em áreas públicas irregularmente parceladas. Na Apelação Cível 2012.01.1.0356838, o relator se pronunciou no sentido de que:
“não sobejando controvérsia de que o imóvel detido está situado em área pública, o auto de demolição que lhe fora endereçado consubstancia simples exteriorização do poder de polícia inerente à administração, pois a ela está debitado o poder-dever de velar pela observância do código de posturas e regularidade das edificações erigidas em áreas urbanas, estando, inclusive, municiada com poder para embargar as obras irregulares e até mesmo demoli-las, independentemente de prévia autorização judicial.”
Portanto, os atos da Administração que visem embargar e demolir obras irregulares são legais, decorrentes do poder de polícia a ela atribuído, dotados de autoexecutoriedade.
Por todo o exposto, observa-se que há divergências quanto a quais argumentos devem prevalecer. Há decisões que defendam a função social da propriedade e o direito à moradia como parâmetros fundamentais para decidir a situação de famílias que se estabelecem em locais irregulares, além do tempo de omissão do Poder Público e a possibilidade de regularização das ocupações. Por sua vez, há também decisões no sentido de que deve prevalecer a impossibilidade de posse de bens públicos, bem como a legalidade dos atos da administração que determinam a demolição das construções irregulares. Em que pesem os argumentos contrários, é importante ressaltar a função social como aspecto norteador no que tange a problemas fundiários. Ante a inércia do Poder Público em fiscalizar, e a possibilidade de regularização das áreas ocupadas, deve-se garantir a moradia dos cidadãos, aplicando-se os princípios basilares do ordenamento jurídico.
Notas
[1] CF/88, Art. 30 - Compete ao Município: [...] VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.
[2]Art. 349. É dever do Governo do Distrito Federal intervir, diretamente e nos limites de sua competência, no regime de utilização da terra, seja para estabelecer a racionalização econômica da malha fundiária, seja para prevenir ou corrigir o uso anti-social da propriedade.
[3] Art. 326. O sistema de planejamento territorial e urbano do Distrito Federal, estruturado em órgão superior, central, executivo, setoriais e locais, tem por finalidade a promoção do desenvolvimento do território, mediante:
I - articulação e compatibilização de políticas setoriais com vistas à ordenação do território, planejamento urbano, melhoria da qualidade de vida da população e equilíbrio ecológico do Distrito Federal; II - promoção das medidas necessárias à cooperação e articulação da ação pública e privada no território do Distrito Federal e região do entorno; III - distribuição espacial adequada da população e atividades produtivas; IV - elaboração, acompanhamento permanente e fiscalização da execução do plano diretor de ordenamento territorial e dos planos diretores locais.
[4] ACP 2011.01.1.196242-8.
[5]Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[6] “Acrescento que após o início do julgamento o Distrito Federal, a Terracap, o Ministério Público e o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos firmaram o Termo de Ajustamento de Conduta nº 002/07 que define as formas e condições para regularizar ocupações de áreas no Distrito Federal, dentre elas o Setor Habitacional Vicente Pires, com a possibilidade de alienação direta a alguns ocupantes.” (Voto do Des. FERNANDO HABIBE nos autos da Apelação Cível 1999 01 1 028798-9.
[7]20110111177683APC, 201100200995AGI e 20100111094696APC.