A Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, a pretexto de modernizar o tratamento jurídico-penal em relação aos crimes de natureza sexual, promoveu profundas alterações em toda a sistemática ofertada pela legislação penal brasileira ao bem jurídico liberdade sexual.
Uma das alterações importantes se deu no artigo 225, do Código Penal, que passou a ter a seguinte redação:
“Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação pública condicionada à representação.”
A regra em questão é complementada pelo parágrafo único do artigo 225 do Código Penal que assim disciplina a matéria:
“procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.”
Dessa forma, em relação aos crimes contra a liberdade sexual, a ação penal, conforme a atual disciplina legislativa, é necessariamente pública, apenas havendo diferenciação se esta ação penal será condicionada ou incondicionada, questão em que o legislador, para definir, adotou como elemento central de construção do sistema a livre capacidade de entendimento e de disposição da vítima. Por isso tornou a ação penal em regra pública condicionada, para estabelecer a necessidade de manifestação da vítima, quando possível questionar a plenitude da liberdade motivacional da pessoa, e, em absoluta consonância com o modelo de maioridade penal brasileiro. Reservou-se a ação penal pública incondicionada quando a vítima for menor de 18 anos, assim como, também quando a vítima seja considerada vulnerável, ou seja, menor de 14 anos, o que já estaria englobado pela regra geral da menoridade de18 anos; ou pessoa que por enfermidade ou deficiência mental não tenha o necessário discernimento para a prática do ato ou que por qualquer outra causa não possa oferecer resistência.
A problemática, porém, que já tardiamente insiste em ser debatida, diz respeito à resistência encontrada para proclamar a ausência de validade da Súmula nº 608, do Supremo Tribunal Federal, a partir das anteriores referidas alterações legislativas.
A Súmula em questão tem a seguinte redação:
No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação é pública incondicionada.
Como a ação penal, na atual redação da legislação penal, é necessariamente pública incondicionada quando a vítima for menor de 18 anos ou pessoa vulnerável, a questão que suscita debate é quando ela tem 18 anos ou mais e há prática do crime com o emprego de violência real.
A problemática surge justamente porque a Súmula nº 608 apregoa que a ação penal será pública incondicionada quando houver violência real na prática delitiva, independente de qualquer outro fator, como a maioridade da vítima ou a sua capacidade de discernimento, o que estabelece um quadro de confronto com a redação do caput do artigo 225, que estabelece a condicionalidade da ação, sem ressalva com relação ao emprego de violência real, quando a vítima for maior de 18 anos e apresentar discernimento.
A pergunta evidente, portanto, é se a Súmula nº 608, do Supremo Tribunal Federal, segue aplicável após a alteração do artigo 225, promovida pela Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009.
A resposta a essa interrogação somente pode ser negativa e a insistência de alguns intérpretes em impor validade à Súmula nº 608/STF, com o devido respeito, prende-se a uma absoluta ausência de análise sistemática da questão, gerando no sistema penal um quadro de ilogicidade e claramente confrontante com a lei, o que estabelece a invasão pelo Judiciário nas atribuições reservadas ao legislativo.
Melhor explicando, a Súmula nº 608 foi concebida após a reforma penal de 1984 para interpretar o então recém editado artigo101, do Código Penal (anterior artigo 103), que trata do crime complexo e, ainda em vigor, estabelece:
Quando a lei considera como elemento ou circunstância do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação penal pública em relação àquele, desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do Ministério Público.
A manutenção do dispositivo em destaque na reforma penal de 1984, alterando apenas a sua numeração (artigo 103 para artigo 101), de forma inteligente, sem qualquer alteração na parte especial do Código, serviu a adaptá-la de forma integral às orientações pretendidas em torno da ação penal, garantindo fluidez a todo o Código, sem qualquer problemática sistêmica em torno da ação penal entre a Parte Geral e a Parte Especial, a despeito de mais de 40 anos separarem a elaboração de uma e outra. Serve para destacar, entre outros tantos pontos, a excepcionalidade do trabalho realizado pela competente Comissão de Reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984, trabalho este que ora se vê ameaçado por açodado, assistemático e atrapalhado anteprojeto em trâmite no Congresso Nacional e conhecido como “Projeto Sarney”.
A questão pontual em relação aos crimes contra a liberdade sexual é que a disciplina então existente em torno da ação penal a tornava privada, salvo se os pais não pudessem prover as despesas do processo ou o crime fosse cometido com abuso do pátrio poder ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.
O que observou o pretório Excelso, quando da edição da Súmula nº 608, é que o estupro praticado com violência real seria crime complexo, tendo entre os seus elementos de formação o crime de constrangimento ilegal (CP, art. 146), de ação penal pública incondicionada, o que faria, por incidência da regra do artigo 101, ser necessariamente pública incondicionada a ação penal em relação ao estupro com violência real.
Evidente que em seu momento a Súmula nº 608/STF teve importância para permitir a persecução criminal em hipóteses em que dificilmente ela ocorreria, pois a ação penal privada depende de forte impulso da própria vítima, o que por muitas vezes, por variadas questões, inclusive econômicas, não se consegue obter no Brasil.
Diferente é a ação penal pública, mesmo que condicionada, pois a simples manifestação inicial da vítima, de seu desejo de que os fatos sejam apurados, faz com que a persecução criminal se desenvolva independente de qualquer necessidade de participação mais ativa sua.
Pois bem, quando a lei é alterada e a ação penal para os crimes contra a liberdade sexual passa a ser necessariamente pública, a Súmula nº 608, do STF, passa a carecer de base de sustentação lógica, pois o seu referencial é o artigo 101, do Código Penal, que disciplina especificamente a hipótese do crime complexo, para estabelecer que se um dos delitos que o forma é de ação penal pública o crime complexo também o será, ainda que contenha regra específica relacionada a ele, dizendo que ação penal é privada.
A partir do momento em que a própria lei já diz que os crimes contra a liberdade sexual são de ação penal pública, não há qualquer razão para se socorrer da regra da parte geral do Código Penal, contemplada no artigo 101, o que faz prevalecer, de forma indiscutível, a redação do artigo 225 e seu parágrafo único.
A distinção entre ação penal pública condicionada e incondicionada em relação ao estupro se esvaziou por completo, pois o que motivou a afirmação da Súmula nº 608/STF, de que a ação seria pública incondicionada, foi a necessidade de se recorrer à regra do artigo 101, do Código Penal, e, por via de consequência, aplicar a ação penal do crime de constrangimento ilegal, ou seja, pública incondicionada, não por qualquer aspecto específico do crime de estupro, tanto o é que, fosse a ação penal prevista para o crime de constrangimento ilegal pública condicionada, seguramente a Súmula nº 608/STF diria que a do estupro com violência real também deveria ter esta natureza.
A partir do momento que a disciplina do artigo 225, do Código Penal, já estabelece a ação penal para o estupro como pública, não há porque buscar o auxílio da regra geral do artigo 101 que, ressalte-se, serve para tornar pública a ação penal, quando um crime complexo tem para si prevista a ação penal privada e um dos delitos que o constitui, considerado de forma isolada, é de ação penal pública, por estabelecer que deve ser então adotada a forma de ação penal para este prevista.
Sendo já pública a ação penal pela prática de estupro, não produz, por certo, mais qualquer impacto na matéria o artigo 101, do Código Penal, de sorte que não ocorre mais a remessa da disciplina da matéria da ação penal pelo crime de estupro, quando haja violência real, para o artigo 146, do Código Penal (constrangimento ilegal), o que faz desaparecer o próprio conteúdo que dava sustentação à Súmula nº 608/STF, fazendo com que a mesma se torne totalmente inaplicável.
A verdade é que a solução de adoção de ação penal pública condicionada, embora possa desagradar, em uma análise precipitada, a alguns defensores do sistema punitivo calcado nas posturas do “movimento lei e ordem” mostra-se bastante apta a dar um tratamento moderno ao tema, pois retira do estupro os riscos de fragilização da persecução criminal que ainda poderiam ocorrer no Brasil em relação à ação puramente privada, tendo em conta os dados econômico-sociais e a sua incompatibilidade com a necessidade de forte impulso pela vítima, por outro lado, reconhece a maior participação da vítima no processo, ainda que o seja para manifestar simplesmente seu não desejo de conciliação e de que se executem as etapas punitivas do sistema, o que atende aos mais modernos movimentos de política criminal, também tornando manifesta a sensibilidade legislativa com as características próprias da vítima dos delitos contra a liberdade sexual, em razão dos sofrimentos particulares que o processo criminal pode lhe gerar.
O sistema que adota a ação penal pública condicionada para os delitos contra a liberdade sexual é, portanto, bastante adequado, de maneira que sequer existe um dado retórico que possa justificar a resistência em reconhecer a perda de eficácia da Súmula nº 608/STF que, em verdade, o que faz na atualidade é confundir, gerar falsos debates e produzir uma total sensação de ausência de segurança jurídica no sistema penal brasileiro, pois permite afirmar, em ultima ratio, que se o Judiciário não gostar de uma determinada lei pode alterá-la, bastando para tanto que edite uma Súmula.