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Cidadania à luz da concepção de Hannah Arendt

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27/03/2014 às 08:44

Resumo:


  • A cidadania na Constituição Federal de 1988 é um direito fundamental, vinculada à soberania popular e à democracia, refletindo a liberdade positiva e a participação cívica nas decisões do Estado.

  • Hannah Arendt conceitua cidadania como "direito a ter direitos", ressaltando a importância da ação conjunta e do espaço público para a legitimação do poder político e a prática da liberdade.

  • Os desafios contemporâneos incluem o risco de alienação política, onde a participação cidadã é reduzida ao ato de votar, e a necessidade de resgatar espaços de diálogo e decisão coletiva para fortalecer a democracia.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5.Risco da substituição da ação pela fabricação.

Não obstante a importância da capacidade humana para a ação, entendida como o agir conjunto dos homens que se organizam no espaço público mediante uso da fala e do discurso em prol do interesse comum, por outro lado, Hannah Arendt faz ressalva esclarecendo que desde nossos primórdios até a idade moderna o poder institucionalizado busca meios para limitar o ato potencial da ação conjunta dos cidadãos.

Notadamente na condução da Política, onde essa pluralidade do “agir” é especificamente perigosa, no sentido de imprevisibilidade, como força irreversível e contingente. Assim, Hannah Arendt denuncia a conduta típica de qualquer poder instituído de tentar escapar da acidentalidade e da irresponsabilidade inerente à pluralidade de agentes(o agir conjunto dos homens).  Para tanto, promovem uma inversão de valores da sociedade mediante a substituição da ação pela fabricação; enaltecem a segunda em detrimento da primeira, tendo por escopo limitar o espaço de participação política democrática; conformar o cidadão em sua vida particular privada.

Para o contexto, aduz para Hannah Arendt[22]: “Essa tentativa de substituir a ação pela fabricação é visível em todos os argumentos contra a democracia, os quais, por mais consistentes e razoáveis que sejam, sempre se transformam em argumentos contra os elementos essenciais da política”.

E mais a frente a Autora[23] complementa seu raciocínio esclarecendo que a estratégia de qualquer poder instituído se concentra na alienação dos homens mediante a eliminação do espaço público;  restringir ao máximo a participação dos homens nas questões comuns a todos; em ocultar a política[24], conforme segue:

“(...) Consequentemente, a tentativa de eliminar essa pluralidade equivale sempre à supressão do próprio domínio público. A mais óbvia salvaguarda contra os perigos da pluralidade é a monarquia, ou o governo de um só homem, em suas muitas variedades, desde a franca tirania de um contra todos até o despotismo benévolo e aquelas formas de democracia nas quais a maioria constitui um corpo coletivo, de sorte que o povo passa a ser ‘muitos em um’ e arvora-se em monarca”. (...)

Mas todas as tiranias têm em comum o banimento dos cidadãos do domínio público e a insistência em que devem dedicar-se aos seus assuntos privados, enquanto só o governante deve cuidar dos assuntos públicos’.

É certo que isso equivalia a promover a indústria privada e a iniciativa privada, mas os cidadãos não podiam ver nessa política outra coisa senão a tentativa de privá-los do tempo necessário à participação nas questões comuns a todos”.

Apoiando-nos na conceituação de Darcy Azambuja[25] , ele esclarece os nuances que o poder político pode adotar com relação à democracia do ponto de vista do interesse público, no sentido de que:

“O poder político é essencialmente uma vontade. (...) podemos dizer que, nas democracias, ele é a vontade da maioria para realizar o bem público. Nas democracias clássicas essa vontade é a que os governantes, escolhidos pelo povo, realizam, de acordo com a Constituição, o que eles próprios entendem por bem público. Nas democracias contemporâneas é a de que os governantes, eleitos pelo povo, realizam o que o próprio povo entender ser bem público”. 

Assim, a substituição da ação pela fabricação e a consequente supressão doespaço público, em maior ou menor grau, sempre é promovida pelo Poder político instituído e tem por finalidade esvaziar a democracia participativa, desviar da atenção dos cidadãos seu Direito de participar das decisões políticas do Estado e de reivindicar direitos Constitucionais conformadores do pacto social.    

E Hannah Arendt[26] reconhece o sucesso da teoria política dominante(calcada na economia capitalista) em implementar a transformação da ação em uma modalidade de fabricação, com a utilização da categoria de meios e fins.

Donde conclui que a lógica da modernidade acabou por confundir estas atividades fundamentais(trabalho e obra), já que a partir do estágio da automação das máquinas, a fabricação de objetos passa a ser o fim para os quais os instrumentos e ferramentas são projetados (não mais para atenuar o esforço do trabalho; e dar relativa durabilidade e estabilidade para o mundo humano).

Como retratado em clássica obra cinematográfica de Charlie Chaplin[27], “Tempos Modernos”, na sociedade moderna capitalista os objetos passam a ser (re)produzidos em escala industrial e devem ser consumidos de forma compulsiva e progressiva pela sociedade. Sociedade em que o acúmulo de bens e riquezas acaba por submeter os homens fisicamente a um “ritmo” de produção crescente, repetitivo e alienante, que acaba por se constituir em um fim em si mesmo.   

Assim, a partir da modernidade pode-se dizer que o Homem relegou a ação(o “agir”), no sentido Arendtiano, ou, o seu direito de participação política nas decisões e nos desígnios do Estado a um segundo plano. E teve como consequência a transformação de cidadãos em uma massa de consumidores, cujo fim último de sua existência é a conveniência de consumir avidamente bens descartáveis, em um processo de trabalho e de consumo crescente e alienante.     

Portanto, neste sentido, chama a atenção Adriano Correia [28] para o fato de que:“Isso, significa, antes de tudo, considerar as implicações das transformações operadas no domínio político e da vitória do animal laborans, da conversão do trabalhador em modelo humano, para a compreensão da vida humana e para o domínio político”.

E Hannah Arendt[29] adverte que:

 “o resultado é aquilo que eufemisticamente é chamado de cultura de massas; e o seu arraigado problema é uma infelicidade universal, devida, de uma lado, ao problemático equilíbrio entre o trabalho e o consumo e, de outro, à persistente demanda do animal laborans de obtenção de uma felicidade que só pode ser alcançada quando os processos vitais de exaustão e de regeneração, de dor e de alijamento da dor atingem um perfeito equilíbrio.

(...)

O perigo é que tal sociedade, deslumbrada pela abundância de sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento de um processo interminável, já não seria capaz de reconhecer a sua própria futilidade – a futilidade de uma vida que ‘não se fixa nem se realiza em assunto algum que seja permanente, que continue a existir depois de terminado(seu) trabalho”.

Donde a supremacia do animal laborans, para Adriano Correia[30] :  “traduz o apequenamento da estatura e dos horizontes do homem moderno, para quem a felicidade se mostra como saciedade, e não como grandeza ou perfeição. O triunfo do ‘princípio da felicidade’ e a consequente glorificação da vida se mostram como antípodas do princípio de iniciar, do princípio da liberdade de que fala Arendt”.

Ou seja, a acumulação de riquezas e a ascensão material da sociedade verificada notadamente após a revolução industrial (capitalismo), teve o condão de inverter valores na era moderna com relação às atividades fundamentais da ação, obra e trabalho, acabando por consagrar uma filosofia imediatista e superficial, restrita a considerar a felicidade como processo crescente de consumo de bens(úteis ou não), trazendo consigo a alienação dos cidadãos, convertido em uma sociedade de massas.

E a sociedade de massas, devidamente cevada pela prodigalidade da abundância de bens e do poder de seu consumo, proporcionados pelo sistema capitalista, acomoda-se no espaço privado de seus lares felizes ou não, alienando-se com relação às suas responsabilidades como cidadão; co-partícipe na formação da vontade dos processos de decisão do Estado e do destino da sociedade.      


5.   A Cidadania como Direito a ter direitos

Celso Lafer aduz com convicção -após mencionar o ponto de partida para a reflexão de Hannah Arendt sobre a isonomia como critério de organização do estado-nação, diante do estudo que aquela empreendeu sobre a situação dos apátridas(ela própria refugiada) no pós segunda guerra- que a Autora conclui que a teoria dos direitos humanos permite a construção da igualdade e pressupõe a cidadania como “direito a ter direitos”. 

Donde Celso Lafer[31] esclarece a posição citando a Autora, que:

“Não é verdade que ‘todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos’, como afirma o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU, de 1948, na esteira da Declaração da Virgínia de 1776(artigo 1º), ou da Declaração Francesa de 1789(art. 1º). Nós não nascemos iguais: nós nos tornamos iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais. A igualdade não é um dado – ela não é physis, nem resulta de um absoluto transcendente externo à comunidade política. Ela é um construído, elaborado convencionalmente pela ação conjunta dos homens através da comunidade política. Daí a indissolubilidade da relação entre o direito individual do cidadão de autodeterminar-se politicamente, em conjunto com os seus concidadãos, através do exercício de seus direitos políticos, e o direito da comunidade de autodeterminar-se, construindo convencionalmente a igualdade”.

Na mesma toada, reafirma Celso Lafer[32] o sentido Arendtiano conferido à cidadania, de que:

 “A reflexão arendtiana, no entanto, vai mais além. O que ela afirma é que os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas como um fato e meio, mas sim como um princípio, pois a privação da cidadania afeta substantivamente a condição humana, uma vez que o ser humano privado de suas qualidade acidentais – seu estatuto político- vê-se privado de sua substância, vale dizer: tornado pura substancia, perde a qualidade substancial, que é de ser tratado pelo outros como um semelhante. 

Hannah Arendt fundamenta o seu ponto de vista sobre os direitos humanos como invenção que exige a cidadania através de uma distinção ontológica que diferencia a esfera do privado da espera do público. Para ela, a condição básica da ação e do discurso, em contraste com o labor e trabalho, é o mundo comum da pluralidade humana. Esta tem uma caraterística ontológica dupla: a igualdade e a diferença. Se os homens não fossem iguais, não poderiam entender-se. Por outro lado, se não fossem diferentes não precisariam nem da palavra, nem da ação para se fazerem entender. (...)

É com base nesta dupla caraterística da pluralidade que ela insere a diferença na esfera do privado e a igualdade na esfera do público”. 

Onde, na esfera da relação humana privada (propriedade privada), prevalece o princípio da regra da diferença, permitindo a ampla diversidade e sendo valorizada a especificidade de cada indivíduo. E na esfera do domínio público, relacionado ao mundo que compartilhamos com todos, deve prevalecer o princípio da igualdade, a fim de viabilizar a democracia.    

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Portanto, a igualdade resulta de uma “ação” ou construção humana; os homens institucionalizam a igualdade, a fim de equalizar a natural desigualdade entre eles. Assim, o ausente do espaço público acaba por perder o acesso à igualdade. E uma vez restrito ao espaço privado, sem o exercício da cidadania, está fadado a perder direitos, já que os direitos dependem da pluralidade humana para seu reconhecimento mútuo.

E observa mais uma vez Celso Lafer[33], para realçar a vulnerabilidade da cidadania, caso tolhido o acesso do homem ao espaço público, citando passagem de Hannah Arendt, em sua na obra “As Origens do Totalitarismo”:“para o ser humano que perdeu o seu lugar na comunidade, a condição política na luta do seu tempo e a personalidade legal que transforma num todo consistente as suas ações e uma parte de seu destino, restam apenas aquelas qualidades que geralmente só se podem expressar no âmbito da vida privada ...”

Donde o mesmo intérprete[34]da obra de Hannah Arendt complementa a fim de esclarecer a importância da intersubjetividade gerada pelo espaço público como elemento catalisador da Cidadania: 

“O espaço público de uma comunidade política, para Hannah Arendt, resulta da ação de seus membros. Estes não são sujeitos mas cidadãos e as leis que eles criam não são para serem obedecidas apenas como os meios devem obedecer aos fins na atividade de fabricação, mas sobretudo apoiadas. É através do apoio que se leva adiante a iniciativa de agir em conjunto. Neste sentido, para voltar à discussão de Passérin d’Entréves com Hannah Arendt, o poder conferido pelo Direito não é propriedade de um indivíduo, mas algo que lhe é coletivamente conferido pelo apoio dos demais membros de uma comunidade”. 

E acrescenta o citado Maurizio Passerin d´Entréves[35]que:

“O espaço da aparência deve ser continuamente recriado por ação, sua existência é garantida quando os atores se reúnem com a finalidade de discutir e deliberar sobre assuntos de interesse público, e desaparece no momento que essas atividades cessam. É sempre um espaço potencial que encontra sua realização nas ações e discursos de pessoas que se uniram para realizar algum projeto comum. Ele pode surgir de repente, como no caso das revoluções, ou pode desenvolver-se lentamente dos esforços para mudar alguma parte específica da legislação ou política. Historicamente, tem sido recriado sempre que os espaços públicos de ação e deliberação foram criados, a partir de reuniões da Câmara Municipal de conselhos de trabalhadores, de manifestações e sit-ins para lutas por justiça e direitos iguais”.

Ou seja, o efetivo exercício da cidadania só é possível através da manutenção e ampliação dos espaços públicos, do fortalecimento de canais de livre comunicação na sociedade para a ampla troca de opiniões, debates e ideias, sem intermediação do poder institucionalizado, a fim de gerar maior participação cívica no seio na sociedade, voltada para a defesa de seus interesses.


Conclusão

Dessarte, conclui-se que a cidadania entendida como o “direito a ter direitos” no contexto da obra de Hannah Arendt significa um consenso mínimo para reconhecer previamente ao homem um estatuto de cidadania (uma certidão de nascimento política) a fim de possibilitar seu acesso ao espaço público de um Estado juridicamente organizado, constituído dentro do princípio da legalidade e da igualdade, com respeito aos demais direitos e garantias fundamentais, notadamente o direito de participar das decisões políticas.

Por corolário, o exercício da cidadania em uma democracia nos dia de hoje vai além dos direitos políticos de sufrágio, encampa ademais a possibilidade de os cidadãos se mobilizarem livremente e demonstrar no espaço público seu inconformismo com a aprovação de leis ou decisões governamentais que tolham direitos ou imponham obrigações consideradas injustas à sociedade e, por consequência, poder para influenciar nas decisões políticas do Governo e de seus representantes eleitos.

Importante resgatar o espaço público Arendtianocomo forma de ampliar os canais de comunicação da sociedade para maior participação política, fomentar a discussão, os debates e troca de opiniões entre os cidadãos sobre assuntos de interesse público, vez que a era moderna consagra uma filosofia imediatista e superficial, restringindo o cotidiano do indivíduo a um processo crescente de consumo de bens (úteis ou não), trazendo consigo a alienação.

A sociedade de massas em que nos transformamos vem se acomodando no espaço privadode sua casa e do trabalho, alienando-se com relação às suas responsabilidades na formação da vontade dos processos de decisão, de participaçãoe de controle do Estado e, por consequência, do destino da sociedade.        

Faz-se imprescindível que asociedade retome algum protagonismono processo político, que os cidadãos se associem, se organizem com espírito cívico, vez que o funcionamento do Estado democrático só se legitima quandoefetivamente submetido à vontade popular.

Com relação à Constituição de 1988, vislumbra-se que ostentamos arcabouço normativo apto a legitimar uma democracia participativa, vez que a cidadania se liga ao conceito de soberania popular, bem comoao exercíciode direitos políticos, com o conceito de dignidade da pessoa humana, com os objetivos da educação e com o regime democrático.

Resgatar estes valores axiológicos consagrados no pacto social celebrado entre o Estado democrático e a sociedade, a fim de restabelecer que o poder político está consubstanciado no agir conjunto dos cidadãos ao expressar sua liberdade de associação, opinião e debates no espaço público, notadamente para participar das decisões de Governo e de fiscalizá-lo, em prol dos interesses da sociedade.

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Sobre o autor
Caio Sperandeo de Macedo

Advogado, Consultor e Professor de Direito Constitucional do curso de Direito da Faculdades Metropolitanas Unidas(FMU/SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Caio Sperandeo. Cidadania à luz da concepção de Hannah Arendt. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3921, 27 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27206. Acesso em: 22 dez. 2024.

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