Resumo: O presente trabalho versa acerca da iniciativa do juiz no campo probatório, cujo objeto de estudo foi delimitado ao âmbito do processo civil de conhecimento. Com o reconhecimento da visão publicista do processo que apregoa o interesse público existente em qualquer processo, tornou-se incompatível a figura inerte do juiz no processo, surgindo, então, a necessidade de o juiz desempenhar um papel ativo, sobretudo na instrução da causa, em razão do dever de o Estado-juiz agir em defesa do interesse público. Esse incremento dos poderes instrutórios do juiz é aqui analisado sob o enfoque dos institutos fundamentais do processo, do direito à prova em seus diferentes aspectos e, ainda, em confronto com os princípios dispositivo, da imparcialidade e da igualdade, já que estes guardam estreita relação com a iniciativa probatória oficial. A pesquisa foi desenvolvida por meio da exposição dos pensamentos de renomados doutrinadores brasileiros acerca do assunto, dando-se ênfase às divergências daí decorrentes, a fim de fomentar, ainda mais, o grande debate que existe sobre a matéria. Os resultados obtidos foram provenientes da análise crítica do pensamento doutrinário. A visão publicista do processo e o reconhecimento da natureza pública do direito à prova legitimam o aumento dos poderes instrutórios do juiz. A desconfiança com a qual alguns ainda tratam dos poderes instrutórios do juiz não se sustenta, vez que o próprio ordenamento jurídico impõe limites à atuação do juiz no campo probatório, sendo o principal deles a obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais. Os poderes instrutórios do juiz constitui um dos caminhos para o alcance de uma prestação jurisdicional justa, na medida que assegura a vontade concreta da lei na solução da crise do direito material.
Palavras-chave: Poderes instrutórios - Ativismo judicial – Prova – Juiz – Iniciativa probatória
Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 INSTITUTOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO. 2.1 JURISDIÇÃO. 2.2 AÇÃO. 2.3 PROCESSO. 3 A PROVA NO PROCESSO CIVIL. 3.1 NOÇÕES GERAIS. 3.1.1 Conceito. 3.1.2 Natureza Jurídica. 3.1.3 Destinatário. 3.1.4 Distribuição do ônus da Prova. 4 PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ. 4.1 EVOLUÇÃO DOS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ. 4.2 PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ E ÔNUS DA PROVA. 4.3 PRECLUSÃO JUDICIAL. 4.3.1 Conceito. 4.3.2 Natureza Jurídica. 4.3.3 Espécies. 4.3.4 Preclusão e Poderes Instrutórios do Juiz. 4.4 VERDADE REAL E VERDADE FORMAL. 4.5 LIMITES AOS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ. 5 PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ EM CONFRONTO COM ALGUNS PRINCÍPIOS PROCESSUAIS. 5.1 PRINCÍPIO DISPOSITIVO. 5.2 PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE. 5.3 PRINCÍPIO DA IGUALDADE DAS PARTES. 6 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Com a superação da visão privatista do processo que apregoava que este tinha por fim a tutela dos direitos subjetivos, ganhou força a visão publicista do processo, hoje já amplamente reconhecida, a qual sustenta que o interesse público, existente em qualquer processo, deve prevalecer em relação ao interesse das partes.
O incremento dos poderes instrutórios do juiz é decorrente dessa concepção publicista do processo, em que não mais se admite a figura do juiz como mero espectador das partes na formação do conjunto probatório, ante a necessidade de o Estado-juiz atuar na defesa do interesse público. Daí se vê que essa nova realidade não tem por escopo beneficiar a pessoa do juiz, mas sim toda a sociedade.
Em virtude disso, surgiu a necessidade de se analisar esse novo papel que o juiz passou a desempenhar no processo, o que acarretou acalorados debates no meio jurídico e, por conseguinte, diferentes correntes doutrinárias acerca do assunto.
A despeito de atualmente existirem vários estudos acerca do tema, a relevância do presente trabalho consiste em manter acesa a sempre salutar e imprescindível discussão sobre a iniciativa probatória do juiz que, não se pode negar, está diretamente atrelada ao dever do Estado-juiz de solucionar a crise de direito material de forma justa e efetiva.
Imperioso consignar que o objeto deste trabalho foi delimitado para análise dos poderes do juiz especificamente no campo probatório, não sendo, portanto, aqui abordados os outros poderes conferidos ao julgador.
Além disso, foi necessário limitar o estudo ao âmbito do processo de conhecimento, ainda assim sem a pretensão de esgotar o assunto, em virtude de sua complexidade e extensão.
A abordagem dos institutos fundamentais do processo objetivará demonstrar que, com o desenvolvimento da ciência processual, não mais se admite a análise de tais institutos sob o prisma privatista, mas sim sob o prisma publicista, cujo escopo é tutela do interesse da coletividade.
Na sequência, serão abordadas as principais questões que envolvem o direito probatório de acordo com o entendimento doutrinário, sobretudo no que toca ao ônus da prova e sua relação com a iniciativa probatória oficial.
A partir daí será adentrada a matéria concernente aos poderes instrutórios do juiz e os seus naturais desdobramentos.
Serão apontadas as divergências doutrinárias atinentes à interpretação do artigo 130, do Código de Processo Civil vigente, que versa sobre os poderes instrutórios do juiz, para que se tenha conhecimento dos entendimentos de alguns renomados doutrinadores brasileiros sobre o assunto.
O fortalecimento do juiz no campo probatório gerou considerável preocupação para os juristas quanto ao cometimento de eventuais arbitrariedades por parte do magistrado. Em virtude disso, como nenhum poder é absoluto, serão apresentados os limites estabelecidos pela doutrina nacional aos poderes instrutório do juiz, a fim de fomentar ainda mais o debate sobre o assunto.
Ademais, tendo em vista que o ativismo judicial na fase probatória guarda estreita relação com os princípios dispositivo, da imparcialidade e da igualdade das partes, serão apresentados os pontos de colisão decorrentes dos diferentes posicionamentos doutrinários acerca do assunto, a fim de contribuir para a identificação do ponto de equilíbrio que permitirá que a atuação do magistrado se dê em consonância com os aludidos princípios.
2 INSTITUTOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO
2.1 JURISDIÇÃO
Nos tempos primitivos a solução dos conflitos era buscada por meio da justiça pelas próprias mãos, a chamada de autotela, em que prevalecia a vontade do mais forte que, por vezes, não se coadunava com a verdadeira justiça.[1]
Surgiu então a necessidade de o Estado impor – se sobre os particulares, substituindo – os em suas vontades, para o fim de apresentar a solução imparcial do conflito mediante o devido processo legal.
Nota-se e aí o aparecimento da jurisdição, que na definição de Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco consiste:
(..) ao mesmo tempo em poder, função e atividade. Como poder, é a manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Com função, expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo. E como atividade ela é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete.[2]
Já para Humberto Theodoro Junior jurisdição “é a função do Estado de declarar e realizar, de forma prática, a vontade da lei diante de uma situação jurídica controvertida.”[3]
E, ainda, José Frederico Marques define jurisdição como “função que o Estado exerce para compor processualmente conflitos litigiosos, dando a cada um o que é seu segundo o direito objetivo”.[4]
Há de se ressaltar que atualmente somente em pouquíssimos casos a lei autoriza a justiça privada, ou seja, a defesa dos direitos pelas próprias mãos. O exercício da autotutela é considerado crime, conforme se depreende do artigo 345, do Código de Processo Civil, que versa acerca do exercício arbitrário das próprias razões.
A jurisdição tem como importante característica a inércia, devendo, portanto, ser provocada para que possa atuar.
O escopo jurídico da jurisdição consiste em assegurar que as normas do direito substancial, contidas no ordenamento jurídico, sejam efetivamente cumpridas no caso concreto. [5]
A jurisdição, todavia, não se limita aos aspectos jurídicos. A pacificação dos conflitos obtida pela imposição soberana da vontade do Estado revela a vontade da sociedade em ver a paz e a ordem social restabelecida, restando aí evidente o objetivo social conquistado por meio da jurisdição.
Afirmam Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel que:
a pacificação é o escopo magno da jurisdição e, por consequência, de todo o sistema processual (uma vez que todo ele pode ser definido como a disciplina jurídica da jurisdição e seu exercício). É um escopo social, uma vez que se relaciona com o resultado do exercício da jurisdição perante a sociedade e sobre a vida gregária dos seus membros e felicidade pessoal de cada um.[6]
José Roberto dos Santos Bedaque aponta três correntes relativas ao escopo da jurisdição: a primeira entende que a jurisdição visa à tutela de direitos subjetivos; a segunda afirma que a jurisdição possui dois escopos, sendo o imediato que consiste na realização de interesses individuais ou coletivos, e o mediato que concerne à atuação da vontade da lei; e, por fim, a que predomina, a chamada de corrente objetiva apregoa que o escopo da atividade jurisdicional é a atuação da vontade da lei, seja para afirmá-la, seja para torná-la efetiva. [7]
Sobreleva notar que a corrente objetiva representa a visão publicista da atividade jurisdicional, sendo a que melhor representa os anseios da moderna ciência processual.
2.2 AÇÃO
Tendo o Estado reservado para si o exercício da função jurisdicional, cabe – lhe solucionar os conflitos surgidos na sociedade. Em contrapartida, cabe ao titular da pretensão resistida provocar a atuação da jurisdição para atuação no caso concreto, vez que, como já visto em tópico anterior, a jurisdição é inerte.
Esta provocação do titular da pretensão resistida é denominada ação que consiste no “direito ao exercício da atividade jurisdicional (ou o poder de exigir esse exercício). Mediante o exercício da ação provoca – se a jurisdição, que por sua vez se exerce através daquele complexo de atos que é o processo.”[8]
Após longo debate doutrinário, reconheceu – se a autonomia do direito de ação em relação ao direito subjetivo material. [9]
O instituto da ação é um tema que causa grande polêmica na doutrina, sendo várias as teorias que procuram explicar a natureza desse direito, as quais podem ser agrupadas em três grandes correntes: teoria concreta, teoria abstrata e teoria de Liebman.
Segundo os concretistas, a ação seria um direito público e concreto, a qual somente existiria se a sentença fosse favorável ao titular do direito subjetivo pretendido.
Já para os abstratistas, a ação é a garantia de acesso ao órgão jurisdicional, a qual não está vinculada ao direito material pretendido. Assim, existe ação mesmo nos casos em que a sentença nega a pretensão do autor.
Quanto à teoria de Liebman, segundo tal autor, a ação corresponde ao mesmo tempo direito subjetivo instrumental e poder, os quais estão conexos a uma pretensão material. Para essa teoria, cumpre o juiz sua função jurisdicional quando profere uma sentença de mérito, seja ela favorável ou não à pretensão invocada. Essa teoria dá destaque às condições da ação (possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade ad causam), as quais conectam a ação com o direito material.
Pondera Bedaque que a ação sempre foi analisada sob o ângulo do sujeito que provoca a atividade jurisdicional, o que acarretou uma visão exageradamente privatista do direito processual, deixando de lado o aspecto público que envolve tal instituto.[10]
No mesmo sentido, afirma Arruda Alvim:
O que interessa primordialmente é estudar a ação e construir sua teoria tendo em vista sua finalidade, sempre em função do interesse público, e não focá – la unilateralmente, só da perspectiva do autor. Esta finalidade é o acionar da jurisdição, para a aplicação da lei. Esta aplicação da lei, obviamente, mesmo no caso do efetivo exercício de ação improcedente, terá sido feita, pois se terá dado razão ao réu, e não ao autor.[11]
Relembra, por fim, o aludido doutrinador que a ação é um instituto que pertence ao ramo do direito público, assim asseverando:
(...) lembremos que a ação está situada no campo do direito público e não no direito privado, como normalmente ocorre com o direito material (Direito Civil ou Comercial), e também que é por meio dela que se fazem valer normas de direito material público. A ação está sempre e necessariamente, por definição, na órbita do direito público, dado que é ao Estado que cabe – e em regra, só a ele – a distribuição da Justiça, por meio da prestação jurisdicional.[12]
Como se vê, a ação passou a ser estudada não só sob o prisma daquele que provoca a atividade jurisdicional, mas também quanto à sua finalidade. Esse novo enfoque dado ao estudo da ação foi o fator primordial para o reconhecimento da função pública exercida por tal instituto, cujo escopo maior é a pacificação social que decorre da escorreita aplicação da lei.
2.3 PROCESSO
Na lição de Cândido Rangel Dinamarco, “segundo a dogmática jurídica, processo é um método de trabalho referente ao exercício da jurisdição pelo juiz e dos poderes inerentes à ação e defesa, pelos sujeitos envolvidos no conflito.”[13]
Não se pode confundir processo com procedimento, já que este representa o mero aspecto formal daquele. O processo se caracteriza, essencialmente, por sua finalidade de exercício do poder. O procedimento, por sua vez, é a exteriorização de atos que se sucedem.[14]
Dentre as várias teorias que surgiram a respeito da natureza jurídica do processo, as principais são: a) contrato; b) quase-contrato; c) relação jurídica processual; d) situação jurídica; e) procedimento informado pelo contraditório.[15]
Afirma Bedaque que, a despeito das críticas de Goldschmidt, a maioria dos processualistas modernos aderiu à teoria da relação jurídica processual.[16]
Essa teoria, desenvolvida por Bulow, se baseia na ideia de que:
(...)é inegável que o Estado e as partes estão, no processo, interligados por uma série muito grande e significativa de liames jurídicos, sendo titulares de situações jurídicas em virtude das quais se exige de cada um deles a prática de certos atos do procedimento ou lhes permite o ordenamento jurídico essa prática; e a relação jurídica é exatamente o nexo que liga dois ou mais sujeitos, atribuindo – lhes poderes, direitos, faculdades, e os correspondentes deveres, obrigações, sujeições, ônus.[17]
Não obstante ser aceita pela doutrina brasileira, a teoria da relação jurídica processual não ficou isenta de críticas. Cândido Rangel Dinamarco afirma que há uma deficiência na construção de tal teoria, já que esta não explicou como o processo pode ser somente uma relação processual sem conter em seu cerne também um procedimento, concluindo que:
Ela teve o mérito de suplantar a arcaica visão do processo como pura sequência de atos – ou seja, como mero procedimento, sem cogitações de um específico vínculo de direito entre seus sujeitos – mas por sua vez acabou sendo suplantada pela percepção de que procedimento e relação processual coexistem no conceito e na realidade do processo, sem que este pudesse ser o que é se lhe faltasse um desses dois elementos.”[18]
Ao contrário do mencionado autor que, a despeito da crítica, enaltece a inserção da relação processual no conceito de processo, Elio Fazzalari repudiou tal inserção e propôs que o processo seja considerado um procedimento realizado em contraditório, no qual existe uma abertura à participação.[19]
Entrementes, como bem afirma Cândido Rangel Dimarco, a teoria proposta por Elio Fazzalari e a teoria da relação processual não são excludentes, ao contrário, são complementares, consistindo em “dois aspectos de uma realidade só.”
A relação jurídica processual se distingue da relação material por três aspectos: a) por seus sujeitos (autor, réu e Estado-juiz); b) por seu objeto (a prestação jurisdicional); c) por seus pressupostos (os pressupostos processuais), os quais demonstram a autonomia da relação jurídica processual. [20]
O reconhecimento do Estado-juiz como um dos sujeito da relação processual, responsável pelo exercício da jurisdição a quem as partes se subordinam, evidencia o caráter público do processo.
Afirma Bedaque que foi superada a visão privatista de que o processo tem por fim a tutela dos direitos subjetivos, tendo em vista que, conforme apregoa a moderna ciência processual, o interesse público na correta atuação da lei deve prevalecer sobre o interesse particular.[21]
Reforçando a visão publicista do processo, Cândido Rangel Dinamarco assevera que:
(...) o caráter público do processo hoje prepondera acentuadamente, favorecido pelo vento dos princípios constitucionais do Estado social intervencionista e pelo apuro técnico das instituições processuais. Chega a ser admirável até que no curto período de apenas um século de ciência tenha sido possível passar do intenso privatismo inerente ao estágio de sincretismo tradicional, ao elevado grau de publicismo que agora se vê na disciplina e na ciência do processo.[22]
Acrescenta, ainda, o mencionado autor:
A descoberta e exame dos princípios e garantias constitucionais do processo, mais a sensibilidade para os graves problemas sociais e econômicos que com ele se envolvem têm permitido enquadrar a ciência processual num plano político suficientemente expressivo para destacar a grande gama de interesses públicos e perseguidos através dele (...) o processo é um instrumento para o exercício do poder e que este deve ser exercido, ainda quando sob o estímulo de interesses individuais, sempre com vistas a elevados objetivos sociais e políticos que transcendem o âmbito finito destes.[23]
Nota-se aí que não só as partes têm interesse no resultado do processo, mas também o Estado-juiz, vez que cabe a este assegurar a correta aplicação da lei no caso concreto para a justa solução do litígio.
O interesse do Estado-juiz no resultado do processo justifica a iniciativa probatória do magistrado em busca do esclarecimento dos fatos, posto que, ao contrário das partes, que agem segundo seus próprios interesses, o Estado- juiz age em defesa do interesse público que há em qualquer processo.