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A descriminalização do aborto na proposta de reforma do Código Penal

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04/04/2014 às 09:33

Resumo:


  • A proposta de reforma do Código Penal visa modernizar a legislação penal, unificar leis esparsas e estudar a compatibilidade dos tipos penais com a Constituição de 1988.

  • A discussão sobre a descriminalização do aborto proposta no Projeto de Lei do Senado Nº 236 de 2012 aborda a possibilidade da interrupção da gravidez até a 12ª semana, por vontade da gestante e atestada por médico ou psicólogo.

  • O Conselho Federal de Medicina se posicionou a favor da descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, destacando a importância da autonomia da mulher e do médico em casos excepcionais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A visão médica sobre o tema, que entende que o aborto deve ser visto como questão de saúde pública em virtude do crescimento do número de mortes e de complicações médicas por práticas abortivas clandestinas, não leva em consideração aspectos de ordem ética e moral.

Sumário:1. INTRODUÇÃO. 2. TENTATIVAS DE REFORMA. 3. O ATUAL PROJETO DE REFORMA. 4. OS OBJETIVOS DA PROPOSTA. 5. A MEDICINA LEGAL. 6. CONSIDERAÇÕES MÉDICAS SOBRE O ABORTO. 7. CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS SOBRE O ABORTO. 8. O ABORTO E A NOVA PROPOSTA DO CÓDIGO PENAL. 8.1 O POSICIONAMENTO MÉDICO. 8.2 QUESTÕES POLÍTICO SOCIAIS. 8.3 A PROVA DO CRIME. 9. CONCLUSÃO. 10.  REFERÊNCIAS.


1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo analisar a descriminalização do aborto proposta no Projeto de Lei do Senado Nº 236 de 2012, que trata da reforma do Código Penal. Mais especificamente, trataremos da descrição trazida no artigo 128, inciso IV, que prevê a possibilidade de interrupção da gravidez por vontade da gestante, até a 12ª semana, desde que atestada por médico ou psicólogo.

A abordagem de um único aspecto de uma proposta de reforma, ainda que ela não venha a lograr êxito, ou cujo item seja vetado ou alterado, não perde sua validade com o passar do tempo - não se trata de tema datado - visto que a sua simples sugestão revela os anseios sociais acerca do tema em momento específico da história. 

O Direito Penal tem como missão a proteção dos bens jurídicos tidos como valiosos para a sociedade em uma dada época. É ele quem seleciona os comportamentos considerados graves ao corpo social, descrevendo tipos e cominando as respectivas sanções. Assim, quando surgem novos aspectos como a previsão de outras possibilidades de aborto, é porque a própria coletividade, em virtude das intensas mudanças sofridas em seu cotidiano, precisa de soluções diferentes das que atualmente estão dispostas.

Assim, na tentativa de fomentar discussões mais profundas acerca do aborto, abordaremos itens como a confecção do projeto de lei da reforma do código penal, seus objetivos e seu desenvolvimento; o trabalho da medicina legal e quais suas impressões sobre o tema; alguns aspectos importantes sobre o aborto e a análise jurídica da questão à luz da Constituição Federal.


2. TENTATIVAS DE REFORMA

Desde a década de 1960, a reforma do Código Penal é tema de propostas no Congresso Nacional. Em 1963, o professor Nelson Hungria, por solicitação do governo federal, apresentou anteprojeto de reforma, amplamente discutido por meio de conferências, debates, estudos realizados pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, entidades de ensino do Direito, entre outros. 

Em 21 de outubro de 1969, o texto do Projeto de Código Penal foi convertido em lei pelo Decreto-Lei nº 1.004, o qual determinava em seu artigo 407 que o novo código entraria em vigor em 1º de janeiro de 1970. Entretanto, sob o governo do então presidente Emílio Médici, achou-se conveniente a entrada simultânea em vigor do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal – os dois últimos tinham seus anteprojetos em elaboração naquele período.

Dessa forma, a entrada em vigor do Código de 1969 foi sendo postergada, enquanto surgiam novos dispositivos os quais alteravam as leis penais e processuais então vigentes. Por fim, em 1978, o presidente Ernesto Geisel encaminhou projeto de lei para revogar o Código de 1969, transformado na Lei nº 6.578 de 11 de outubro de 1978, que revogou o código e as leis que o haviam alterado.[1]

Apenas a Parte Geral do Código Penal de 1940 sofreu significativas alterações ao longo do tempo, duas delas limitando-se à disciplina das sanções – Leis 6.416/1977 e 9.714/1998. Já em 1984, foi instituída uma nova Parte Geral, por meio da Lei 7.209 daquele ano, que permanece até os dias de hoje.


3. O ATUAL PROJETO DE REFORMA

Em 10 (dez) de agosto de 2011, foi aprovada pelo Senado Federal a Comissão de Juristas para a elaboração de Anteprojeto do Código Penal. Presidida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Langaro Dipp, em sua primeira reunião ocorrida em 18 (dezoito) de outubro de 2011, foi escolhido como Relator Geral dos trabalhos o Procurador Regional da República da Terceira Região Luiz Carlos dos Santos Gonçalves.

De acordo com o Relatório Final, assinado pelos membros da comissão em 18 de junho de 2012 e apresentado ao então presidente do Senado José Sarney, até aquela data haviam sido realizadas 24 (vinte e quatro) reuniões - todas reduzidas a atas - além de audiências públicas e seminários com o fito de discutir a proposta com a comunidade acadêmica, jurídica e com representantes da sociedade civil.

Uma das ferramentas utilizadas para ampliar a participação popular foi o “Alô Senado”, espaço reservado na página do Senado Federal na internet, para receber sugestões e críticas. As propostas foram agrupadas por temas, servindo como base para o conhecimento dos assuntos considerados mais relevantes para a população em geral. A presidência e a relatoria da comissão também receberam proposições formuladas por entidades comunitárias e outros grupos representativos da sociedade.

A comissão foi dividida em três subcomissões, uma responsável pela parte geral, outra pela parte especial e a terceira pela legislação extravagante. Cada uma apresentava suas propostas nas reuniões conjuntas permitindo acréscimos e supressões aos textos aprovados através do voto dos membros.

De acordo com o Requerimento nº 756 do Senado, de 2011, que deu origem à comissão, a reforma teria como meta uma releitura do Código Penal a partir das novas perspectivas surgidas após a outorga da atual Constituição Federal, em virtude da dinamicidade dos fatos sociais. Foi destacada a grande quantidade de leis esparsas exatamente criadas para acompanhar tais mudanças, o que dificulta uma sistematização e até o amplo conhecimento dos tipos penais e sanções existentes.

Em julho de 2012, o anteprojeto foi transformado no Projeto de Lei do Senado PLS Nº 236 de 20012 e submetido à Comissão Temporária designada pelo presidente da casa para analisá-lo. Foi estabelecido calendário para sua tramitação que atualmente está na fase da recepção de emendas.


4. OS OBJETIVOS DA PROPOSTA

Os mais de 70 (setenta) anos do código vigente (criado em 1940) proporcionaram um excesso de legislação extravagante para torná-lo mais atual. Todo esse aparato legal, se reunido, geraria um enorme código, visto que existem hoje mais de cento e vinte leis com dispositivos de ordem penal. A Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente (Lei 9.605/93), por exemplo, possui 28 (vinte e oito) artigos abordando apenas a forma de sua própria aplicação. Dessa desmesura, surgem disparidades como tipos penais que protegem bens jurídicos idênticos, ou extremamente semelhantes, mas cujas sanções são diversas.

“A Comissão de Reforma aceitou, portanto, as seguintes tarefas: a) modernizar o Código Penal; b) unificar a legislação penal esparsa; c) estudar a compatibilidade dos tipos penais hoje existentes com a Constituição de 1988, descriminalizando condutas e, se necessário, prevendo novas figuras típicas; d) tornar proporcionais as penas dos diversos crimes, a partir de sua gravidade relativa; e) buscar formas alternativas, não prisionais, de sanção penal”.[2]

Ainda segundo o Relatório Final do Anteprojeto, os crimes descritos tanto nas leis extravagantes como no código atual foram analisados sob três enfoques: se os tipos devem permanecer, ou seja, se ainda são relevantes; se existem normas semelhantes entre si, mas distribuídas esparsamente; se as sanções culminadas são proporcionais à gravidade da infração.

O Plano de Trabalho da Comissão seguiu critérios tais como: a adequação das normas penais aos preceitos constitucionais - visto que o atual código antecedeu a Carta Magna em 48 (quarenta e oito) anos - e às convenções e tratados internacionais que lhe são posteriores; a proporcionalidade da reação punitiva por parte do Estado; a manutenção ou criação de tipos que permaneceram ou surgiram como relevantes para a sociedade atual; a criminalização de fatos não suficientemente tratados nos outros ramos do Direito; entre outros.

“Foi aprovada pela Comissão a seguinte diretriz, constante do Plano de Trabalho: ‘Fazer a Parte Especial o centro do sistema penal, reduzindo o peso da legislação especial extravagante’. Isso significa que a Comissão de Reforma trabalhou para tornar o Código Penal o centro do ordenamento jurídico-penal. Esse modelo otimiza o controle sobre a expansão desordenada do direito penal, assim como facilita o conhecimento do universo penal em vigor, tanto para seus operadores como para a sociedade como um todo”.[3]


5. A MEDICINA LEGAL

É inegável a necessidade da interdisciplinaridade, do diálogo entre as diversas áreas do conhecimento para atender às demandas humanas. Dessa forma, o Direito não prescinde da Medicina, assim como das outras ciências, para atingir seu objetivo, qual seja o da aplicação justa das normas do ordenamento jurídico aos casos concretos que se lhe apresentam.

Compreende-se a Medicina Legal como “a ciência de aplicação dos conhecimentos médico-biológicos aos interesses do Direito constituído, do Direito constituendo e à fiscalização do exercício médico-profissional” (MARANHÃO, 2000). Deve-se entender como constituído o Direito posto, já existente; e constituendo, o Direito que está sendo elaborado, como no caso da proposta de código ora analisada. “Nos dias atuais estamos presenciando uma reforma dos Códigos e em várias instâncias a colaboração médica na tarefa de rever os diplomas legais tem se feito presente e eficiente.” (Idem, pág. 25).[4]

A partir desse conceito, observa-se o caráter médico, jurídico e social dessa ciência. No caso do aborto, o aspecto médico caracteriza-se na questão do procedimento em si, do aspecto psicológico da genitora; juridicamente teremos implicações criminais ou não, a depender das circunstâncias de fato ocorridas; socialmente observamos questão extremamente polêmica quanto às perspectivas ética, moral e religiosa.

A autoridade judiciária, em vários momentos, necessita de exames especializados que lhe servirão de fundamento para comprovar a ocorrência de fato. Nesse instante entra em cena a figura do perito, responsável por esclarecer questões concernentes à sua área de atuação específica. A partir de sua análise - a perícia - o especialista produzirá um documento, que pode ser um atestado, laudo ou parecer.

Existem os peritos oficiais - aqueles que pertencem ao quadro de estabelecimentos oficiais especializados - cuja atividade principal é a de realizar perícia; os peritos “louvados” ou “nomeados”, não oficiais, chamados quando da inexistência de serviço de perícia próprio, ou da necessidade de opinião científica mais elevada; além dos assistentes técnicos indicados pelas partes para acompanhar a perícia oficial.[5]

Esses profissionais têm seu trabalho controlado pelos órgãos de fiscalização: o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina. Criados pelo Decreto-lei 7.955, de 13 de setembro de 1945, e regulamentados pela Lei 3.268 de 1957, os conselhos supervisionam, julgam e disciplinam a classe médica, primando pela correta conduta laboral, especialmente orientados pelo Código de Ética Médica e o Código de Processo Ético Profissional.

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6. CONSIDERAÇÕES MÉDICAS SOBRE O ABORTO

Entende-se como aborto a interrupção da gestação em quaisquer de suas fases com a consequente morte do feto. O chamado ciclo gravídico tem início com a recepção do óvulo fecundado pelo útero e seu término dá-se com a expulsão do feto. No momento em que há descontinuidade de tal ciclo, configura-se então o aborto. Em havendo continuidade no processo, com o parto do feto começa o período conhecido como puerpério, que se estende até a completa involução do útero, ou seja, ao retorno das condições físicas e psíquicas do período anterior à gravidez (MARANHÃO, 2000).

No início, a gravidez apresenta sintomas não muito seguros, por conta de sua subjetividade, muitas vezes com características repassadas folcloricamente pelo senso comum. Por conta disso, para a medicina legal tais manifestações como os enjoos, o excesso de apetite, as náuseas matinais, o olfato aguçado, entre outros, não têm grande relevância para o diagnóstico da gestação.

Existem sinais clínicos, também não muito precisos, que devem ser observados no início da gestação: a amenorréia - falha no ciclo menstrual; modificações do volume uterino - que podem ocorrer por aumento de peso ou questões hormonais; mudanças de coloração – mamilos, face, linha branca – que segue do umbigo à região púbica; e aumento do volume das mamas.

Os sinais objetivos, aqueles que garantem certeza ao diagnóstico de gravidez, só podem ser analisados tardiamente, ou por impossibilidade física em realizá-lo ou em virtude do risco que certos exames oferecem à formação inicial do feto. São eles: verificação dos batimentos cardíacos do feto; movimentos fetais passivos – que são provocados pelo médico através da compressão do abdome da gestante; movimentos fetais ativos – quando o feto se movimenta sozinho, a partir do quarto mês e meio aproximadamente; verificação do feto por radiografia e ultrassonografia – cuja realização é recomendada também após o quarto me e meio de gravidez.

Em muitas situações, especialmente quando envolvidas demandas legais, o diagnóstico do estado gestacional deve ser feito apoiando-se nos sinais acima referidos, buscando sempre os métodos que ofereçam segurança. O médico deve ter ciência da possibilidade de simulação (fingimento) ou dissimulação (ocultação) por parte da mãe, principalmente em casos de aborto, violência sexual, investigação de paternidade etc. Além disso, são observados casos de gravidez ignorada pela gestante, geralmente mais raros em virtude do grau de conhecimento e da diversidade de informações veiculadas; e de gravidez imaginária – em que os sintomas aparecem, mas não há gravidez: “ocorre em personalidades histéricas, carentes de afeto e com disposição mitômana”.[6]


7. CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS SOBRE O ABORTO

De acordo com o artigo 2º do capítulo I (da Personalidade e da Capacidade) do Código Civil brasileiro, o nascimento com vida configura o início da personalidade civil da pessoa, resguardando-se os direitos do nascituro desde a sua concepção. “O Direito ampara a vida humana desde a concepção. Com a formação do ovo, depois embrião e feto, começa a tutela, a proteção e as sanções da norma penal” (SANTOS, TEIXEIRA, 1998).

Dessa forma, atualmente o aborto é considerado crime em todas as suas formas, embora não seja punível em virtude de determinadas circunstâncias. Assim dentre os abortos intencionais - aqueles que de fato interessam ao meio jurídico ao contrário dos patológicos ou espontâneos e acidentais - existem dois grupos: puníveis (arts. 124, 125 e 126 do Código Penal - CP) e não puníveis (art. 128, I e II - CP).

Dentre os casos em que inexiste punibilidade, considera-se aborto terapêutico aquele determinado no art. 128, I do CP, em que há risco de vida para a gestante; já no inciso II do referido artigo temos o chamado aborto sentimental, quando a gravidez resulta de estupro e o aborto é consentido pela gestante ou representante, se ela é incapaz.

Quanto aos abortos puníveis, devem ser verificadas duas questões: quem praticou o ato e se ele foi autorizado ou não pela gestante. O art. 124 descreve o crime quando praticado pela mãe ou consentido por ela; o art. 125, quando provocado por outrem sem consentimento; e o art. 126 quando provocado por terceiro e consentido. O artigo 127 informa a forma qualificada do aborto, quando a conduta prevista nos arts. 125 e 126 promove lesão corporal grave (aumento de um terço da pena) ou morte (em que as penas são duplicadas).

Existem formas de aborto ainda consideradas criminosas no país, mas cuja discussão por vezes vem à tona no sentido de sua descriminização, são os abortos controvertidos: aborto eugênico – a gravidez seria interrompida por ser o feto portador de anomalia que comprometeria sua saúde, mas não sua vida; aborto eutanásico – neste caso há comprometimento da sobrevida, como no caso dos anencéfalos[7]; aborto econômico - usado para promoção de controle de natalidade, foi permitido na Rússia de 1920 a 1936, mas revogado por dele terem advindo sérias doenças às mães. 


8. O ABORTO E A NOVA PROPOSTA DO CÓDIGO PENAL

Como anteriormente informado, a Proposta do Código Penal continua na fase de debates e recebimento de possíveis emendas, permanecendo em discussão na casa responsável por sua iniciativa, o Senado Federal. Em seu bojo, o Projeto de Lei nº 236 de 2012 mantém a prática de aborto como criminosa - com a sanção de privação de liberdade - mas o artigo 128, traz nova redação:

Art. 128. Não há crime de aborto:I – se houver risco à vida ou à saúde da gestante;II – se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego nãoconsentido de técnica de reprodução assistida;III – se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos atestado por dois médicos; ouIV – se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade.Parágrafo único. Nos casos dos incisos II e III e da segunda parte do inciso I deste artigo, o aborto deve ser precedido de consentimento da gestante, ou, quando menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro.[8]

Merece destaque a inovação quanto à descriminalização do aborto de anencéfalos[9] e de fetos padecentes de grave enfermidade, que caracterizariam os citados “aborto eutanásico” e “eugênico”, respectivamente. No entanto, o que nos move na realização da presente análise é o acréscimo proposto no inciso IV, que prevê a permissão do aborto, até a décima segunda semana da gestação, por impossibilidade psicológica da mulher, constatada por médico ou psicólogo e consentido por ela.

Trata-se da criação de uma excludente de ilicitude, visto que, segundo a redação do projeto “não há crime de aborto” quanto ao dispositivo ora analisado. No atual código, toda forma de aborto é criminosa embora não seja punível nos casos previstos no art. 128, I e II.

Vale fazer a distinção entre ilicitude e culpabilidade. Na primeira, temos o encaixe da conduta praticada no tipo definido como crime em lei. Quando analisamos a ilicitude é porque o fato é necessariamente típico, pois se não o fosse, já excluiríamos a possibilidade de tratar-se de crime. Na segunda, temos um juízo de reprovação e censura quanto à conduta já constatada criminosa, ou seja, trata-se apenas da verificação de que o agente deve ou não responder pelo crime que cometeu.

Entende-se como fato típico aquele fato que se amolda plenamente ao modelo descrito na lei penal, devendo apresentar os elementos que obrigatoriamente o caracterizam: a existência de conduta dolosa ou culposa; a tipicidade - subsunção da conduta à lei penal; o resultado – consequência da conduta; e o nexo causal – relação entre a conduta e o resultado, se este ocorreu por causa daquela. 

É o legislador quem exerce a chamada “função seletiva do tipo”: escolhe dentre as ações humanas aquelas que representam risco à ordem pública e à paz social. Dessa forma, não basta a criação do tipo incriminador para que se considere uma conduta criminosa, ela deve colocar em perigo valores considerados como fundamentais para a sociedade[10].

Dessa forma percebe-se que quando da criação do atual código penal em 1940, de acordo com os valores da época, as únicas formas de aborto admitidas pelo corpo social eram aquelas que proporcionavam risco de morte à gestante ou a resultantes do crime de estupro. Hoje, em função da emancipação feminina tanto em relação à vida profissional como à amorosa, sua independência financeira, moral, legal e psicológica quanto ao homem, vê-se a necessidade de se discutir a propriedade e a autoridade feminina sobre o próprio corpo.

8.1 O POSICIONAMENTO MÉDICO

Em março do presente ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) pronunciou-se a favor da possibilidade de interrupção da gravidez pela mulher até o terceiro mês, defendendo a ampliação das situações em que tal prática poderia se tratada como excepcional. Os Conselhos Regionais de Medicina dos vinte e sete estados do país e o Conselho Federal votaram majoritariamente a favor da descriminalização nos quatro casos apontados na proposta de código, elencados nos quatro incisos de seu artigo 128, anteriormente descritos.

O documento com o posicionamento dos médicos foi confeccionado durante o 1º encontro Nacional dos Conselhos de Medicina 2013, realizado de 6 a 8 de março em Belém, no Pará, e enviado à comissão especial do Senado que analisa a proposta. O próprio Senado pediu ao Conselho Federal opinião sobre a proposta. De acordo com matéria publicada no portal de notícias do site Terra, em 21 de março de 2013, foram analisados os aspectos sociais, jurídicos e éticos do tema, e os conselhos não se mostraram a favor do aborto, mas “à autonomia da mulher e do médico em casos de exceção”, segundo comunicado emitido pelo conselho.[11]

A matéria destaca ainda que, conforme informado pelo CFM, a prática ilegal de aborto representa grave impacto no índice de mortalidade materna no país. Tais procedimentos podem gerar ainda complicações severas, aparecendo como a “terceira causa de ocupação de leitos obstétricos”. Assim a saúde pública fica comprometida em função de procedimentos realizados em clínicas clandestinas ou por pessoas despreparadas (Idem).

O entendimento dos médicos não é novo. Em março de 1985, em reunião plenária do Conselho Regional de Medicina CRM de São Paulo, dirigida pelo então presidente da entidade, Dr. Fernando Leite de Carvalho e Silva, o CRM propôs a revisão da legislação penal acerca do aborto, devendo, ao lado da permissão de aborto quando havendo risco à vida da mãe, existir a sua liberação também em casos de risco de saúde para a gestante durante o parto. Também já defendiam o aborto eugenístico, em caso de risco de má formação fetal que pudesse comprometer a saúde da criança (TEIXEIRA, SANTOS, 1998, p. 115).

É importe ratificar que a tomada de posição da classe médica, além de caracterizar uma faculdade inerente ao regime democrático, intensifica o diálogo acerca do tema, fazendo com que os cidadãos, as entidades representativas e o governo analisem soluções para a questão das conseqüências nocivas do aborto clandestino, nitidamente sociais. A Sociedade Brasileira de Bioética SBB, em nota publicada em seu site oficial, destaca que o aborto no Brasil é um problema de saúde e não criminal:

Em consequência, a Diretoria da SBB entende que a prisão de mulheres que realizam o aborto não é medida adequada para proteger o feto, pois, além de não inibir a sua ocorrência, estigmatiza e torna as mulheres de baixa renda mais vulneráveis. Isso porque essas mulheres são as únicas submetidas ao sistema repressivo penal, no caso do enquadramento do aborto como crime, o que acaba por impeli-las à prática do aborto inseguro, acarretando sérios agravos à saúde, inclusive a sua morte.[12]

O crime de aborto é difícil de ser provado. Como observado quando discutimos a perícia médica, primeiro há de verificar-se a existência da gravidez através dos métodos que dão certeza, exatidão ao diagnóstico. Sem a comprovação da preexistência da gravidez não há justa causa para endossar a ação penal. Segundo, o médico pode atestar a ocorrência do aborto, mas afirmar se ele ocorreu de forma criminosa, se foi provocado, é extremamente temeroso.

8.2 QUESTÕES POLÍTICO SOCIAIS

Além disso, percebe-se que, de fato, a lei vigente não se impõe de forma satisfatória. A vida do feto não está sendo protegida, uma vez que não há punição adequada nem às mulheres, cuja pena as torna reféns do preconceito e não têm caráter didático; nem aos médicos, dada a dificuldade em se provar o crime. Muitas vezes, os médicos figuram como heróis salvando as gestantes que iniciaram o aborto em suas casas, e em virtude das complicações do procedimento, vão aos hospitais para finalizar o aborto. O próprio serviço de saúde, sucateado, abarrotado de pacientes, não tem condições de analisar os casos de aborto, e denunciá-los. Assim, as estatísticas, já alarmantes, ainda não condizem com a realidade.

Entendemos a gravidade das conseqüências da clandestinidade, no entanto, por mais que se enfoque a questão do ponto de vista prático, como uma política de saúde pública, não se pode deixar de lado as implicações éticas e morais acerca do tema. A Constituição Federal em seu art. 5º garante a todos, inclusive a estrangeiros que aqui vivem, “a inviolabilidade do direito à vida”. Ratificando essa abrangência, nosso código civil também determina o resguardo dos direitos do nascituro desde a concepção.  Nesse sentido, quando falamos em aborto estamos diante de dois bens jurídicos importantes: o direito à vida do nascituro, e a integridade física e psicológica da mulher.

A aprovação de um projeto de código é realizada por maioria simples ou relativa no Congresso e em um único turno de discussão e votação. Já a Constituição deve ser alterada através de emenda, com a aprovação de três quintos dos membros da Câmara de Deputados e do Senado Federal, sendo discutida e votada em cada casa, em dois turnos. Assim, o projeto de código, que necessita de requisitos menos rígidos para a sua aprovação, no entanto, estaria modificando um bem jurídico protegido constitucionalmente: o direito à vida.

Lembramos que a reforma do Código Penal tem sido analisada com mais afinco acerca de dois anos com a intenção de que seja aprovada ainda em 2013. Seria tempo suficiente para chegar a um consenso sobre tantas questões? Isso porque estamos discorrendo acerca de um único ponto, qual seja, o aborto.

Não por questões religiosas, visto que estamos em um estado laico, mas havemos de convir que se aceitarmos a retirada do feto por vontade da gestante, ainda que com a anuência médica ou psicológica, estamos interferindo em uma vida futura que não nos pertence. Devemos atentar para um princípio que permeia do Direito Penal, o da “alteridade ou transcendentalidade” que:

(...) proíbe a incriminação de atitude meramente subjetiva do agente e que, por essa razão, revela-se incapaz de lesionar o bem jurídico. O fato típico pressupõe um comportamento que transcenda a esfera individual do autor e seja capaz de atingir o interesse do outro (altero).[13]

Ou seja, não se trata de fazer apenas um mal a si mesmo ou algo que seria condenado ética e moralmente. O Direito Penal tutela o interesse de terceiros, não intervindo em comportamentos que lesionem o próprio autor, como no caso da autolesão, quando não há intenção de prejudicar outrem. Assim, se o direito do nascituro deve ser resguardado não há que se falar em vontade, quando se trata do aborto.

8.3 A PROVA DO CRIME

Um outro problema a ser apontado é justamente em relação à constatação por médico ou psicólogo da impossibilidade de continuidade da gravidez.  O texto diz “quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade”.[14] Ora, percebemos aí certa incoerência visto que médicos não podem assinar laudos psicológicos, exceto se tratar-se psiquiatra, o que poderia ser corrigido para não dar vazão a interpretações errôneas.

Além disso, devemos questionar qual fundamento teórico daria suporte ao laudo do psicólogo. Partindo da idéia de que a mulher descobrisse sua gravidez extremamente cedo, e por sua vontade quisesse praticar o aborto, ela só teria menos de doze semanas, ou seja, cerca de três meses, para ser acompanhada pelo profissional para que ele fosse capaz de dar seu parecer.

Outro ponto: o psicólogo ou médico discordaria da gestante? Ela entende que não tem condições de continuar a gravidez, mas o especialista afirma que ela tem. De qualquer modo, ela poderia buscar meios próprios para impedir a gestação, entrando no âmbito da clandestinidade. Além do mais, em um país marcado pela corrupção, pessoas abastadas financeiramente poderiam comprar seus laudos, como já vemos, especialmente na Justiça do Trabalho, em relação aos atestados médicos.

Todas essas possibilidades nos levam a crer que as alterações propostas podem gerar insegurança. Os debates devem ser os mais abrangentes possíveis, e pelo tempo que for necessário, porque as implicações são inúmeras. De outro modo, estaríamos legalizando o aborto pura e simplesmente, contrariando princípios constitucionais.

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Sobre a autora
Jennifer Mendes Lemos

Coordenadora Jurídica da Procuradoria da República no Ceará Formada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará - UFC Especialista em Assessoria de Comunicação pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR Cursando o 4º Semestre de Direito na Faculdade de Ensino e Cultura do Ceará - FAECE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEMOS, Jennifer Mendes. A descriminalização do aborto na proposta de reforma do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3929, 4 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27412. Acesso em: 25 dez. 2024.

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