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Uniões estáveis concomitantes: a poliafetividade à luz da Constituição Federal de 1988

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04/05/2014 às 15:15
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O artigo busca analisar a validade jurídica de uniões estáveis plúrimas no direito brasileiro, propondo-se à releitura do conceito de família à luz do direito constitucional.

Resumo: O presente artigo busca analisar a validade jurídica de uniões estáveis plúrimas no direito brasileiro, propondo-se à releitura do conceito de família à luz do direito constitucional.

Palavras-chave: Direito de família. Uniões estáveis concomitantes. Poliafetividade. Princípio da monogamia e caráter plural da família. Dignidade e liberdade da pessoa humana.


1.  Introdução

Com o triunfo dos regimes democráticos e o reconhecimento do direito fundamental à dignidade humana como centro do ordenamento jurídico, passaram as constituições contemporâneas a contemplar o ser humano como ator de sua busca incessante pela felicidade, competindo ao Estado provê-lo dos meios necessários para tanto.

Por óbvio, em uma democracia o bem-estar individual refoge a padrão único de comportamento, o que a Constituição Federal de 1988 bem capturou ao afirmar o pluralismo como inspiração e fundamento da República Federativa do Brasil (preâmbulo e art. 1º, inciso V, CF/88) e a promoção do bem de todos, livre de preconceitos, como seu objetivo fundamental (art. 3º, inciso IV, da CF/88).

Nesse contexto, mesmo a família, núcleo básico e essencial da sociedade, segundo o art. 226 da carta republicana, passa por reinterpretação de sentido que, eventualmente, promove violento choque entre a realidade dos fatos da vida e os mais sedimentados dogmas. É o que se vê, por exemplo, quando discutida a possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis simultâneas, o que se faz em cotejo com os princípios da monogamia e do caráter nuclear da família.

Por isso, buscando analisar a validade jurídica de uniões estáveis plúrimas no direito brasileiro, o presente artigo se propõe à releitura do conceito de família à luz do direito constitucional, mantendo-se a lupa posta nos preceitos fundamentais dantes alinhavados. A tarefa não é fácil, exigindo a reinterpretação de dogmas segundo padrões democráticos e, acima de tudo, livre de preconcepções.


2. A Família e as Novas Entidades Familiares na Constituição Federal de 1988

A família é, e continuará sempre sendo, o núcleo básico de qualquer sociedade, fenômeno social primário de onde se inicia a moldagem das potencialidades humanas com o propósito da convivência em sociedade e da busca de sua realização pessoal.[1]

Todavia, conquanto mantida a essência de núcleo estruturante e estruturador do sujeito, induvidosa a evolução do fenômeno familiar.

Com efeito, resta superada a percepção da família como unidade produtiva e reprodutiva, baseada na hierarquia entre seus membros e com foco centrado no patrimônio. Tal como disposta no Código Civil de 1916, e segundo os valores dominantes à época, a família era fortemente voltada ao fomento das atividades econômicas e/ou à manutenção de patrimônios, do que propriamente ao bem-estar de seus membros.

Por sua vez, a família pós-moderna, descortinada a partir da Constituição Federal de 1988, deita alicerce sobre valores sociais e humanizadores, notadamente da dignidade humana, da solidariedade social e da igualdade substancial. Da visão protetiva da família de per si, enquanto objeto, a Lei Maior observa-a como núcleo vocacionado à plena realização da personalidade de seus membros, merecendo a proteção estatal porquanto funcionalizada ao desenvolvimento da pessoa humana. Nesse novo espaço, a afetividade ganha primazia como elemento constitutivo da unidade familiar, qualquer que seja a forma sobre a qual constituído esse novo agrupamento.

Bem por isso, sob a perspectiva do melhor interesse da pessoa, a Carta de 1988 repudia qualquer interpretação de que sejam protegidas somente algumas entidades familiares e desabrigadas outras. Residindo no sujeito a finalidade da proteção estatal, a exclusão refletiria nas pessoas que integram a entidade familiar, ainda que constituída sob formas não convencionais (seja por opção ou por vicissitudes da vida), abalando assim a realização do princípio da dignidade humana.[2] E é nessa ordem de ideias que Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald advertem que:

Posto isso, a lente da afetividade impõe o reconhecimento de relações como entidades familiares independentemente da previsão expressa no art. 226 da CF/88, conformando-se as disposições constitucionais com os princípios da dignidade humana e da igualdade substancial. Por isso a Constituição Federal alberga não somente a família originada do casamento, bem como qualquer outra manifestação afetiva, como a união estável e a família monoparental – formada pela comunidade de qualquer dos pais e seus descendentes, no eloqüente exemplo da mãe solteira.[3]

Observa-se, desse modo, que a Lei Maior, incorporando filosofia pluralista e democrática, não poderia deixar de albergar outras espécies familiares além da casamentária. Daí decorre o reconhecimento da união estável e da família monoparental, como já citado, mas, além dessas, o reconhecimento e proteção a diferentes arranjos familiares, tais como a família natural, a família ampliada e a família substituta (estas últimas previstas na Lei nº 8.069/90), além das famílias homoafetivas.

Portanto, vista a abrangência que o espírito democrático da CF/88 imprimiu ao princípio da dignidade da pessoa humana, imperioso concluir que não somente a família advinda do casamento encontra especial proteção do Estado. A primazia da afetividade enquanto valor fundamental confere a proteção prevista no caput do art. 226 da CF/88 a todo e qualquer núcleo familiar, vencendo a unicidade de outrora.

Posta a questão nesses termos, mesmo a monogamia, sedimentado dogma cultural das sociedades ocidentais, pode ceder diante do caráter eudemonista[4] e plural do Texto Magno. Isto porque, presente a afetividade entre seus membros, anuentes ao modo de vida escolhido, haveria impedimento legal para a constituição de famílias marcadas pela união simultânea de um homem com suas 02 ou mais mulheres, ou de uma mulher com seus 02 ou mais homens, ou qualquer outra forma de arranjo, hétero ou homoafetivo, que se faça?

Esta indagação anima o presente artigo, que busca averiguar a possibilidade de uniões estáveis simultâneas e a viabilidade de seu reconhecimento jurídico.


3.  Uniões Estáveis Concomitantes ou Paralelas

De tudo o que se disse até agora, não é demasiado repisar que a família contemporânea repousa fundamento no afeto entre seus membros, os quais comungam do desejo comum de encontrarem a felicidade.

Nessa linha de ideias, já não é recente que a evolução social levou ao surgimento da união estável como nova entidade familiar, equivalente ao casamento, em substituição ao vetusto e preconceituoso concubinato.

Naquele contexto, o direito teve de se revelar apto a interpretar o fato social para o qual ainda não havia sido preparado, atribuindo à nova entidade a devida e merecida proteção estatal. O reconhecimento do novo instituto jurídico somente teve início com a edição da Súmula nº 380 do Supremo Tribunal Federal (03.04.1964)[5], seguida da previsão no art. 226, § 3º, da CF/88[6] e nas Leis nº 8.971/94 e 9.278/96. Por sua vez, o Código Civil de 1916, vigente por quase um século, não contemplava o assunto, indiferença rompida pelo Código Civil de 2002.

Hoje, entretanto, a reinterpretação da família, apoiada em bases plurais e democráticas, nos conduz a novos desafios. Se foi e ainda é verdade que o direito humano à plena dignidade ensejou o reconhecimento de novas entidades familiares, igualmente verdadeiro que o dinamismo das relações afetivas e sociais nos defronta com um dos mais sedimentados dogmas das culturas ocidentais: a monogamia.

Com efeito, a releitura constitucionalizada do conceito de família não só permite, mas também determina, a reinterpretação da monogamia segundo padrões democráticos, reconhecendo a permeabilidade deste valor cultural às convicções e ambições amorosas de cada pessoa envolvida na relação de afeto.

Ou seja, não se pode renegar a possibilidade de reinterpretação da monogamia a partir do enfoque plural e democrático da família no Texto Magno. Preenchidos certos requisitos, a CF/88 foi clara no desejo de albergar sob sua proteção as mais novas modalidades familiares, mostrando plasticidade diante de tabus como, por exemplo, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, inimaginável em tempos idos.

E se com base no afeto já se superou a impossibilidade jurídica do reconhecimento das uniões civis homoafetivas, descabe pretender imunizar a monogamia contra discussões e aberturas interpretativas, à luz do caráter eudemonista da família pós-constitucional. Diante do desejo afetivo de cada um, o Direito de Família não pode renegar a existência de entidades familiares poliafetivas, lastreadas pelo assentimento dos envolvidos com a multipolarização das relações amorosas.

Nesse sentido, exemplo eloquente de manutenção de uniões estáveis concomitantes, inexistindo óbice à sua citação neste artigo por ser fato de conhecimento público, ocorre na vida de Wagner Domingues da Costa, de 45 anos, cantor conhecido pelo nome artístico de “Mr. Catra”, o qual reside com 04 companheiras (Sílvia, Sara, Cinthya e Juliane) e seus 23 filhos em uma mansão em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro/RJ.[7]

Em várias entrevistas, o cantor confirma as convivências estáveis, públicas, contínuas e duradouras, também admitidas pelas respectivas consortes, as quais se conhecem, se toleram e permitem que o artista mantenha simultaneamente todos os relacionamentos, contribuindo ainda as companheiras para a criação de todos os 23 filhos tidos em família, já que cuidam dos filhos umas das outras, inclusive.[8]

Por assim dizer, sem pretender aclarar os contornos exatos das uniões estáveis paralelas quanto à sua operacionalidade (até porque pertinente à vida privada dos consortes), o exemplo citado retrata fenômeno que, nem sempre nas mesmas proporções, é encontrável na sociedade contemporânea. Militante da área previdenciária, vale destacar a recorrência de casos análogos enfrentados por este Procurador Federal, quando demonstrada a dependência econômica de duas famílias em relação ao mesmo instituidor de pensão por morte, cuja vida comungou entre duas companheiras. O que fazer?

Ora, não pode o direito repreender o modo pelo qual as pessoas dão vazão aos sentimentos de afeto, acordantes com a cristalização de amores triangulares ou multilaterais, como visto no caso em tela. Até mesmo porque a proteção das novas manifestações familiares deve também se alicerçar sobre a lupa da autonomia privada, revelação da liberdade humana. Daí se conclui não competir ao Estado interferir na comunhão de vida instituída pela família (art. 1.513 do Código Civil), ainda que esta nova entidade resulte da quebra de paradigmas como a monogamia.

Deveras, concebendo-se que a defesa dos direitos familiares em sua plenitude deve repousar nos ideais do pluralismo e na primazia do afeto, não pode o operador do Direito fugir à responsabilidade de ver e reconhecer o novo. A força dos fatos da vida é irresistível, o que já se viu, por exemplo, quando emprestada juridicidade aos relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por conseqüência, o instituto da união estável.

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Nessa linha de argumentação, o valor da afetividade progride para o reconhecimento de uniões estáveis concomitantes, lastreada na plena ciência e aquiescência entre os conviventes com o modo de vida escolhido. Como toda quebra de paradigma, o fenômeno exige a necessária ponderação e apaziguamento dos possíveis sentimentos de intolerância ou repulsa que contra ele possam se levantar, mantendo-se a coragem de entender que a sociedade muda, a família se altera e o Direito deve acompanhar essas transformações.[9]

Mas, a despeito do que se acabou de defender, a questão da viabilidade jurídica em se reconhecer duas ou mais uniões estáveis simultâneas é tema dos mais tormentosos. Conforme citado pelo professor Dênis Donoso em artigo intitulado “União estável e entidades familiares concomitantes: o poliamor como critério jurídico do Direito de Família”, no julgamento do REsp n.º 789.293/RJ o eminente Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito asseverou:

“Ora, com o maior respeito à interpretação acolhida no acórdão, não enxergo possível admitir a prova de múltipla convivência com a mesma natureza de união estável, isto é, "convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". O objetivo do reconhecimento da união estável e o reconhecimento de que essa união é entidade familiar, na minha concepção, não autoriza que se identifiquem várias uniões estáveis sob a capa de que haveria também uma união estável putativa. Seria, na verdade, reconhecer o impossível, ou seja, a existência de várias convivências com o objetivo de constituir família. Isso levaria, necessariamente, à possibilidade absurda de se reconhecer entidades familiares múltiplas e concomitantes.”[10]

Outrossim, em sua obra Manual de Direito Civil, Flávio Tartuce colaciona excerto do REsp 1.157.273-RN, da lavra da eminente Ministra Relatora Nancy Andrighi, noticiado no Informativo nº 435 do STJ, in verbis:

“... uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade, que integra o conceito de lealdade, para o fim de inserir, no âmbito do Direito de Família, relações afetivas paralelas e, por conseqüência, desleais, sem descurar do fato de que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade.”[11]

Do último excerto vê-se apontada a dicotomia entre fidelidade, dever do casamento, previsto no art. 1.566, I, do CC[12], e lealdade, dever dos conviventes, contido no art. 1.724 do CC[13]. Deveras, é intrigante o lapso do legislador ao não prever expressamente para o casamento e para a união estável os mesmos deveres de lealdade e fidelidade.

Reportando-nos novamente ao trecho do voto da Ministra Nancy Andrighi, supracitado, percebe-se que a magistrada considera o dever de fidelidade parte integrante do conceito de lealdade. Guardado o devido respeito à opinião da magistrada, não se pode concordar com tal ilação.

De fato, não se diverge que o dever de lealdade possui maior eficácia de sentido que a fidelidade, podendo eventualmente abrange-la, inclusive. Mas em uma relação amorosa, a lealdade entre os companheiros se refere muito mais ao vínculo afetivo regido pela verdade, transparência, honestidade e sinceridade do casal no tratamento recíproco. É claro que em qualquer relação humana, seja amorosa, fraternal ou mesmo de amizade, espera-se a junção dos preceitos de lealdade e fidelidade. Mesmo assim, respeitando as opiniões em contrário, entendo inarredável a conclusão de que leal não é aquele que não trai; leal é aquele que não mente.

Nesse horizonte, a amplitude axiológica do dever de lealdade ínsito à união estável ultrapassa, superpõe-se à exclusividade monogâmica casamentária, advinda do dever de fidelidade. É dizer, o dever de lealdade dos conviventes preconizado pelo art. 1724 do CC carrega em seu âmago a viabilidade do reconhecimento de uniões estáveis simultâneas, desde que presentes, entre outros requisitos, o pleno conhecimento dos envolvidos e a aceitação do quadro familiar, ainda que mediante pura resignação.

Aliás, essa transparência plena de afetos é ponto diferenciador entre as uniões estáveis concomitantes e as espúrias relações concubinárias (art. 1.521, VI, c/c art. 1.723 e art. 1.727, todos do Código Civil[14]), marcadas, entre outros, pela clandestinidade, pela eventualidade e pela má-fé daquele que busca se aventurar nos braços de terceiro(a). Não é deste tipo de relacionamento que trata o presente artigo; que fique bem claro!

Por isso, a despeito do que se vem sustentando, imperiosa a ressalva, tal como feita pelo professor Dênis Donoso[15], de que a configuração de uniões estáveis plúrimas não pode prescindir dos requisitos imanentes à espécie, quais sejam: a) que a união se dê entre homem e mulher (requisito superado após o julgamento da ADIN nº 4277 e da ADPF nº 132 pelo STF, que permitiu o reconhecimento da união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar); b) que haja convivência entre ambos; c) que a convivência seja pública, contínua e duradoura; e d) que haja o objetivo de constituir família.

Nessa medida, socorrendo-se novamente ao famoso exemplo citado, mostram-se presentes nos relacionamentos paralelos a affectio societatis familiar mantida pelo músico com suas 4 companheiras, a participação e comunhão de esforços domésticos (referentes à criação dos 23 filhos), a posse do estado de casado e a continuidade e durabilidade das uniões estáveis, enfim, todos os predicados previstos no art. 1.724 do CC.

Acresça-se a tudo isso a lealdade entre os companheiros na relação poliafetiva, materializada pelo jogo aberto quanto aos relacionamentos paralelos. Aqui, vale registrar trecho de voto do sempre brilhante e admirado ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Brito, divergindo da conclusão adotada no julgamento do RE 397.762-8/BA, Rel. Min. Marco Aurélio, citado por Flávio Tartuce, verbis:

“Com efeito, à luz do Direito Constitucional brasileiro o que importa é a formação em si de um novo e duradouro núcleo doméstico. A concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isto é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma concomitante relação sentimental a-dois. No que andou bem a nossa Lei Maior, ajuízo, pois ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente traída, sabido que esse órgão chamado coração ‘é terra que ninguém nunca pisou’. Ele, coração humano, a se integrar num contexto empírico da mais entranhada privacidade, perante a qual o Ordenamento Jurídico somente pode atuar como instância protetiva. Não censora ou por qualquer modo embaraçante.”[16]

Também merecem citação precedentes do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, ambos citados por Dênis Donoso[17]. Confira-se:

Embargos infringentes - União estável - Relações simultâneas. De regra, não é viável o reconhecimento de duas entidades familiares simultâneas, dado que em sistema jurídico é regido pelo princípio da monogamia. No entanto, em Direito de Família não se deve permanecer no apego rígido à dogmática, o que tornaria o julgador cego à riqueza com que a vida real se apresenta. No caso, está escancarado que o "de cujus" tinha a notável capacidade de conviver simultaneamente com duas mulheres, com elas estabelecendo relacionamento com todas as características de entidades familiares. Por isso, fazendo ceder a dogmática à realidade, impera reconhecer como co-existentes duas entidades familiares simultâneas. Desacolheram os embargos, por maioria. (TJRS, 4º Grupo Cível, Embargos Infringentes n.º 70013876867, rel. Des. Luiz Ari Azambuja Ramos, j. 10.3.2006; por maioria)

UNIÕES ESTÁVEIS. CONCOMITÂNCIA. Civil. Ações de Reconhecimento de Uniões Estáveis "post mortem". Reconhecimento judicial de duas uniões estáveis havidas no mesmo período. Possibilidade. Excepcionalidade. Recursos desprovidos. 1 - Os elementos caracterizadores da união estável não devem ser tomados de forma rígida, porque as relações sociais e pessoais são altamente dinâmicas no tempo. 2 - Regra geral, não se admite o reconhecimento de duas uniões estáveis concomitantes, sendo a segunda relação, constituída à margem da primeira, tida como concubinato ou, nas palavras de alguns doutrinadores, "união estável adulterina", rechaçada pelo ordenamento jurídico. Todavia, as nuances e peculiaridades de cada caso concreto devem ser analisadas para uma melhor adequação das normas jurídicas regentes da matéria, tendo sempre como objetivo precípuo a realização da justiça e a proteção da entidade familiar - desiderato último do Direito de Família. 3 - Comprovado ter o "de cujus" mantido duas famílias, apresentando as respectivas companheiras como suas esposas, tendo com ambas filhos e patrimônio constituído, tudo a indicar a intenção de constituição de família, sem que uma soubesse da outra, impõe-se, excepcionalmente, o reconhecimento de ambos os relacionamentos como uniões estáveis, a fim de se preservar os direitos delas advindos. 4 - Apelações desprovidas. (TJDF, 1ª Turma Cível, Apelação Cível n.º 2006.03.1.000183-9, rel. Des. Nívio Geraldo Gonçalves, j. 27.02.2008)

Dessarte, o direito não se pode fingir cego à realidade daquelas pessoas que, vivendo ou não sob o mesmo teto, mas desde que mutuamente cientes e concordantes com o modo de vida escolhido, por razões que só o coração de cada um pode entender, sujeitam-se a partilhar o mesmo companheiro ou companheira.

Deveras, a Constituição Federal de 1988, que se dispôs à releitura do conceito de família a partir de visão pluralista e humanitária, não pode se esquivar do reconhecimento da existência de múltiplas formas de amor, ou de poliamores. Somente assim se manterá firme o programa constitucional repousado na dignidade humana de cada um dos membros da família, cujos pilares são o afeto recíproco e a comunhão do desejo comum de se alcançar a felicidade.

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Sobre o autor
Danilo Moreira Nascimento

Defensor Público Federal. Procurador Federal (2011-2014). Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e membro da Assessoria do Desembargador José Cruz Macedo (2009-2011). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal – UDF. Pós-graduado em "Ordem Jurídica e Ministério Público" pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – FESMPDFT.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Danilo Moreira. Uniões estáveis concomitantes: a poliafetividade à luz da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3959, 4 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27649. Acesso em: 22 dez. 2024.

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