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Desconstruindo o mito: a não vulnerabilidade do idoso na escolha do regime de bens

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02/05/2014 às 08:35
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Não é razoável restringir o direito de livre escolha de alguém pelo simples fato de ter atingido a idade de 70 anos.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda o regime jurídico da separação obrigatória de bens, analisando-se a possível inconstitucionalidade na restrição imposta pelo legislador no artigo 1641, inciso II, do Código Civil vigente, para a pessoa maior de setenta anos ou para aquela que, com ela, deseja contrair núpcias.

Assim, houve a exposição de que a previsão normativa é foco de divergência doutrinária e jurisprudencial que, inclusive, há pouco, passou por discussão e mudança legislativa na qual foi editada a Lei 12.344 de 9 de dezembro de 2010, que alterou a obrigatoriedade do regime da separação obrigatória de bens das pessoas maiores de sessenta anos para, setenta anos.

Tal mudança se deu a partir da nova realidade demográfica brasileira, haja vista o crescente aumento da população idosa e a elevação de relacionamentos afetivos nesta faixa etária. Diante disso, foram abordados os princípios constitucionais e a sua aplicação ao caso, passando-se ao debate pormenorizado dos posicionamentos favoráveis e contrários, expondo, os seus representantes, os fundamentos e argumentos por eles sustentados, assim como os entendimentos jurisprudenciais, com o objetivo de se analisar a repercussão constitucional à aplicação da referida restrição normativa a fim de se chegar a uma conclusão que melhor se amolde ao ordenamento jurídico pátrio.


2 ANÁLISE DA REPERCUSSÃO DO AUMENTO DA LONGEVIDADE DAS PESSOAS NO DIREITO

É notório que o panorama demográfico brasileiro tem sofrido mudanças ao longo dos últimos anos, devido a diversos fatores, dentre eles, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o aumento da expectativa de vida e o declínio das taxas de fecundidade que, no ultimo senso realizado no ano de 2010, confirma que a taxa de fecundidade no Brasil é de 1,9 filhos por mulher, sendo que, para a população continuar crescendo, o nível mínimo de reposição é de 2,1 filhos por brasileira. Com isso, o Brasil tende a se tornar um país de idosos, o que vem ocorrendo de forma relativamente acelerada, estimando-se que aqui, nos próximos 20 anos, a população idosa poderá exceder 30 milhões de pessoas, chegando a representar quase 13% da população total.

Atualmente, segundo dados do IBGE (2010), a expectativa de vida no Brasil é de 70 anos, para os homens e de 77, para as mulheres.

Este aumento da longevidade, embora apresente um progresso social, ocasiona também um problema social e jurídico, uma vez que a sociedade hodierna não tem acompanhado adequadamente este crescimento e, ainda, encontra-se mergulhada em pré-concepções errôneas do que é o envelhecimento (LISANDRO, 2009), e representa um problema jurídico, pois visando assegurar os direitos destas pessoas, acabam penalizando-as por leis ditas protetivas, que vão contra os princípios constitucionais.

Na concepção da psicologia, o envelhecimento é um processo de desenvolvimento ou transformação biológica, social, cultural e emocional, pelo que todas as pessoas passam, de forma natural, no decorrer da vida (GODENBERG, 2011). O envelhecimento não se resume somente a um processo degenerativo do homem, mas, sim, a um processo de desenvolvimento e adequação:

Essa adequação da vida é marcada pelo abandono de certas atividades e certas relações, mas não se resume a isso. Com efeito, as atividades e relações abandonadas podem ser substituídas por outras que exigem menos esforço. É, assim, um processo ativo  por meio do qual as pessoas que envelhecem criam estratégias de reconvenção de suas atividades, de maneira a se poupar e com o objetivo de continuar fazendo o que é mais importante a seus olhos. (GODENBERG, 2011, p.33).

Com isso, Néri (2004) afirma que as pessoas têm buscado um modelo de envelhecimento ativo que lhes permite um envelhecimento mais saudável, o qual lhes proporciona a sensação de estarem vivos e independentes, ao invés de doentes e incapacitados para as práticas diárias da vida.

Em função desse aumento da expectativa de vida dos brasileiros e pelo desenvolvimento tecnológico da medicina e hábitos saudáveis, a idade cronológica considerada para a fase da velhice, conforme disposto no artigo 1º. da Lei n º 10.741/03 (Estatuto do Idoso), que é de 60 anos, está se retardando, uma vez que essa pessoa tem chegado, nesta faixa etária, mais ativa e independente, com amplas possibilidades de realização de novos projetos de vida, apesar de já consideradas idosas (GODENBERG, 2011).

Torna-se comum vermos sexagenários que contam com uma renda fixa proveniente do trabalho que, pelo motivo de estarem mais ativos e saudáveis, preferem postergar sua aposentadoria, segundo a reportagem publicada pela Revista Veja (2010), utilizando levantamento feito pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), onde se estima que no Brasil 38 % de sexagenários contam com uma renda fixa proveniente do trabalho.

Outro setor que vem crescendo bastante é o da economia.

Os idosos têm uma participação importante na economia. Segundo dados do IBGE, de 2007, mais de 50% das famílias que têm idosos, são sustentadas por eles, por dois motivos: os jovens não têm empregos e os adultos ganham pouco. (ROCHA, 2009, p.1).

O certo é que o Brasil e o restante do mundo têm se preocupado com a situação do aumento populacional dos idosos. Recentemente foi publicada uma reportagem no Jornal Valor Econômico, na qual se abordava a crescente pressão pelo aumento da idade efetiva para a concessão da aposentadoria, para 67 anos, ou mais, nos países desenvolvidos que estão em crise, cujas reformas têm por objetivo reduzir as pensões em 20% a 25% para as futuras gerações de aposentados (VALOR ECONÔMICO, 2012).

Outra mudança significativa que tem ocorrido, e na qual nos ateremos, é o crescente aumento de relações afetivas, seja por casamento ou união estável, envolvendo pessoas maiores de 60 anos.

Uma reportagem realizada e publicada na revista Veja (2010), por meio de levantamentos feitos pelo IBGE, mostra que o aumento do número de casamentos em que pelo menos um dos cônjuges passou dos 60 anos, foi de 44% entre os anos de 2003 e 2008, enquanto que o casamento da população brasileira, fora desse segmento, cresceu somente 28%.

 A referida reportagem expõe, também, dois fatores a este aumento de casamentos, sendo o primeiro, a independência financeira para sustentar um casamento e, o segundo, o aumento da expectativa de vida aliada a um envelhecimento saudável, o qual pressupõe hábitos saudáveis, como uma boa dieta alimentar, exercícios físicos regulares e abstinência de vícios como álcool e tabaco (VEJA, 2010).

2.1 IMPACTOS DO AUMENTO DA LONGEVIDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA E A NOVA VISÃO CONSTITUCIONAL DA FAMÍLIA

Conforme abordado acima, com o aumento da expectativa de vida aliada à independência física e econômica, com boa qualidade de vida e novos projetos, é comum que essas pessoas constituam relacionamentos afetivos, seja porque ficaram viúvas, se divorciaram ou que estejam solteiras até este momento e queiram estabelecer um relacionamento.

Não obstante, surge aqui um problema jurídico que deve ser discutido, pois o nosso atual Código Civil estabelece que, para as pessoas maiores de 70 anos, o regime de bens a ser adotado seja o da separação obrigatória, havendo discussões doutrinárias quanto à hipótese de violação a princípios constitucionais desta imposição legal.

Para entender melhor este impasse jurídico e doutrinário, passamos a discorrer, brevemente, sobre a base histórica do Direito Civil Brasileiro.

 Segundo Gomes (2006), o Código Civil brasileiro de 1916 foi projetado para uma sociedade predominantemente rural e patriarcalista, escrito sob uma concepção patrimonial-liberalista advinda da revolução francesa, cuja base é fortemente individualista em relação à propriedade privada, com o intuito de se preservarem os direitos conquistados pela burguesia, sendo uma codificação rigorosamente fechada.

Em meados do século XX, começa haver várias transformações sociais, diante do desenvolvimento industrial e tecnológico, do crescente aumento da população urbana e da ascensão da mulher na sociedade, dentre outros. Sendo, portanto, necessário regularizarem-se as relações que não estavam previstas no código ou, quando presentes, as suas regulamentações eram insatisfatórias.

Daí, então, surgiu a necessidade de se elaborar um novo código, sendo publicado em 1972 o seu anteprojeto, que foi elaborado e presidido pelo renomado jurista Miguel Reale.

Este Projeto de Lei foi encaminhado em 1975 para o Congresso Nacional, onde passou por um longo processo de tramitação, no qual somente foi aprovado o novo Código Civil no ano de 2002, entrando em vigor no ano seguinte.

Nesse ínterim, no ano de 1988, foi promulgada a Constituição Federal da República, marcada pela garantia dos direitos sociais e não mais restrita ao individualismo patrimonialista, mas cunhada na dignidade da pessoa humana.

Devido à demora na aprovação do novo Código Civil, muitas emendas foram feitas ao velho projeto, na tentativa de adequá-lo ao texto constitucional, sendo, o Código Civil de 2002, alvo de muitas críticas por parte dos juristas, como Falconi (2012), que o intitulavam de desatualizado, pois, mesmo com as emendas feitas ao projeto, estas não foram suficientes para acompanhar as mudanças trazidas pela Constituição Federal, principalmente no que tange a esta imposição legal da separação obrigatória de bens.

O Código Civil de 1916 dispunha, no seu artigo 258, II, a obrigatoriedade do regime da separação de bens fazendo distinção da idade pelo sexo, sendo imposta para os homens maiores de 60 anos e para as mulheres maiores de 50 anos, na qual se dava tratamento discriminatório à mulher. No entanto, com a ascensão da mulher na sociedade e a promulgação da Constituição, não poderia mais existir essa distinção, havendo discussões no meio jurídico, tanto quanto pela imposição legal do regime da separação de bens, como pela distinção entre homem e mulher.

Com a advinda do Código Civil de 2002 houve a equiparação no limite da idade entre homem e mulher, para 60 anos, em observância ao princípio constitucional da igualdade, mas se manteve a imposição legal.

Em 2007, foi proposto o Projeto de Lei nº. 276/2007 com o objetivo de aumentar a idade de 60 para 70 anos, devido ao aumento da expectativa de vida dos brasileiros. E em 09 de dezembro de 2010 entrou em vigor a Lei nº. 12.344, que modificou o inciso II do artigo 1641 do Código Civil, aumentando para 70 anos a idade na qual se torna obrigatório o regime da separação de bens, mesmo assim, as críticas persistem a tal imposição legal.

Outro fato importante a ser considerado é que os momentos históricos influenciaram e determinaram os diversos modelos de família, que ainda estão em constante transformação. Assim, o Direito de Família sofreu uma grande transformação com o advento da Constituição de 1988, que traz em seu texto fundamentos constitucionais maiores, como o da dignidade da pessoa humana, solidariedade, afeto e isonomia.

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 Hoje, a família não é só formada por ascendente e descendente e não se origina somente através do matrimonio. A família atual busca a realização plena de seus membros, por meio do afeto e não somente pelo patrimônio (MOREIRA, 2007).

Superada a percepção de família como unidade produtiva e reprodutiva, pregada pelo Código Civil de 1916, a partir dos valores predominantes naquela época, descortinam-se novos contornos para o Direito das Famílias, fundamentalmente a partir da Lex mater de 1988, que esta cimentada a partir de valores sociais e humanizadores, especialmente a dignidade humana, a solidariedade social e a igualdade substancial. [...] desse modo, a entidade familiar está vocacionada, efetivamente, a promover, em concreto, a dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade. (Farias; Rosenvald, 2010, p.38).

Nessa linha de ideia, a entidade familiar não está somente pautada no patrimônio, mas, também, na pessoa dos cônjuges:

Não se pense, entretanto, que a repercussão econômica sobrepujaria o caráter afetivo-solidarista do casamento – e das relações familiares, como um todo. Em verdade, as conseqüências patrimoniais do matrimônio têm de estar conectadas na proteção da dignidade humana e de seus valores existenciais. O interesse econômico “é subalterno” e, por conseguinte, o regime de bens “está atualmente submetido a uma defesa dos fins morais do casamento.” (DANTAS apud FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 230).

Assim, a família exige uma:

Tutela jurídica que respeite a liberdade de constituição, convivência e dissolução; a auto responsabilidade; a igualdade irrestrita de direitos e, logicamente, não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. (MOREIRA, 2007, p. 14).

Portanto, é, nos moldes da Constituição Federal e principalmente através do princípio da dignidade da pessoa humana, que devemos analisar o Instituto Família. Ao entender que o Direito de Família tem que ser analisado sob os fundamentos da Constituição Federal, supera-se a lógica patrimonialista, que fundou o Código Civil, dando valor ao indivíduo e à sua felicidade, como o centro e objetivo primordial das relações familiares.


3 DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E DA SUA APLICAÇÃO AO CASO 

Moraes (2008) afirma que a Constituição Federal de 1988 trouxe diversos direitos e garantias fundamentais que, após a sua promulgação, houve alterações em diversos dispositivos infraconstitucionais, adequando-as à Constituição Federal, a quem esses devem subordinação, obediência formal e material a esta, sob pena de declaração de inconstitucionalidade e, consequentemente, a sua retirada do ordenamento jurídico.

Assim, as leis infraconstitucionais devem ter como base os princípios constitucionais, que são valores supremos do próprio Estado Democrático de Direito, os quais consagram, em seu preâmbulo, o direito à liberdade e igualdade e prevê, no artigo 1º., a dignidade da pessoa humana como fundamento do próprio Estado Democrático de Direito. Portanto, o Direito de Família deve estar diretamente conectado à diretriz constitucional e não se pode deixar de afirmar a compreensão institucionalizada do Direito de Família, que deve estar diretamente conectada à diretriz constitucional, aproximando-se de valores humanistas, seguindo a linha mestra traçada pela Constituição (FARIAS; ROSENVALD, 2010).

Cabe salientar, que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos.” (MELLO, 1992, p. 230). Assim, é imprescindível a observância da legalidade constitucional no Direito de Família, uma vez que os princípios constitucionais são a base para toda interpretação e aplicação da Ciência Jurídica.

3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DO DIREITO A VIDA

O valor basilar do nosso sistema jurídico é a dignidade da pessoa humana que, conforme Moreira (2007), tem por objetivo tornar possível a plena tutela dos indivíduos. No entanto, a dignidade da pessoa humana se apresenta mais que um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito e é ele quem dá sentido, mostrando o ponto de partida e de chegada de toda interpretação normativa, exercendo força sobre todo o ordenamento jurídico.

 Portanto, é a preocupação com a pessoa humana que deve orientar todos os ramos no Direito, devendo ser pautados na promoção do desenvolvimento pleno do homem, adequando-se à realidade e aos fundamentos constitucionais vigentes, sendo o centro de todas as relações jurídicas.

Nesse sentido, Moreira (2007) diz que o ser humano deve estar no centro do Direito Civil, no qual este lugar, há muito tempo, foi ocupado pelo patrimônio, mas essa natureza patrimonial está perdendo força e dando lugar para a chamada personalização das relações civis em que o homem está em primeiro lugar, antecedendo ao seu patrimônio.

Sobre o assunto explica Fachin:

A ‘repersonalização’ do Direito Civil recolhe, com destaque, a partir do texto constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana. Para bem entender os limites propostos à execução à luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, têm sentido verificações preliminares. A dignidade da pessoa é princípio fundamental da República Federativa do Brasil. É o que chama de princípio estruturante, constitutivo e indicativo das idéias diretivas básicas de toda a ordem constitucional. Tal princípio ganha concretização por meio de outros princípios e regras constitucionais formando um sistema interno harmônico, e afasta,de pronto, a idéia de predomínio do individualismo atomista no Direito. Aplica-se como leme a todo o ordenamento jurídico nacional compondo-lhe o sentido e fulminando de inconstitucionalidade todo preceito que com ele conflitar. É de um princípio emancipatório que se trata. (FACHIN, 2001, p. 190).

A dignidade é o valor fundamental para a compreensão e aceitação das ideias que passaram a nortear as formas de vida no mundo contemporâneo, sendo o alicerce de todos os valores morais e de todos os direitos do homem (RENON, 2009).

Alexandre de Moraes entende que:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (MORAES, 2008, p. 22, grifos do autor).

 Abordada a valorização da pessoa humana e, em linhas gerais, a concepção de dignidade, não podemos deixar de verificar a aplicação do princípio da dignidade humana na entidade familiar.

A percepção de dignidade na família:

Serve como instrumento para o desenvolvimento da personalidade humana e para a plena realização de cada um de seus membros, uma vez que é no núcleo familiar que ocorrerão os fatos elementares da vida do ser humano, desde o seu nascimento até sua morte, entre os quais é possível apontar as escolhas profissionais e afetivas, assim como a vivência cotidiana dos problemas e dos sucessos. (FARIAS apud RENON, 2009, p.40).

Segundo Renon (2009), a família possui uma estreita relação com a dignidade humana, pois é desde o nascimento do indivíduo que se deve respeitar e promover a integridade física e psíquica da pessoa, e é a vida familiar que faz parte do cotidiano das pessoas, sendo relevante para a formação e o desenvolvimento do indivíduo.

Afirmando, ainda, Renon (2009), que o princípio da dignidade exige como pressuposto a intangibilidade da vida humana. Devendo existir respeito pela vida e integridade física e moral da pessoa, assegurando a liberdade, a autonomia e a igualdade em direitos para que a mesma não seja objeto de injustiças.

Nesse sentido, Moreira (2007) afirma que a restrição imposta pelo artigo 1641, inciso II do Código Civil fere a dignidade da pessoa humana, ao desconsiderar o poder de autodeterminação das pessoas maiores de 70 anos, configurando um abalo na sensibilidade emocional e moral dessas pessoas pelo sentimento de discriminação que essa proibição lhes proporciona.

3.2 PRINCÍPIO DA LIBERDADE E DO RESPEITO

O direito à liberdade é um direito fundamental que está previsto no artigo 5º. da Constituição Federal, no qual seu conceito, de forma geral, se resume em estar livre de impedimento na faculdade de ir e vir, das pessoas e seus bens.

Apesar do direito à liberdade estar previsto constitucionalmente, o Estado, visando assegurar a aplicação dos direitos fundamentais aos idosos, prevê expressamente tal princípio no artigo 10 do Estatuto do idoso.

Art.10. É obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis.

§ 1o O direito à liberdade compreende, entre outros, os seguintes aspectos:

I – faculdade de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;II – opinião e expressão;III – crença e culto religioso;  IV – prática de esportes e de diversões;V – participação na vida familiar e comunitária; VI – participação na vida política, na forma da lei; VII – faculdade de buscar refúgio, auxílio e orientação. (BRASIL, 2003).

Pois bem, o direito à liberdade conforme previsto no artigo transcrito acima, não só assegura a liberdade no aspecto da faculdade de ir e vir do idoso, como também relaciona outros aspectos de liberdade, inclusive familiar.

Quanto ao princípio da liberdade do idoso no aspecto do Direito de Família, a mesma está relacionada à autonomia do idoso em constituir ou extinguir uma entidade familiar, sem qualquer intervenção externa, de parentes, da sociedade ou do legislador.

Na Constituição brasileira e nas leis atuais o princípio da liberdade na família apresenta duas vertentes essenciais: liberdade da entidade familiar, diante do Estado e da sociedade, e liberdade de cada membro diante dos outros membros e da própria entidade familiar. A liberdade se realiza na constituição, manutenção e extinção da entidade familiar [...] O princípio da liberdade diz respeito não apenas à criação, manutenção ou extinção dos arranjos familiares, mas à sua permanente constituição e reinvenção [...]  (LOBO apud DOURADO, 2010, p.31).

Verifica-se também que, visando garantir a proteção do idoso quanto a qualquer forma de perturbação em seus direitos e preservando a sua autonomia de vontade, o artigo 10, §2o do Estatuto do Idoso prevê que este possui direito ao respeito, conforme se transcreve abaixo:

Art.10. É obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis.

§ 2º. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais (BRASIL, 2003).

Posto isto, resta-nos lembrarmos que o Direito de Família pertence ao Direito Civil, que pertence ao ramo do direito privado. Em regra, o Estado não pode intervir nas relações entre particulares. Conforme previsto no art. 1.513 do Código Civil, “É defeso a qualquer pessoa de direito público ou direito privado interferir na comunhão de vida instituída pela família” (BRASIL, 2002). No entanto, Vasconcellos (2010) afirma que, como a família é considerada a base da sociedade e possui papel essencial previsto na Constituição, há momentos em que o Estado deve intervir para preservá-la.

 Ainda assim, o Estado não pode interferir nas relações do Direito de Família de maneira que o transforme em um ramo do direito público. Segundo Vasconcellos (2010), as intervenções devem ser pautadas em situações importantes que as justifiquem, apenas em casos que estejam ou possam prejudicar o bem estar da família, como nos casos de educação dos filhos, do poder familiar e dos alimentos.

 Dessa forma, a imposição do regime obrigatório de bens para os maiores de 70 anos não é uma medida excepcional, pois a escolha do regime de bens diz respeito à autonomia da vontade dos cônjuges. E não há motivo de ordem pública que consiga justificar consideravelmente esta restrição (VASCONCELLOS, 2010).

3.3 DIREITO A AFETIVIDADE E DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Superada a família marcadamente patriarcal que se estruturava em torno do patrimônio, com a Constituição de 1988 surgiu uma nova estrutura de família que passou a se vincular e a se manter por elos afetivos, tornando-se secundárias as motivações econômicas.

Embora a palavra afeto não conste no texto da Constituição como direito fundamental, Renon (2009) afirma que o direito à afetividade decorre da valorização do princípio da dignidade humana, base da ordem jurídica brasileira. Doutrinadores como Maria Berenice Dias (2011) e Ana Carolina Brochado Teixeira (2008) entendem que a interpretação das normas infraconstitucionais relativas ao Direito de Família deva ser operacionalizada pela aplicação de vários princípios, que derivam da dignidade da pessoa humana, como o princípio da não intervenção estatal ou da liberdade do planejamento familiar, da igualdade dos filhos, da igualdade entre cônjuges e companheiros, da igualdade no exercício do poder familiar, da solidariedade familiar e da afetividade.

No entanto, a aplicação da afetividade como princípio de Direito de Família, não é tema pacífico, havendo divergências e críticas no meio doutrinário, porque o afeto é um tema que está relacionado à psicologia, não podendo ser o único critério para identificação dos modelos familiares e, por ser baseada no princípio da dignidade humana que constitui uma cláusula aberta, torna-se abstrata e de difícil conceituação (NASSRALLA, 2011).

A constatação de que a ordem jurídica sobre a família e sua proteção não estão atreladas necessariamente aos fenômenos psíquicos, notadamente à existência de afeto, induz que este constitui apenas um dos elementos (um dos mais importantes) para a construção constitucionalmente adequada do conceito de “família”. O conceito de “família”, no entanto, é sociológico, como anotou Popper: A psicologia é uma ciência social visto depender, grandemente, nossos pensamentos e ações, de nossas condições sociais. Idéias como (a) imitação, (b) a linguagem, (c) a família, são obviamente idéias sociais; e está claro que a psicologia da aprendizagem e do pensamento e também, por exemplo, a psicanálise, não podem existir sem utilizar uma ou outra dessas idéias sociais. Portanto, a psicologia pressupõe idéias sociais, o que demonstra ser impossível explicar a sociedade exclusivamente em termos psicológicos ou reduzi-las à psicologia. Logo, não podemos considerar a psicologia como a base das ciências sociais. (ROCHA apud NASSRALLA, 2011, p. 35).

O afeto na família atual é a razão de sua própria existência, o elemento responsável e indispensável para a sua formação, viabilidade e continuidade (RENON, 2009). Maria Berenice Dias conceitua o direito ao afeto nas relações familiares como:

[...] tudo aquilo que afeta a pessoa, que faz com que ela se mova, é a energia presente no inconsciente e no consciente do ser humano, com que se investem as representações, os símbolos, as pessoas, as ideias e até as ideologias e mitos, imprimindo-lhes uma direção, um sentido, nas ações. Os afetos de amor e ódio não existem puros. O ser humano apresenta nuanças afetivas, ou seja, sentimentos compostos de uma combinação entre amor e ódio que vai aprendendo a balizar nas relações familiares para, então, dar-lhes um sentido positivo. Essa é a função da família. (BASTOS; DIAS, 2011, p.75).

Portanto, o afeto é o elemento formador e definidor da união familiar, na qual a afetividade possui uma função de unificar e estabilizar as relações entre os membros da família, promovendo o respeito, a liberdade e a igualdade entre o grupo familiar. Desta feita, o afeto, apesar de sua relevância para a base no núcleo familiar, não é o único elemento necessário para a existência do núcleo familiar, coexistindo com outros elementos:

Além da afetividade a atual estrutura da família se mostra como veículo funcionalizador à promoção da dignidade de cada um de seus membros; respeita a autonomia da vontade que se relaciona com a liberdade de constituir e desfazer laços conjugais; resguarda a igualdade dos filhos, independente da sua origem e se são biológicos ou não. (PEREIRA apud RENON, 2009, p. 66).

O direito à afetividade então coexiste com o princípio da igualdade, em que este constitui um dos princípios basilares para as organizações jurídicas, pois está intimamente ligada a ideia de justiça. O princípio da igualdade, em linhas gerais, visa banir qualquer discriminação, respeitando as diferenças entre raças, credos e etnias, sendo todos iguais perante a lei, em prol de se promover a dignidade das pessoas e, consequentemente, promover a justiça (BARRETO, 2010).

A ideia de igualdade interessa particularmente ao Direito, pois a ela está ligada a ideia de Justiça. A Justiça é a regra das regras de uma sociedade e é ela que dá o valor moral e o respeito a todas as outras regras dessa mesma sociedade. Portanto, é a questão da Justiça que permite pensar a igualdade. (PEREIRA apud DIAS,2007? p.1-2).

Por meio do princípio da igualdade, deve-se aplicar a lei de maneira igualitária, sem estabelecimento de discriminações, independente de sexo, orientação sexual, convicções religiosas, filosóficas ou políticas, raça ou classe social (BARRETO, 2010). Dessa forma, o legislador não poderá editar leis que se afastem deste princípio, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.

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Sobre o autor
Gleiciele de Freitas Alves

Advogada graduada pela Faculdade de Estudos Administrativos (FEAD). Atuante principalmente nas áreas de Direito de Família, Direito Civil e Processo Civil e Direito Constitucional.<br><br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Gleiciele Freitas. Desconstruindo o mito: a não vulnerabilidade do idoso na escolha do regime de bens. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3957, 2 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27778. Acesso em: 16 abr. 2024.

Mais informações

Artigo científico apresentado à disciplina Elaboração de Trabalho de Conclusão de Curso do curso de Direito da FEAD sob orientação da Profª. Msc. Luciana Dadalto, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

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