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Desconstruindo o mito: a não vulnerabilidade do idoso na escolha do regime de bens

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02/05/2014 às 08:35
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4 ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL ACERCA DA OBRIGATORIEDADE DO REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS

 Segundo Diniz (2009), o casamento gera efeitos jurídicos que repercutem tanto na esfera pessoal como patrimonial dos cônjuges, uma vez que o casamento estabelece uma comunhão plena de vida, na qual os consortes assumem solidariamente encargos de cuidar do sustento e da manutenção da família, uma vez que os efeitos econômicos derivam do regime de bens escolhido, cuja função é reger as relações patrimoniais entre os cônjuges e entre terceiros interessados, durante a constância do casamento.

É importante observar que, em relação aos regimes de bens, existem três princípios basilares: a liberdade de escolha do regime; a variedade de regimes e a mutabilidade justificada.

Quanto ao princípio da liberdade de escolha do regime de bens, Dias (2011) diz que a mesma está fundada na autonomia privada dos cônjuges, onde estes têm o direito de escolher livremente o regime de bens que acharem mais conveniente, por meio do pacto antenupcial, feito por escritura pública registrada no Cartório de Imóveis. Não havendo convenção expressa dos cônjuges quanto ao regime de bens através de pacto antenupcial, será aplicado o regime supletivo de vontade, que é a comunhão parcial.

Embora os nubentes possam escolher o regime de bens que julgarem mais adequado, o legislador, em razão de proteger interesses pessoais ou determinadas situações, fundado em uma suposta razão de ordem pública, impõe aos nubentes nas hipóteses previstas no artigo 1641 do Código Civil, o regime da separação obrigatória de bens (DINIZ, 2009).

Assim, podemos concluir que, nesses casos, não haverá atendimento ao princípio da autonomia de vontade, pois em meio a uma aparência protetiva lembrando-se das propriedades de cada um dos cônjuges, não do seu di­reito de escolha, ocorre a violação da liber­dade na autonomia de decisão e ao menor no teor infraconstitucional, impedindo, em alguns casos a posterior mudança no regime de bens. (BRAGANHOLO; LINCK, 2006, p. 90).

 Assim, estabelece o Código Civil em seu artigo 1641:

É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I) das pessoas que contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II) da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III) de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. (BRASIL, 2002).

“São hipóteses verdadeiramente sancionatórias, em que o legislador impõe restrições a disponibilidade patrimonial de determinadas pessoas que resolvem casar” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 243). As pessoas, nestas hipóteses, não podem contar com a partilha dos bens comuns, não podem estabelecer sociedades, não participam dos direitos sucessórios e não há vênia conjugal para vender bens aos seus descendentes (FARIAS; ROSENVALD, 2010).

Assim, verificam-se pelo menos duas interpretações conflitantes quanto à aplicação do regime da separação legal de bens na forma disposta no art. 1.641, II, CC.

A primeira linha doutrinária e jurisprudencial é favorável à aplicação do regime da separação obrigatória de bens para as pessoas que pretendem se casar, encontrando-se com mais de setenta anos.

[...] é preciso lembrar que o direito à liberdade, tutelado na Lei Maior, em vários incisos de seu art. 5º, é o poder de fazer tudo o que se quer, nos limites resultantes do ordenamento jurídico. Portanto, os limites à liberdade individual existem em várias regras desse ordenamento, especialmente no direito de família, que vão dos impedimentos matrimoniais (art.1.521, I a VII), que vedam o casamento de certas pessoas, até a fidelidade, que limita a liberdade sexual fora do casamento (art.1.566, I). É ainda de salientar que não pode o direito de família aceitar que, se reconhecidos os maiores atrativos de quem tem fortuna, um casamento seja realizado por meros interesses financeiros, em prejuízo do cônjuge idoso e de seus familiares. (MONTEIRO, 2011, p. 302).

 No posicionamento favorável à existência e manutenção da norma jurídica, com base na tutela patrimonial, em detrimento do interesse pessoal dos idosos, Washington de Barros Monteiro utiliza as palavras do Senador Josaphat Marinho:

Como bem justificou o Senador Josaphat Marinho na manutenção do art. 1.641, II, do atual Código Civil, trata-se de prudência legislativa em favor das pessoas e de suas famílias, considerando a idade dos nubentes. É de lembrar que, conforme os anos passam, a idade avançada acarreta maiores carências afetivas e, portanto, maiores riscos corre aquele que tem mais de sessenta anos de sujeitar-se a um casamento em que o outro nubente tenha em vista somente vantagens financeiras. Possibilitar, por exemplo, a adoção do regime da comunhão universal de bens, num casamento assim celebrado, pode acarretar conseqüências desastrosas ao cônjuge idoso, numa dissolução inter vivos de sua sociedade conjugal, ou mesmo a seus filhos, numa dissolução causa mortis. (MONTEIRO, 2011, p.302).

 Como indica Venosa (2006, p. 343):

[...] o legislador compreendeu que, nessa fase da vida, na qual presumivelmente o patrimônio de um ou de ambos os nubentes já está estabilizado, e, quando não mais se consorciam no arroubo da juventude, o conteúdo patrimonial deve ser peremptoriamente afastado. A idéia é afastar o incentivo patrimonial do casamento de uma pessoa jovem que se consorcia com alguém mais idoso.

 Desta maneira, argumenta o jurista Zeno Veloso, sobre o casamento realizado entre uma pessoa idosa e uma pessoa mais nova, onde se é razoável suspeitar ser um casamento pautado somente em interesses econômicos, porque estas pessoas idosas se encontram em um estado de vulnerabilidade.

Embora reconheçamos que as pessoas de idade alta ou avançada não estão destituídas de impulsos afetivos e da possibilidade de sentirem amor, ternura, pretendendo, desinteressadamente, unir-se matrimonialmente com outrem, devemos também concordar que, na prática, será muito difícil acreditar-se que uma jovem de 18, 20 anos, esteja sinceramente apaixonada por um homem maior de 60 anos, nem, muito menos, que um rapaz de 20 anos venha a sentir amor e pura ou verdadeira atração por uma senhora de mais de 50 anos. Tirando as honrosas exceções de praxe, na maioria dos casos, é razoável suspeitar-se de um casamento por interesse. [...] Achamos, porém, que a regra protetiva - o casamento sob o regime imperativo da separação - deve ser mantida. Os amores crepusculares tornam as pessoas presas fáceis de gente esperta e velhaca, que quer enriquecer por via de um casamento de conveniência [...] (VELOSO apud NORONHA, 2011, p.62).

 Frederico Liserre Barruffini (2008) entende que, nos dias atuais, não se pode afirmar que o idoso estaria menos vulnerável a golpes pois, ainda, no Brasil, pessoas idosas bem instruídas fazem parte de uma parcela minoritária.

Uma é a situação do sexagenário pertencente às classes sócio-econômicas mais abastadas. Se se encomendasse uma pesquisa, constatar-se-ia que esta categoria de sexagenários, em regra, dedicou-se aos trabalhos intelectuais, que lhe exigiram o uso constante das faculdades mentais, seja pela necessidade perene de estudo e atualização, seja pela complexidade dos trabalhos que lhe foram submetidos no decorrer de sua trajetória profissional. Portanto, é natural supor que aos 60, 70, 80 anos, dificilmente estará em situação de vulnerabilidade. Porém, num país desigual como o Brasil, essa parcela corresponde a uma minoria. Distinta dessa minoria é a situação de um trabalhador braçal, de um metalúrgico ou de um motorista (todos, geralmente, com baixo grau de instrução) que conseguiram amealhar algum patrimônio ao cabo de suas vidas. Com relação a eles, certamente, há uma probabilidade maior de vulnerabilidade na hipótese visada pelo legislador, resultado do baixo grau de instrução, do desconhecimento da lei, da falta de recursos [...] (BARRUFFINI, 2008, s.p.).

No entanto, não podemos deixar de considerar que as pessoas que chegaram a esta idade já angariaram experiências suficientes, independente do seu grau de escolaridade, da condição financeira ou das suas qualificações profissionais. E, assim, como no entender de Caio Mário da Silva Pereira (2011), a eventual desconfiança a constituição de casamento fundada apenas em interesses patrimoniais, pode ocorrer em qualquer faixa etária da vida, razão pela qual esta regra não encontra justificativa econômica ou moral.

A jurisprudência, por sua vez, vem flexibilizando a imposição legal do regime da separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos, passando a considerar este dispositivo legal, discriminatório e preconceituoso, sendo reconhecida como clara afronta aos princípios constitucionais ao respeito à dignidade humana, da igualdade e da liberdade, realizando, desta forma, um controle de constitucionalidade difuso, onde se reconhece a inconstitucionalidade do dispositivo, velando pela efetividade dos princípios constitucionais, enquanto não é excluído este dispositivo do Código Civil (GONÇALVES, 2010).

Mas, embora as decisões jurisprudenciais tendam a considerar o artigo 1641, II do CC/2002 inconstitucional, há decisões favoráveis à aplicação da referida norma, afirmando que não existe qualquer afronta à constituição:

 USUCAPIÃO - REGIME DE SEPARAÇÃO TOTAL DE BENS OBRIGATÓRIO - ART. 1641, II, CC - SUCESSÃO HEREDITÁRIA - DIREITO DOS DESCENTENTES DO "DE CUJUS". O CÔNJUGE SOBREVIVENTE, CASADO SOB O REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS, NÃO É HERDEIRO DO FALECIDO, QUANDO HÁ A CONCORRÊNCIA COM DESCENDENTES DAQUELE.

[...] É importante asseverar que o art. 1.641, II, do CC tem por objetivo a proteção das pessoas maiores de 60 anos contra casamentos interesseiros, em detrimento da prole, para evitar vantagem econômica indevida não padecendo de qualquer inconstitucionalidade (MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Ap. 1.0686.01.024088-1/001, Rel. Des. Antônio de Pádua, DJMG 30/10/2008).

Neste mesmo sentido, apesar de não ter se pronunciado expressamente sobre a constitucionalidade do referido artigo, a Ministra Nancy Andrigui, do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, ressaltou em sua decisão o caráter protetivo da disposição normativa, em defesa das pessoas que se encontra nesta faixa etária que, desejando se casar, não fiquem desamparadas legalmente, diante de pessoas enganadoras, que possam induzi-las a erro, com o objetivo de obter vantagens econômicas.

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DIREITO PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA DO MAGISTRADO DESIGNADO EM PORTARIA DA PRESIDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PARA AUXILIAR EM VARA CÍVEL. POSSIBILIDADE DE PROFERIR SENTENÇA DURANTE AS FÉRIAS FORENSES, APESAR DE DESIGNADO PARA EXERCER SUAS FUNÇÕES EM VARA DIVERSA. CONVALIDAÇÃO POR PORTARIA SUPERVENIENTE QUE DETERMINA SEU RETORNO COMO AUXILIAR DA ANTERIOR VARA CÍVEL. DIREITO CIVIL. REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS. SEXAGENÁRIO. ART. 258, INCISO II DO CÓDIGO CIVIL. DOAÇÃO DE IMÓVEL AO CÔNJUGE. VIOLAÇÃO DE NORMA DE ORDEM PÚBLICA. NULIDADE. SIMULAÇÃO DE COMPRA E VENDA. CONTRATO DISSIMULADO DE DOAÇÃO. VÍCIO SOCIAL. ART. 104 DO CÓDIGO CIVIL. LEGITIMIDADE DO DOADOR, SEXAGENÁRIO, EM VIRTUDE DE DISPOSIÇÃO LEGAL DE NATUREZA PROTETIVA. FALTA DE CAPACIDADE ATIVA PARA PROCEDER À DOAÇÃO. AUSÊNCIA DE REQUISITO DE VALIDADE DO ATO JURÍDICO.

[...] Viola o art. 258, inciso II do Código Civil a disposição patrimonial gratuita (simulação de contrato de compra e venda, encobrindo doação) que importe comunicação de bens não adquiridos por esforço comum, independente da natureza do negócio jurídico que importou em alteração na titularidade do bem, porque é obrigatório, no casamento do maior de sessenta anos, o regime obrigatório de separação quanto aos bens entre os cônjuges. [...] Tratando-se de ato simulado malicioso, com infração de ordem pública, de natureza protetiva de uma das partes, esta - que pretendeu contornar a norma protetiva, instituída em seu favor, buscando renunciar o favor legal por via transversa - tem legitimidade para requerer sua declaração de nulidade. [...] Há possibilidade jurídica no pedido de supressão da doação, ainda que esta não tenha sido feita por escritura pública, porque a causa de pedir é a invalidade do negócio jurídico que importou em transferência gratuita de bem imóvel, e, em conseqüência, de todos os atos que o compõem, violadores do regime obrigatório de separação de bens do sexagenário. O fundamento jurídico da nulidade do contrato que importou em disposição patrimonial é o distanciamento, a burla, a contrariedade do regime do art. 258, II do Código Civil (DISTRITO FEDERAL, Superior Tribunal de Justiça, REsp 260462 PR 2000/0051074-2, Relª. Ministra Nancy Adrighi, DJ 17/04/2001).

A segunda linha doutrinária e jurisprudencial, por sua vez, se posiciona no sentido de que a referida restrição seja incompatível com a normativa constitucional.

[...] a hipótese é atentatória do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-la à tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz. Conseqüentemente, é inconstitucional esse ônus. (LÔBO, 2003, p. 242).

Utilizando-se das palavras de Rolf Madaleno, Maria Berenice Dias argumenta que estabelecer o regime compulsório de separação de bens aos maiores 70 anos é ignorar princípios elementares de Direito Constitucional:

Em face do direito à igualdade e à liberdade ninguém pode ser discriminado em função do sexo ou idade, como se fossem causas de incapacidade civil. Atinge direito cravado na porta de entrada da Carta política de 1988, cuja nova tábua de valores coloca em linha de prioridade o princípio da dignidade humana. (MADALENO apud DIAS, 2011, p.249).

Neste mesmo sentido, entende Farias e Rosenvald (2010, p.245):

Efetivamente, trata-se de dispositivo legal inconstitucional, às escâncaras, ferindo frontalmente o fundamental princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art.1º, III), por reduzir a sua autonomia como pessoa e constrangê-lo pessoal e socialmente, impondo uma restrição que a norma constitucional não previu.

 Os autores ainda argumentam que tal norma atenta à prioritária dedicação prevista no estatuto do idoso restringindo, indevidamente, a sua autodeterminação, em decorrência de uma cultura patrimonialista, que valoriza mais o patrimônio do que a pessoa (FARIAS; ROSELVALD, 2010).

 Desta mesma forma, entende Maria Berenice Dias (2011, p. 248):

Das várias previsões que visam a suspender a realização do casamento, nenhuma delas justifica o risco de gerar enriquecimento sem causa. Porém, das hipóteses em que a lei determina o regime de separação obrigatória de bens, a mais desarrazoada é a que impõe tal sanção aos nubentes maiores de 70 anos (CC 1.641 II), em flagrante afronta ao Estatuto do Idoso. A limitação da vontade, em razão da idade, longe de se constituir em uma precaução (norma protetiva), se constitui em verdadeira sanção.[...] aos idosos, há presunção jure et de jure de total incapacidade mental. De forma aleatória e sem buscar sequer algum subsídio probatório, o legislador limita a capacidade de alguém exclusivamente para um único fim: subtrair a liberdade de escolher o regime de bens quando do casamento.

 A jurisprudência, como já dito anteriormente, vem passando a considerar este dispositivo legal, discriminatório e preconceituoso. Desta forma, encontramos, na jurisprudência pátria, vários posicionamentos a favor da inconstitucionalidade do tratado dispositivo normativo. Mas, não há como deixar de mencionar a conhecida decisão do ilustre Ministro do STF Cezar Peluso, quando ainda exercia o cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na qual sua decisão tornou-se paradigma em diversos outros julgados.

 No referido julgado, Cezar Peluso afirma que o inciso II do artigo 258, correspondente ao artigo 1641 do CC/2002, não acompanha as conseqüentes exigências éticas de respeito à dignidade humana e entende que considerar estas pessoas como absolutamente incapazes de poder escolher o regime em que deseja contrair núpcias é uma autêntica ficção jurídico-normativa, baseada em critério arbitrário e de falsa indução, ainda, que a consciência jurídica contemporânea não possa tolerar esta situação, por demais discriminatória e preconceituosa, sob a aparência e presunção de absoluta legalidade.

 Prossegue Peluso, afirmando que a evolução das capacidades intelectuais e econômicas da sociedade, afetando e incrementando a expectativa e qualidade de vida, comprova que a idade da experiência, da maturidade, não tende a se corromper, mas a se atualizar nas suas virtudes. Podendo-se afirmar, irracional e injusto, o alcance da norma, sem a observância da dignidade da pessoa humana, por desconsiderar, de modo absoluto, a realidade particular de cada indivíduo, quando a capacidade de autodeterminação afronta aos princípios basilares da constituição.

 In verbis, a decisão:

DOAÇÃO - CONTRATO CELEBRADO ENTRE CONCUBINOS, QUE DEPOIS VIERAM A CASAR-SE. DOADOR JÁ SEXAGENÁRIO. VALIDEZ. ATOS NÃO AJUSTADOS EM PACTO ANTENUPCIAL, NEM CONDICIONADOS À REALIZAÇÃO DO CASAMENTO. INOCORRÊNCIA DE FRAUDE À LEI. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 312, C/C O ARTIGO 258, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL. É VÁLIDA, EMBORA FEITA POR DOADOR JÁ SEXAGENÁRIO À COMPANHEIRA COM QUE VEIO A CASAR-SE DEPOIS, DOAÇÃO NÃO AJUSTADA EM PACTO ANTENUPCIAL, NEM CONDICIONADA DOUTRO MODO À REALIZAÇÃO DO CASAMENTO. CASAMENTO - REGIME DE BENS. SEPARAÇÃO LEGAL OBRIGATÓRIA. NUBENTE SEXAGENÁRIO. DOAÇÃO À CONSORTE. VALIDEZ. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 258, PARÁGRAFO ÚNICO, II, DO CÓDIGO CIVIL, QUE NÃO FOI RECEPCIONADO PELA ORDEM JURÍDICA ATUAL. NORMA JURÍDICA INCOMPATÍVEL COM OS ARTIGOS 1º, III, E 5º, I, X E LIV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL EM VIGOR. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO ANULATÓRIA. IMPROVIMENTO AOS RECURSOS. É VÁLIDA TODA DOAÇÃO FEITA AO OUTRO PELO CÔNJUGE QUE SE CASOU SEXAGENÁRIO, PORQUE, SENDO INCOMPATÍVEL COM AS CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS DE TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA IGUALDADE JURÍDICA E DA INTIMIDADE, BEM COMO COM A GARANTIA DO JUSTO PROCESSO DA LEI, TOMADO NA ACEPÇÃO SUBSTANTIVA (SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW), JÁ NÃO VIGE A RESTRIÇÃO CONSTANTE DO ARTIGO 258, PARÁGRAFO ÚNICO, II, DO CÓDIGO CIVIL.

[...] é que seu sentido emergente, o de que varão sexagenário e mulher qüinquagenária não têm liberdade jurídica para dispor acerca do patrimônio mediante escolha do regime matrimonial de bens, descansa num pressuposto extrajurídico óbvio, de todo em todo incompatível com as representações dominantes da pessoa humana e com as conseqüentes exigências éticas de respeito à sua dignidade, à medida que, por via de autêntica ficção jurídico-normativa, os reputa a ambos, homem e mulher, na situação típica de matrimônio, com base em critério arbitrário e indução falsa, absolutamente incapazes para definirem relações patrimoniais do seu estado de família. [...] Noutras palavras, decretou-se, com vocação de verdade legal perene, embora em assunto restrito, mas não menos importante ao destino responsável das ações humanas, a incapacidade absoluta de quem se achasse, em certa idade, na situação de cônjuge, por, deficiência mental presumida "iuris et de iure" contra a natureza dos fatos sociais e a inviolabilidade da pessoa. Essa regra anacrônica e caprichosa argúi a consciência jurídica contemporânea, a qual não pode tolerar a consagração nomológica de um preconceito injurioso e rebarbativo, mal dissimulado sob a aparência de presunção legal absoluta, que, não correspondendo à verdade dos fatos ordinários nem comportando justificação autônoma, assume os contornos de ficção ilegítima, suscetível de invalidação judicial. Reduzir, com pretensão de valor irrefutável e aplicação geral, homens e mulheres, considerados no ápice teórico do ciclo biológico e na plenitude das energias interiores, à condição de adolescentes desvairados, ou de neuróticos obsessivos, que não sabem guiar-se senão pelos critérios irracionais das emoções primárias, sem dúvida constitui juízo que afronta e amesquinha a realidade humana, sobretudo quando a evolução das condições materiais e espirituais da sociedade, repercutindo no grau de expectativa e qualidade de vida, garante que a idade madura não tende a corromper, mas a atualizar as virtualidades da pessoa, as quais constituem o substrato sociológico da noção da capacidade jurídica. [...] A eficácia restritiva da norma estaria, ainda, a legitimar e perpetuar verdadeira degradação, a qual, retirando-lhe o poder de dispor do patrimônio nos limites do casamento, atinge o cerne mesmo da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República. (SÃO PAULO, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Ap. nº 007.512-4/2-00, Rel. Des. Cezar Peluso; DJSP 18/08/1998).

 Nessa mesma direção, destaca-se a seguinte decisão judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, cuja relatora declara atentatória, a aplicação do artigo 1641, II CC, por violar a liberdade individual:

ANULAÇÃO DE DOAÇÃO - PRELIMINARES - REJEIÇÃO - CASAMENTO REALIZADO PELO REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA - CONJUGÊ SEXAGENÁRIO - VALIDADE DA DOAÇÃO FEITA À ESPOSA DESDE QUE OBSERVADA A LEGÍTIMA - PRINCÍPIO DA LIVRE DISPOSIÇÃO DOS BENS. Alargar o sentido da norma prevista no artigo 1641, II do CC para proibir o sexagenário, maior e capaz, de dispor de seu patrimônio da maneira que melhor lhe aprouver, é um atentado contra a sua liberdade individual. A aplicação da proibição do cônjuge, já de tenra idade, fazer doação ao seu consorte jovem, deve ser aplicada com rigor naquelas hipóteses onde se evidencia no caso concreto que o nubente mais velho já não dispõe de condições para contrair matrimônio, deixando claro que este casamento tem o único objetivo de obtenção de vantagem material. [...] o atualíssimo Diploma Civil de 2002, que, tantas inovações progressista nos trouxe, nesta parte manteve este censurável atentado contra a liberdade individual de pessoas maiores e capazes, fazendo uma odiosa discriminação contra estas pessoas, ferindo o seu direito de livre disposição do patrimônio adquirido com seu trabalho, [...] alargar o sentido da norma para proibir o sexagenário, maior e capaz, repita-se, de dispor de seu patrimônio da maneira que melhor lhe aprouver é, como dito acima, um atentado contra a sua liberdade individual (MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Ap.1.0491.04.911594-3/001, Relª. Desª. Vanessa Verdolim Hudson Andrade, DJMG 29/03/2005).

 Não podemos também, deixar de citar a incidência da Súmula 377 do STF, uma vez que a restrição legal imposta à liberdade de escolha dos regimes de bens pelo Art.1641 é, de modo particular, tão despropositado que a própria jurisprudência cuidou de exceder sua aplicação, editando a Súmula 377, na qual se diz: “no regime de separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.” Assim, nos casamentos celebrados pelo regime da separação obrigatória de bens, os aquestos se comunicam, presumindo o esforço comum do casal, sob pena de violar a proibição do enriquecimento ilícito e a solidariedade que deve existir nas relações familiares.

Todavia, a doutrina traz alguns entendimentos com o objetivo de conseguir realizar um equilíbrio entre a imposição legal e os Princípios Constitucionais.

 Partindo da premissa de que a intenção legislativa é a proteção de determinados interesses, o caminho mais adequado para harmonizar, com respeito ao Texto Constitucional, os diferentes interesses albergados, será, sem dúvida, determinar aos nubentes uma declaração de titularidades patrimoniais quando da habilitação para o casamento, de modo a precaver, reciprocamente, os direitos.  (CANUTO apud FARIAS;ROSENVALD, 2010, p.210)

Já Farias e Rosenvald (2010), defendem que não há outra solução, a não ser a retirada da norma do ordenamento jurídico:

A única solução cabível, por certo, é desatrelar a idade das limitações impostas à escolha do regime de bens. Afinal, não se esqueça que um homem com sessenta ou setenta anos pode (e isso acontece com freqüência) chefiar o Poder Executivo e escolher os destinos econômicos de toda a nação, malgrado não possa, estranhamente, escolher o seu próprio regime de bens. A melhor orientação, portanto, é reconhecer que a norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente inconstitucional [...]. (FARIAS;ROSENVALD, 2010, p.247).

O entendimento da pesquisadora, assim como o da citada doutrina acima, é o de que não há razão para existir tal imposição aos maiores de 70 anos, uma vez que não há uma fundamentação científica benevolente para aceitar esta restrição, sendo nítida a inconstitucionalidade do referido artigo, por introduzir um preconceito desvantajoso em relação aos idosos, simplesmente porque já atingiram certa idade, presumindo a sua incapacidade para contrair matrimonio pelo regime de bens que melhor lhe atender, sendo que a plena capacidade mental deve ser aferida em cada caso concreto, não podendo a lei presumi-la e, ainda, de forma generalizada.

Assim, como entende Maria Berenice Dias (2007?), não se pode haver esta presunção de incapacidade dos idosos, pois, uma vez adquirida a capacidade, pela maioridade, a mesma só pode ser afastada por meio de um processo judicial, ferindo, desta forma, a autonomia do idoso e a sua igualdade de tratamento, ferindo a sua dignidade.

Entendemos que não há razão para existir esta imposição legal, pois a própria doutrina, quando tenta justificar esta restrição imposta pelo legislador, esbarra em uma visão defasada, preconceituosa e generalizada, de que todo casamento realizado entre uma pessoa idosa e uma pessoa mais jovem seja, presumidamente, por interesses econômicos.

A esse respeito, Maria Helena Diniz observa a lição de Silvio Rodrigues:

É verdade, que a proibição não se circunscreve apenas ao casamento de mancebo com sexagenária, ou ao casamento de sexagenário com mulher jovem, casamentos esses em que, mais frequentemente, a busca de vantagem material se manifesta, porém abrange o casamento da mulher e do homem com mais de 60 anos. Aliás, talvez se possa dizer que uma das vantagens da fortuna consiste em aumentar os atrativos matrimoniais de quem a detém. Não há inconveniente social de qualquer espécie em permitir que um sexagenário ou uma quinquagenária ricos se casem pelo regime da comunhão, se assim lhes aprouver. (RODRIGUES apud DINIZ, 2009, p.193).

Como já abordado na primeira seção do presente artigo, o número de casamentos entre pessoas idosas vem aumentando, sendo que, entre muitos destes idosos, existem os que estão bem estabilizados financeiramente. Não é razoável restringir o seu direito de livre escolha, que limita suas vontades e seus desejos, simplesmente pelo fato de já terem atingido a idade de 70 anos. Tal restrição fere, frontalmente, suas dignidades e lhes reduz a capacidade, apenas por serem idosos, por apenas se presumirem vulnerabilidade e facilidade de serem seduzidas por falsos afetos ou paixões.

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Sobre o autor
Gleiciele de Freitas Alves

Advogada graduada pela Faculdade de Estudos Administrativos (FEAD). Atuante principalmente nas áreas de Direito de Família, Direito Civil e Processo Civil e Direito Constitucional.<br><br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Gleiciele Freitas. Desconstruindo o mito: a não vulnerabilidade do idoso na escolha do regime de bens. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3957, 2 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27778. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Artigo científico apresentado à disciplina Elaboração de Trabalho de Conclusão de Curso do curso de Direito da FEAD sob orientação da Profª. Msc. Luciana Dadalto, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

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