RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR NÃO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DE COMPROVADA EFICÁCIA.
RESUMO
O direito fundamental à saúde, embora encontrando amparo nas posições jurídico-constitucionais que tratam do direito à vida, à dignidade da pessoa humana e à proteção da integridade física, recebeu no Texto Constitucional prescrição autônoma nos artigos 6º e 196.
Mesmo que situado, como comando expresso, fora do catálogo do artigo 5º da Constituição Federal, importante destacar que o direito à saúde ostenta o rótulo de direito fundamental, seja pela disposição do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal, seja pelo seu conteúdo material, que o insere no sistema axiológico fundamental (valores básicos) de todo o ordenamento jurídico.
Incumbe ao administrador, pois, empreender esforços para máxima consecução da promessa constitucional, em especial aos direitos e garantias fundamentais. Desgarra deste compromisso, a conduta que se escuda na ideia de que o preceito constitucional constitui “lex imperfecta”, reclamando complementação ordinária, porquanto olvida-se que, ao menos, emana da norma eficácia que propende ao reconhecimento do direito subjetivo ao mínimo existencial; casos há, inclusive, que a disciplina constitucional foi além na delineação dos elementos normativos, alcançando, então, patamar de eficácia superior que o mínimo conciliável com a fundamentalidade do direito.
A escassez de recursos públicos, em oposição à gama de responsabilidades estatais a serem atendidas, tem servido de justificativa à ausência de concretização do dever-ser normativo, fomentando a edificação do conceito da ‘reserva do possível’. Porém, tal escudo não imuniza o administrador de adimplir promessas que tais, vinculadas aos direitos fundamentais prestacionais, quanto mais considerando a notória destinação de preciosos recursos públicos para áreas que, embora também inseridas na zona de ação pública, são menos prioritárias e de relevância muito inferior aos valores básicos da sociedade, representados pelos direitos fundamentais.
INTRODUÇÃO
O presente estudo vem centrado na responsabilidade civil do Estado resultante de omissões da Administração, inserida no Poder Executivo, pelo não fornecimento de medicamentos de comprovada eficácia.
Em princípio, importa lembrar que o Estado, na qualidade de pessoa jurídica, é um ser intangível. Somente se faz presente no mundo jurídico por meio de seus agentes, pessoas físicas cuja conduta é a ele imputada. O Estado, por si só, não pode causar danos a ninguém.
Assim, o cenário concernente ao tema objeto do nosso estudo compõe-se de três sujeitos: o Estado, o lesado e o agente do Estado. Nesta seara, o Estado, conforme o direito positivo, é civilmente responsável pelos danos que seus agentes nessa qualidade causarem a terceiros, ficando obrigado a reparar os prejuízos causados por meio das respectivas indenizações.
A matéria é estudada também sob outros títulos: responsabilidade patrimonial do Estado, responsabilidade extracontratual do Estado, responsabilidade civil da Administração, responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado.
O Estado muitas vezes causa danos ou prejuízos aos indivíduos, gerando a obrigação de reparação patrimonial, decorrente da responsabilidade civil. Assim, enquanto sujeito de direito, o Estado submete-se a responsabilidade civil, prevendo a Constituição Federal que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A responsabilidade patrimonial e extracontratual do Estado, por comportamentos administrativos, origina-se da teoria da responsabilidade pública, com destaque para a conduta ensejadora da obrigação de reparabilidade, por danos causados por ação do Estado, por via de ação ou omissão. O dever público de indenizar depende de certas condições, quais sejam, a correspondência da lesão a um direito da vítima, devendo o evento implicar prejuízo econômico e jurídico, material ou moral.
Essa responsabilidade não se confunde com a responsabilidade civil contratual do Estado, que deve ser analisada sobre a óptica dos contratos administrativos.
A doutrina e a jurisprudência brasileiras ainda não se pacificaram acerca da natureza da responsabilidade civil do Estado por conduta omissiva. A divergência gira em torno do questionamento sobre a revogação tácita, ou derrogação, do artigo 15 do Código Civil de 1916, artigo 43 do novo Código Civil, frente ao artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal de 1988.
Sobre o assunto há duas posições, uma seguindo os argumentos de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, continuada por Celso Antônio Bandeira de Mello, que defende que a responsabilidade do Estado por conduta omissiva tem natureza subjetiva, com base legal no artigo 15 do antigo Código Civil, restando, portanto, como de natureza objetiva apenas a responsabilidade por condutas comissivas. Outra defende a teoria da responsabilidade objetiva tanto para a conduta comissiva com para a omissiva, aplicando-se, para ambas, a norma do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal.
Atualmente, essa divergência vem alcançando o Poder Judiciário, causando um entrave no curso dos processos, em razão das discussões sobre qual a natureza jurídica da responsabilidade do Estado por condutas omissivas que geraram danos.
Para maior entendimento da responsabilidade do Estado por condutas omissivas, devemos traçar preliminarmente algumas considerações sobre a responsabilidade civil privada e geral, pelo que as desenvolveremos nos itens seguintes, posto que a responsabilidade do Estado é responsabilidade civil, à qual são aplicados, todavia, princípios peculiares.
Por demais, ressaltaremos o fato de que é direito de todos e dever do Estado assegurar aos cidadãos a saúde, adotando políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e permitindo o acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, a teor do disposto nos artigos 6° e 196 da Constituição Federal.
Destacaremos ainda, que se o Sistema Único de Saúde - SUS - visa à assistência aos indivíduos por meio de ações que proporcionem tratamento médico gratuito, afigura-se impraticável alegar a legalidade orçamentária - ‘reserva do possível’ - como forma de obstaculizar a efetivação de fornecimento de um medicamento de comprovada eficácia, visto que tal princípio não pode preponderar sobre o direito à vida e à saúde.
Ainda, procuraremos abordar o fato de que embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição Federal, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.
Por fim, teceremos um breve comentário sobre o tema da desjudicialização da saúde, como uma meta a ser alcançada para o adequado funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
CAPÍTULO 1 - A RESPONSABILIDADE CIVIL
1.1 - Evolução histórica
Em Roma, distinguiam-se duas modalidades de delitos: delitos privados e delitos públicos.
Delitos privados eram os que atingiam as pessoas ou os bens de um particular, culminando com um processo diante das jurisdições civis ordinárias. A indenização devia ser pleiteada pela vítima. Eram os “judicia privata”. A vítima tinha direito a uma multa paga pelo infrator.
Delitos públicos eram os que atingiam a cidade, o Estado, podendo ser citado como exemplo, o sacrifício, originando como um processo penal diante de tribunais especiais, as “questiones perpetuae”[1]. Qualquer cidadão podia dar início ao processo. Eram os “judicia publica”. Acarretavam penas corporais, como morte, exílio, etc., ou pecuniárias, que eram revertidas ao Estado e não à vítima.
Entre os delitos privados, mencionados na Lei das XII Tábuas, tínhamos os fatos ilícitos contra a propriedade, o “furtum” e a “noxia”[2], bem como contra a pessoa, a injúria.
Na época clássica, tais delitos privados eram considerados como fonte de obrigações pecuniárias. Davam origem a obrigações sancionadas por ações penais, que asseguravam a punição do culpado por meio de uma importância paga à vítima.
Em Roma, o sistema de delitos privados eram explicados pela história do direito penal, configurando quatro fases, quais sejam: vingança privada, composições voluntárias, composições legais e repressão pelo Estado.
Nos primórdios, a vítima de um delito ou seus parentes, de armas na mão, buscavam retribuir o mal pelo mal, sem método, sem sistema, sem proporcionalidade. Foi a fase da vingança privada não regulamentada.
Tempos depois se chegou à pena de talião, ou seja, dente por dente, olho por olho. A pena de talião trouxe consigo um grande progresso na história do direito, pois em fase anterior, o delito praticado por uma pessoa era pago, não só por ela, como também por outros membros de sua família. Com a pena de talião, o castigo alcançava apenas o autor do delito, esboçando-se, assim, a ideia de proporção entre a ofensa e o castigo. Foi a fase da vingança privada regulamentada.
Em fase seguinte, a vítima do delito passou a ter duas opções: ou exercia a vingança privada e, nesse caso, não tinha direito a nenhuma composição pecuniária, ou renunciava ao direito de vingança, mediante um resgate, em dinheiro, acordado pelas partes. Foi a fase da composição voluntária.
Ulteriormente, o poder público, de que se achava investido o chefe do grupo, interveio na distribuição da justiça. A composição passou a ser obrigatória. A lei fixou para cada tipo de delito, certa soma, cujo autor era obrigado a pagar, submetendo-se a vítima ao quantum fixado. Foi a fase da composição legal.
Finalmente, em fase bem posterior, a vingança privada e as composições, quer voluntárias, quer legais, foram abandonadas, arregimentando o Estado a si, a faculdade de repudiar os delitos.
A evolução do tema só ocorreu com a introdução, nos conceitos jus-romanísticos, da Lex Aquília de Damno, que promanou dos tempos da República e sedimentou a ideia de reparação pecuniária, em razão do valor da res.
Para Cretella Júnior (1977, p. 312-313):
“As obrigações resultantes de atos ilícitos constituem um dos mais importantes capítulos do moderno direito privado, encontrando seu alicerce mais profundo, no direito romano e, mais precisamente, na famosa Lei Aquília.
[...]
A Lei Aquília era um plebiscito votado por proposição dum tribuno da plebe, Aquílio, mais ou menos em fins do quinto século. Era uma lei de circunstância, provocada pelos plebeus que desse modo se protegiam contra os prejuízos que lhes causavam os patrícios nos limites de suas propriedades. Trata-se, aliás, da reunião de disposições anteriores dispersas, agrupadas em bloco.
[...]
No regime da Lei Aquília, foi introduzido um novo delito civil, o damnum injuria datum, isto é, prejuízo causado à coisa alheia, delito que, à semelhança do furto, empobrece a vítima, sem, no entanto, enriquecer seu autor.
[...]
Para que o prejuízo, tal como é defendido pelos capítulos I e III da Lei Aquília, constituíssem o delito sancionado pela actio legis Aquiliae, era preciso que fosse dirigido à coisa alheia, injuria e corpore corpori.”
Com relação à culpa, há algumas controvérsias entre os autores a respeito de suas origens. De um lado, sustentam que a ideia de culpa era estranha à Lei Aquília; de outro, afirmam que esta lei não a negava, defendendo sua presença como elementar na responsabilidade civil.
Para Silvio Rodrigues (2002, p. 4):
“De fato, o anseio de obrigar o agente causador do dano a repará-lo se inspira nos mais estritos princípios de justiça, principalmente quando o prejuízo foi causado intencionalmente. Nesse caso, além de amparar-se a vítima, pune-se o delinqüente. Contudo, a questão se apresenta diversa se o dano resultou de mera culpa do agente, e, principalmente, de culpa levíssima. De acordo com o princípio tradicional, desde que haja culpa, ainda que levíssima, deve o agente indenizar integralmente a vítima. In lex Aquilia et levissima culpa venit. Tal indenização deve ser integral e completa, por maior que seja o prejuízo.”
A teoria da responsabilidade se concretizou por intermédio da doutrina, principalmente a desenvolvida pelos juristas franceses Domat e Pothier, responsáveis pelo Princípio da Responsabilidade Civil e que influenciou quase todas as legislações que se fundaram na culpa.
Para Silvio Rodrigues (2002, p. 4-5):
“O legislador de 1916 não deu à questão da responsabilidade civil um disciplinamento sistemático. Na Parte Geral, em dois artigos (159 e 160), consignou a regra geral da responsabilidade aquiliana e registrou algumas excludentes; ao depois compendiou, na Parte Especial, em dois diversos capítulos, outros dispositivos sobre o tema. Isso tudo, data vênia, sem muita ordem, nem muita sistematização.
Sua atitude encontra escusa no fato de que, no momento em que se elaborou o projeto e foi ele discutido, a responsabilidade civil não havia alcançado, quer no campo teórico, que no prático, a enorme difusão que passou a desfrutar mais tarde.
[...]
Realmente, enquanto em muitos países, principalmente na França, as questões de responsabilidade civil representam alta porcentagem dos feitos ajuizados, no Brasil, embora numerosas, não atingem cifras tão elevadas. Isso se deve, pelo menos em parte, acredito, ao menor desenvolvimento, entre nós, do seguro de responsabilidade.”
Contudo, verificamos que o contrato de seguro é a melhor forma de se corrigir esse inconveniente. Por meio do contrato de seguro, o encargo de reparar o dano é pulverizado entre os segurados e, caso obrigatório ou extremamente difundido, o dever de indenizar atingirá indiretamente toda a sociedade. À sociedade caberá absorver o prejuízo sofrido pela vítima. Desse modo se consegue evitar que o dever de indenizar faça do responsável uma outra vítima.
Com o decorrer dos tempos foram surgindo certos princípios gerais, e a responsabilidade civil evoluiu sob o prisma de seu fundamento, embasando o dever de reparar o dano não somente quando houvesse culpa, responsabilidade subjetiva, como também pela Teoria do Risco, passando aquela a ser objetiva, sob o fundamento de que todo risco deve ser garantido, independentemente da existência de culpa ou dolo do agente causador do dano.
Para Roberto Gonçalves (1995, p. 6):
“A responsabilidade objetiva funda-se num princípio de equidade, existente desde o Direito Romano: aquele que lucra com a situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes (ubi emolumentum, ibi ônus; ubi commoda, ibi incommoda). Quem aufere os cômodos (ou lucros), deve suportar os incômodos (ou riscos.”
Quanto à indenização, impera o princípio da responsabilidade patrimonial, ou seja, o lesante responde com o seu patrimônio pelos prejuízos causados a terceiros. Deverá haver plena e total reparação dos direitos do lesado “restitutio in integrum”[3], até onde suportarem as forças do patrimônio do devedor, ensejando uma compensação pelo prejuízo sofrido.
No direito brasileiro houve três fases distintas. Na primeira, as Ordenações do Reino sustentavam-se no direito romano, aplicando-o como subsidiário do direito pátrio, devido à chamada Lei da Boa Razão (Lei de 18 de agosto de 1769). A segunda fase concentrou-se no Código Criminal de 1830, que difundiu a ideia de satisfação, ou seja, o ressarcimento do dano, o que é usado até hoje. A terceira fase distinguiu a responsabilidade civil da penal, concentrando a satisfação do prejuízo decorrente do delito na legislação civil.
1.2 - Conceito de responsabilidade
Para Savatier, citado por Silvio Rodrigues (2002, p.6):
“A responsabilidade civil vem definida por Savatier como a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam”.
Para Queiroz Telles (1995, p. 409), “A noção de responsabilidade implica a ideia de resposta, termo que, por sua vez, deriva do vocábulo verbal latino respondere, com o sentido de responder, replicar.”
Como bem salientou Carvalho Filho (2009, p. 519):
“De fato, quando o Direito trata da responsabilidade, induz de imediato a circunstância de que alguém, o responsável, deve responder perante a ordem jurídica em virtude de algum fato precedente.
Esses dois pontos – o fato e a sua imputabilidade a alguém – constituem pressupostos inafastáveis do instituto da responsabilidade. De um lado, a ocorrência do fato é indispensável, seja ele de caráter comissivo ou omissivo, por ser ele o verdadeiro gerador dessa situação jurídica. Não pode haver responsabilidade sem que haja um elemento impulsionador prévio. De outro, é necessário que o indivíduo a que se impute responsabilidade tenha a aptidão jurídica de efetivamente responder perante a ordem jurídica pela ocorrência do fato.
No que diz respeito ao fato gerador da responsabilidade, não está ele atrelado ao aspecto da licitude ou ilicitude. Como regra, é verdade, o fato ilícito é que acarreta a responsabilidade, mas, em ocasiões especiais, o ordenamento jurídico faz nascer a responsabilidade até mesmo de fatos lícitos. Nesse ponto, a caracterização do fato como gerador da responsabilidade obedece ao que a lei estabelecer a respeito.”
Ainda, como observado por Serpa Lopes (1996, p. 550-551):
“A violação de um direito gera a responsabilidade em relação ao que a perpetrou. Todo ato executado ou omitido em desobediência a uma norma jurídica, contendo um preceito de proibição ou de ordem, representa uma injúria privada ou uma injúria pública, conforme a natureza dos interesses afetados, se individuais ou coletivos.”
Portanto, podemos certificar que a responsabilidade pode apresentar-se sob várias matizes, sendo ela de natureza civil, administrativa ou penal. Contudo, como objeto do nosso estudo, ater-nos-emos à responsabilidade civil.
1.3 - Responsabilidade Civil
O objeto do nosso estudo cinge-se à responsabilidade civil, ou seja, aquela decorrente da existência de um fato que atribui a determinado indivíduo o caráter de imputabilidade dentro do direito privado. No caso do ilícito civil, o interesse diretamente lesado, ao invés de ser o público, é o privado. O ato do agente pode até não ter infringido norma de ordem pública, todavia, como seu procedimento causou dano a outrem, deve repará-lo. A reação da sociedade é representada pela indenização a ser exigida pela vítima do agente causador do dano. Contudo, sendo a matéria de interesse disponível, se este se resignar a sofrer o prejuízo e se mantiver inerte, nenhuma consequência advirá para o causador do dano.
O ato ilícito perpetrado poderá repercutir tanto na esfera penal como na civil, dependendo de sua gravidade e suas consequências. De um lado porque ele infringe norma de direito público, caracterizando crime ou contravenção; de outro, porque gera prejuízo a terceiro.
A responsabilidade civil no antigo Código Civil, que prescrevia o efeito jurídico de condutas dolosas ou culposas, encontrava-se insculpida no artigo 159, prescrevendo o seguinte: “Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.”
O atual Código Civil mantém o espírito da referida norma, com texto mais preciso e promovendo o desmembramento da matéria relativa ao ato ilícito e à responsabilidade. Assim, prescreve o artigo 186 do Código: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. No capítulo correspondente à responsabilidade civil e à obrigação indenizatória, encontra-se insculpido no artigo 927: “Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
A regra é genérica e alcança tanto a responsabilidade extracontratual como a contratual. Contudo, nosso trabalho abarca apenas a responsabilidade extracontratual, que é aquela que deriva das atividades estatais sem qualquer conotação pactual.
Pelo ora exposto, verificamos que a responsabilização civil tem por finalidade precípua o restabelecimento do equilíbrio violado pelo dano. Por isso, há em nosso ordenamento jurídico a responsabilidade civil não só abrangida pela ideia do ato ilícito, mas também há o ressarcimento de prejuízos em que não se cogita da ilicitude da ação do agente ou até da ocorrência de ato ilícito, o que se garante pela Teoria do Risco, haja vista a ideia de reparação ser mais ampla do que meramente o ato ilícito.
O princípio que dá sustentabilidade a responsabilidade civil contemporânea é o da “restitutio in integrum”, isto é, da reposição do prejudicado ao “status quo ante”[4]. Nesse diapasão, a responsabilidade civil possui dupla função na esfera jurídica do prejudicado: a) mantenedora da segurança jurídica em relação ao lesado; b) sanção civil de natureza compensatória.
1.4 - A responsabilidade objetiva e a teoria da culpa presumida
O instituto de direito civil que teve maior desenvolvimento nos últimos cem anos foi o da responsabilidade civil. Dito desenvolvimento incluiu o repensar de várias concepções até então tidas por inabaláveis, ressaltando o entendimento, hoje superado, de Von Ihering, de que não poderia haver responsabilidade sem culpa, de modo que o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição de 1988 ressalvou a possibilidade de responsabilidade objetiva nas hipóteses que especifica, ademais de outras leis especiais que também afastaram a concepção subjetiva da culpa, como, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor.
O desagrado com a teoria subjetiva, exemplarmente posta à mostra por Caio Mário, fez-se cada vez maior, evidenciando-se a sua inconciliabilidade com o impulso desenvolvimentista do nosso tempo. O aumento veemente das oportunidades e das causas de danos, evidenciaram que a responsabilidade subjetiva mostrou-se inadequada para abraçar todos os casos de reparação. Reparação essa, que dentro da doutrina da culpa, resulta da vulneração de norma preexistente, e comprovação do nexo causal entre o dano e a antijuridicidade da conduta do agente. Observou-se, todavia, que nem sempre o lesado conseguia provar esses elementos, e, em consequência, remanescia não indenizado, mesmo que efetivamente concretizado o dano.
Comovidos com essa situação, juristas de expressão, por via de processo hermenêutico, empenharam-se na busca de técnicas hábeis que pudessem desempenhar a mais ampla cobertura para a reparação do dano. Assim nasceu a doutrina objetiva.
Como bem ensina Rui Stoco (2001, p. 108):
“Um desses meios técnicos, ou um dos aspectos que se identifica como representativos da marcha no sentido da doutrina objetiva, é a teoria da “culpa presumida”. Trata-se de um espécie de solução transacional ou escala intermédia, em que se considera não perder a culpa a condição de suporte da responsabilidade civil, embora aí já se deparem indícios de sua degradação como elemento etiológico fundamental da reparação e aflorem fatores de consideração da vítima como centro da estrutura ressarcitória, para atentar diretamente para as condições do lesado e a necessidade de ser indenizado.”
Para Aguiar Dias, citado por Rui Stoco (2001, p. 108):
“Não confundimos, pelo menos propositadamente, os casos de responsabilidade objetiva com os de presunção de culpa. Na realidade, como já tivemos ocasião de dizer, o expediente da presunção de culpa é, embora não o confessem os subjetivistas, mero reconhecimento da necessidade de admitir o critério objetivo. Teoricamente, porém, observa-se a distinção, motivo por que só incluímos como casos de responsabilidade objetiva os que são confessadamente filiados a esse sistema
[...]
Em essência, repetimos, a assimilação entre um e outro sistema é perfeita, significando o abandono disfarçado ou ostensivo, conforme o caso, do princípio da culpa como fundamento único da responsabilidade. Em teoria, a distinção subsiste, ilustrada por um exemplo prático: no sistema da culpa, sem ela, real ou artificialmente criada, não há responsabilidade; no sistema objetivo, responde-se sem culpa, ou melhor, esta indagação não tem lugar.”
Por força do acima registrado, vê-se que na tese da presunção de culpa mantém-se o conceito genérico de culpa como fundamento da responsabilidade civil. Onde se aparta da concepção subjetiva tradicional é no que diz respeito ao ônus da prova.
O lesado deve demonstrar a existência dos elementos embasadores de sua pretensão, realçando o comportamento culposo do causador do dano. Ao se adentrar no terreno da especialização da culpa presumida, é de ver-se que ocorre uma inversão do “onus probandi”[5]. Em determinadas circunstâncias, o comportamento culposo do causador do dano é presumido, recaindo-lhe a demonstração da ausência de culpa, com o fim de desobrigar-se do dever indenizatório. Foi a maneira encontrada de sedimentar a responsabilidade civil, retirando dos ombros do lesado o fardo de provar a conduta culposa do agente, sem, contudo, rechaçar o pressuposto subjetivo da doutrina tradicional.
1.5 - A responsabilidade subjetiva e a teoria do risco
Foi no interior do movimento supramencionado, que se traçou e tomou corpo a teoria da responsabilidade sem culpa.
Passo a passo a responsabilidade civil marcha rumo à doutrina objetiva, que encontra sua maior base na “doutrina do risco”.
A matéria, sem sombra de dúvidas, é controvertida.
Por um lado, temos os que mantêm estrita obediência à teoria da responsabilidade subjetiva, repudiando a doutrina do risco.
Por outro lado, há os que abarcam a doutrina do risco, considerando-a como sucedânea da teoria da culpa, que seria insatisfatória e estaria superada.
Por fim, destacamos a posição dos mais ilustres doutrinadores, que admitem a conciliação das duas correntes: a culpa exprimiria a noção básica e o princípio geral definidor da responsabilidade, aplicando-se a doutrina do risco nos casos especialmente previstos, ou quando a lesão provém de situação criada por quem explora profissão ou atividade que expôs o lesado ao risco do dano que sofreu.
Para Caio Mário, citado por Rui Stoco (2001, p. 110):
O conceito de risco que melhor se adapta às condições de vida social “é o que se fixa no fato de que, se alguém põe em funcionamento uma qualquer atividade, responde pelos eventos danosos que esta atividade gera para os indivíduos, independentemente de determinar se em cada caso, isoladamente, o dano é devido à imprudência, à negligência, a um erro de conduta, e assim se configura a “teoria do risco criado.”
Necessário se faz absorver que, não obstante o grande entusiasmo despertado pela teoria do risco, essa não chegou a substituir a da culpa nos sistemas jurídicos de maior expressão e, nem assim poderia ser.
Como evidenciado, prevalece a convivência das duas teorias: a teoria da culpa triunfa como direito comum ou a norma geral básica da responsabilidade civil, sendo que a teoria do risco preenche os espaços excedentes, nos casos e situações que lhe são próprios.
Levando-se em conta a pessoa do lesado, a teoria do risco é amparada com o raciocínio de que permite sempre reparar o dano sofrido, ainda naqueles casos em que, por qualquer motivo, não há por parte do lesado o estabelecimento da relação causal entre o seu dano e a culpa do agente.
Determina o Direito Civil brasileiro, que o princípio geral da responsabilidade civil, no direito privado, repousa na culpa, não obstante em algumas passagens desse instituto, prevalecer a teoria do risco.
CAPÍTULO 2 – ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL
2.1 - Introdução
Princípio geral de direito, informador de toda a teoria da responsabilidade, encontradiço no ordenamento jurídico de todos os povos civilizados e sem o qual a vida social é quase inconcebível, é aquele que impõe a quem causa dano a outrem o dever de repará-lo. Tal princípio encontra-se prescrito no artigo 186 do Código Civil. Assim diz: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Fracionando-se o artigo acima transcrito, verificamos que ele engloba algumas ideias que implicam a existência de alguns pressupostos, ordinariamente necessários, para que a responsabilidade ecloda. Em princípio, a lei diz respeito a alguém que por ação ou omissão causa dano a outrem. Portanto, surge aqui a menção a um agente que causa dano a outrem por meio de ato comissivo ou omissivo.
Contudo, passemos ao estudo dos pressupostos necessários para que a responsabilidade civil emerja.
2.2 - Ação ou omissão do agente.
A responsabilidade civil, tanto objetiva como subjetiva, deverá sempre conter como elemento essencial uma conduta.
Maria Helena Diniz (1998, p. 37), assim conceitua conduta:
“Ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado.”
A lesão a um bem jurídico, cuja existência se verificará no plano normativo da culpa, está condicionada à existência no plano naturalístico da conduta, de uma ação ou omissão que constitui a base do resultado lesivo.
É de ver-se que não há responsabilidade civil sem determinado comportamento humano contrário à ordem jurídica.
Assim, cristalino se mostra que o primeiro momento da responsabilidade civil constitui-se por meio da ação ou omissão.
Para Frederico Marques, citado por Rui Stoco (2001, p. 95):
“a conduta humana relevante para essa responsabilização apresenta-se como “ação” ou como “omissão”. Viola-se a norma jurídica, ou através de um facere (ação), ou de um non facere (omissão). “Uma e outra conduta se situam no campo naturalístico do comportamento humano, isto é, no mundo exterior, por serem um ‘trecho da realidade’ que o Direito submete, ulteriormente, a juízo de valor, no campo normativo.”
Desse modo, verifica-se que no comportamento, ou seja, na conduta dessas pessoas, só se reveste de relevância jurídica a ação voluntária.
Para Rui Stoco (2001, p. 95):
“a voluntariedade da conduta não se confunde com a projeção da vontade sobre o resultado, isto é, o querer intencional de produzir o resultado; de assumir o risco de produzi-lo; de não querê-lo, mas, ainda assim, atuar com afoiteza, com indolência ou com incapacidade manifesta. O querer intencional é matéria atinente à culpabilidade lato sensu.”
“A vontade é assim ‘o coeficiente essencial da ação’, mas não se perquire do seu alcance ou conteúdo”.
Na lição de Caio Mário (1992, p. 70):
“cumpre, todavia, assinalar que se não insere, no contexto, de ‘voluntariedade’ o propósito ou a consciência do resultado danoso, ou seja, a deliberação ou a consciência de causar prejuízo. Este é um elemento definidor do dolo. A voluntariedade pressuposta na culpa é a da ação em si mesma. Quando o agente procede voluntariamente, e sua conduta voluntária implica ofensa ao direito alheio, advém o que se classifica como procedimento culposo.”
Ainda, Atílio Aníbal Alterini, citado por Caio Mário (1992, p. 70):
“A culpa provém de um ato voluntário, isto é, realizado com os necessários elementos internos: discernimento, intenção e liberdade. Mas a vontade do sujeito, no ato culposo, vai endereçada à sua realização, mas não à consequência nociva.”
Em conclusão, os atos que passam de um centro sensório a um centro motor, produzindo o movimento sem transitarem pela zona da consciência, não alcançam a dignidade de ação.
Desde que atinja um bem juridicamente tutelado, a omissão caracteriza-se como um “non facere” relevante para o Direito.
A omissão aparece no fluxo causal que liga a conduta ao evento, tendo em vista que o imperativo jurídico determina um “facere” para evitar a ocorrência do resultado e interromper a cadeia da causalidade natural, e aquele que deveria praticar o ato exigido pelos mandamentos da ordem jurídica, permanece inerte ou pratica ação diversa da que lhe é imposta.
Assim, conclui-se que a omissão é uma conduta negativa. Aparece porque alguém não praticou determinada ação. Sua essência está concretizada em não se ter agido de determinada forma.
2.3 - Culpa do agente
Preleciona Savatier, citado por Rui Stoco (2001, p. 96):
“Savatier, ao definir a culpa, afirma que é necessário assentar ser impossível fazê-lo sem partir da “noção de dever”, que ele analisa em várias hipóteses ou espécies (deveres legais, deveres de família, deveres morais, obrigações de observar os regulamentos, dever geral de não prejudicar a outrem etc.). “
“Resta por assim definir: “a culpa é a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar. Se o conhecia efetivamente e o violou deliberadamente, há delito civil, ou em matéria de contrato, dolo contratual. Se a violação do dever foi involuntária, podendo conhecê-la e evitá-la, há culpa simples; fora destas matérias contratuais, denomina-se “quase-delito.”
Para Marcel Planiol, citado por Rui Stoco (2001, p. 96):
“culpa é a infração de uma obrigação preexistente, de que a lei ordena a reparação quando causou um dano a outrem.”
Segundo Aguiar Dias, citado por Rui Stoco (2001, p. 96):
“A culpa é a falta de diligência na observância da norma de conduta, isto é, o desprezo por parte do agente, do esforço necessário para observá-la, com resultado não objetivado, mas previsível, desde que o agente se detivesse na consideração das consequências eventuais da sua atitude.”
Assim, é de ver-se que uma vez configurada a culpa, pode essa produzir resultado danoso ou ser inócua. Gerando consequência, isto é, quando transita do plano puramente moral para a execução material, ela se apresenta sob a forma de ato ilícito. Esse, por seu turno, pode ou não produzir efeito material, ou seja, o dano. À responsabilidade civil só esse resultado interessa, vale mencionar, só com a projeção do ato ilícito no patrimônio de outrem é que se concretiza a responsabilidade civil e entra em ação seu mecanismo.
Por outro lado, quando se verifica a intenção deliberada de ofender o direito, ou de ocasionar prejuízo a outrem, existe o dolo, isto é, total conhecimento do mal e o direto objetivo de o praticar. Caso não tenha havido esse deliberado propósito, mas o prejuízo veio a surgir, por imprudência ou negligência, existe a culpa “stricto sensu”[6].
Abstrai-se do acima prelecionado, que na culpa sempre ocorre violação de um dever preexistente. Se esse dever se fundamenta num contrato, a culpa é contratual; por outro lado, se esse dever se embasa no preceito geral que determina respeitar a pessoa e os bens alheios “alterum non laedere”[7], a culpa é extracontratual ou aquiliana.
Observa-se, ainda, outras modalidades de culpa, quais sejam: culpa “in eligendo”, culpa “in vigilando”, culpa “in committendo”, culpa “in omittendo”, culpa “in custodiendo”.
Culpa “in eligendo” é a originada da má escolha do representante, ou do preposto. Exemplificativamente, é caracterizada pelo fato do proponente admitir ou manter a seu serviço, empregado não habilitado legalmente, ou sem as aptidões requeridas.
Culpa “in vigilando” é a que provem da ausência de fiscalização por parte do patrão, quer em relação aos seus empregados, quer em relação à própria coisa.
Culpa “in committendo”, é a que se verifica quando o agente pratica ato positivo, ou seja, age com imprudência, enquanto a culpa “in omittendo” promana de abstenção, ou seja, negligência.
Depreende-se, assim, que na negligência ocorre um desajuste psíquico revelado no procedimento antijurídico, ou uma omissão de certa atividade que teria evitado o resultado danoso; ao passo que na imprudência o agente procede de forma precipitada ou sem prever integralmente as consequências da ação. Contudo, em qualquer dos casos verifica-se um defeito de previsibilidade.
Importante se faz ressaltar, que a responsabilidade extracontratual e a contratual regulam-se racionalmente pelos mesmos princípios, tendo em vista que a ideia de responsabilidade, como enfatizado, é uma.
Vimos, assim, que o fundamento da responsabilidade civil consagrado em nosso Código Civil, implica a existência do elemento culpa para que o mister de reparar o dano possa surgir. Entretanto, não podemos nos esquecer que, excepcionalmente, e em hipóteses específicas, nosso direito positivo admite alguns casos de responsabilidade sem culpa, ou de culpa irrefutavelmente presumida.
2.4 - Relação de causalidade
Em princípio, verificamos que na origem da responsabilidade civil estão presentes três pressupostos, que na doutrina subjetivista, são ditos essenciais, quais sejam: a ofensa a uma norma preexistente ou erro de conduta; um dano; e o nexo de causalidade existente entre um e outro.
Assim para que surja a obrigação de indenizar, mister se faz a prova da existência de uma relação de causalidade entre a ação ou omissão culposa do agente e o dano experimentado pela vítima. Contudo, se a vítima sofrer um dano, mas não se evidenciar que esse resultou do comportamento ou da atitude do agente, o pedido de indenização formulado por aquela deverá ser julgado improcedente.
Portanto, não é o suficiente que o agente haja procedido de modo contrário ao direito, ou seja, não se vislumbra a responsabilidade pelo fato de cometer um erro de conduta. Não basta que a vítima sofra um dano. Tem que haver um prejuízo, pois se tal não ocorrer, a conduta antijurídica não gera obrigação de indenizar.
Assim, necessário se faz a existência de uma relação de causalidade entre a conduta antijurídica e o dano, ou seja, é preciso esteja certo que, sem este fato, o dano não teria ocorrido. Entretanto, não basta que uma pessoa tenha contrariado certas regras, é preciso que sem esta contrariedade, o dano não ocorreria.
Contudo, o nexo causal se torna indispensável, sendo fundamental que o dano tenha sido causado pela culpa do agente.
Como salientado por Caio Mário e Genéviève Viney, citados por Rui Stoco (2001, p. 106):
“Adverte Caio Mário ser ‘este o mais delicado dos elementos da responsabilidade civil e o mais difícil de ser determinado. Aliás, sempre que um problema jurídico vai ter na indagação ou na pesquisa da causa, desponta a sua complexidade maior. Mesmo que haja culpa e dano, não existe obrigação de reparar, se entre ambos não se estabelecer a relação causal’. Como bem explica Genéviève Viney, ‘cabe ao jurista verificar se entre os dois fatos conhecidos (o fato danoso e o próprio dano) existe um vínculo de causalidade suficientemente caracterizado”.
No que diz respeito à aferição do nexo causal, duas questões se contrapõe: uma delas é a dificuldade de sua prova; outra diz respeito à identificação do fato que constrói a verdadeira causa do dano, especialmente quando ocorre a causalidade múltipla, pois nem sempre se tem condições de apontar qual a causa direta do fato, ou seja, sua causa eficiente.
Diante da causalidade múltipla, surgiram três teorias na tentativa de equacionar o problema: a) A teoria da equivalência das condições ou dos antecedentes ou “conditio sine qua non”[8], que foi afastada por inadequada; b) A teoria da causalidade adequada, que foi vigorosamente criticada; c) A teoria da causalidade imediata ou dos danos diretos e imediatos, para a qual é preciso que exista entre o fato e o evento danoso, uma relação de causa e efeito direta e imediata. Essa é a teoria adotada pelo nosso ordenamento jurídico, estando prevista no artigo 1.060 do antigo Código Civil e, no artigo 403 do atual Código Civil.
Com referência ao rompimento do nexo de causalidade, os autores cogitam da culpa exclusiva da vítima.
Merece guarida, ainda, a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, em que a responsabilidade desaparece, por força do velho princípio “casus a nullo paestantur”[9]. Em verdade, em casos que tais inexiste relação de causa e efeito ente a conduta do agente e o resultado danoso.
2.5 - Dano experimentado pela vítima.
Finalmente, como relatado, a questão da responsabilidade não se propõe se não houver dano, pois o ato ilícito só reflete na órbita do direito civil se causar prejuízo a outrem.
A doutrina é unânime em afirmar, como não poderia deixar de ser, que não há responsabilidade sem prejuízo. O prejuízo causado pelo agente é o ‘dano’.
Enfatiza Cretella Jr., citado por Rui Stoco (2001, p. 94), que:
“em nenhum caso, a responsabilidade das pessoas físicas ou jurídicas pode prescindir do evento danoso. A ilegitimidade ou irregularidade da ação, sem dano algum a terceiros, não é suficiente para empenhar responsabilidade, mas, tão-só, quando for o caso, a invalidade do ato”.
Diz Silvio Rodrigues, citado por Rui Stoco (2001, p. 94):
“Princípio geral de direito, informador de toda a teoria da responsabilidade encontradiça no ordenamento jurídico de todos os povos civilizados e sem o qual a vida social é inconcebível, é aquele que impõe, a quem causa dano a outrem, o dever de o reparar”.
Segundo Aguiar Dias, citado por Rui Stoco (2001, p. 104):
“o que o prejudicado deve provar na ação, é o dano, sem consideração ao seu quantum, que é matéria da liquidação. Não basta, todavia, que o autor mostre que o fato de que se queixa, na ação, seja capaz de produzir dano, seja de natureza prejudicial. É preciso que prove o dano concreto, assim entendida a realidade do dano que experimentou, relegando para a liquidação a avaliação do seu montante”.
Assim, é de ver-se que o dano configura uma circunstância elementar ou essencial da responsabilidade civil. Conforma-se quando há lesão sofrida pela vítima em seu complexo de valores protegidos pelo direito, relacionado à sua própria pessoa, física ou moral, ou aos seus bens e direitos. Entretanto, há que se ressaltar que não é qualquer dano que é passível de ressarcimento, mas sim o dano injusto, contra jus, apartando-se daí o dano autorizado pelo direito.
Cumpre ressaltar, que somente danos diretos e efetivos, por consequência imediata do ato culposo, encontram no Código Civil suporte de ressarcimento. Se não houver dano, falta matéria para a indenização.
Em resumo, para que o dano seja passível de indenização deverá haver a apuração de alguns requisitos, quais sejam: atualidade, certeza e subsistência. O dano atual é aquele que efetivamente já ocorreu. O dano certo é aquele que se fundamenta em um fato certo, determinado, e, não, baseado em hipóteses. Quanto à subsistência, estriba-se essa em não ressarcir o dano que já tenha sido reparado pelo agente.
Ademais, se infere que o dano poderá ser patrimonial ou moral. Patrimonial é aquele que recai sobre o patrimônio do lesado, perdendo ou deteriorando total ou parcialmente os bens materiais suscetíveis de avaliação econômica. Abarca os danos emergentes, ou seja, o que efetivamente se perdeu, e os lucros cessantes, ou seja, o que razoavelmente se deixou de ganhar, em conformidade com o prescrito no artigo 402 do atual Código Civil. Por outro lado, o dano moral ancora-se na lesão produzida sobre os bens imateriais, também denominados bens da personalidade.
Outrossim, observa-se que o dano pode ser reflexo ou em ricochete, relacionando-se ao fato de uma pessoa sofrer, por reflexo, um dano, que primariamente foi causado a outrem.
CAPÍTULO 3 - A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
3.1 - Introdução
Hoje é aceito ou admitido sem discussão no ordenamento jurídico brasileiro, o fato de que o Estado pode causar prejuízos aos seus administrados por meio de comportamentos lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, configurando a obrigação que lhe compete de ressarcir o dano.
A responsabilidade do Estado segue um regime próprio, conciliável com a sua situação jurídica, pois potencialmente tem o condão de produzir prejuízos macroscópicos. Além disso, os administrados não têm poderes para minorar a atuação do Estado no âmbito de seus direitos individuais.
Como ensina Maria Sylvia (2005, p. 561):
“Quando se fala em responsabilidade do Estado, está-se cogitando dos três tipos de funções pelas quais se reparte o poder estatal: a administrativa, a jurisdicional e a legislativa. Fala-se, no entanto, com mais freqüência, de responsabilidade resultante de comportamentos da Administração Pública, já que, com relação aos Poderes Legislativo e Judiciário, essa responsabilidade incide em casos excepcionais.
Trata-se de dano resultante de comportamentos do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário, a responsabilidade é do Estado, pessoa jurídica; por isso é errado falar em responsabilidade da Administração Pública, já que esta não tem personalidade jurídica, não é titular de direitos e obrigações na ordem civil. A capacidade é do Estado e das pessoas jurídicas públicas ou privadas que o representam no exercício de parcela de atribuições estatais. E a responsabilidade é sempre civil, ou seja, de ordem pecuniária”.
Importante se faz ressaltar que Hely Lopes (1998, p. 530), utiliza o termo “responsabilidade da administração”, pois entende que o dever de indenizar se impõe à Fazenda Pública.
No que diz respeito à responsabilidade extracontratual é necessário delimitar o tema a essa modalidade de responsabilidade civil, para diferençá-la da responsabilidade contratual, que se rege por princípios próprios referente aos contratos administrativos.
Há que se ressaltar que a responsabilidade patrimonial extracontratual pode derivar de atos jurídicos, de atos ilícitos, de comportamentos materiais ou de omissão do Poder Público. Todavia, o indispensável é que ocorra um dano causado a terceiro por procedimento omissivo ou comissivo de agente do Estado.
Segundo Celso Antônio (2001, p. 799):
“Entende-se por responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem, e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”.
Para Maria Sylvia (2005, p. 562):
“Pode-se, portanto, dizer que a responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos”.
Diverso do direito privado, em que a responsabilidade exige sempre um ato ilícito, no direito administrativo ela pode derivar de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade.
Como preleciona Celso Antônio (2001, p. 799):
“Como qualquer outro sujeito de direitos, o Poder Público pode vir a se encontrar na situação de quem causou prejuízo a alguém, do que lhe resulta obrigação de recompor os agravos patrimoniais oriundos da ação ou abstenção lesiva.
Esta noção é, hoje, curial no Direito Público. Todos os povos, todas as legislações, doutrina e jurisprudência universais, reconhecem, em consenso pacífico, o dever estatal de ressarcir as vítimas de seus comportamentos danosos. Estados Unidos e Inglaterra, últimos refratários à tese, acabariam por assumi-la em 1946 e 1947, respectivamente, embora sem a extensão que seria de desejar, posto que ainda apresenta caracteres algo restritivos”.
3.2 - Evolução histórica da responsabilidade civil do Estado
O grande progresso da responsabilidade do Estado adveio do direito francês, por meio da construção pretoriana do Conselho de Estado.
Originalmente vigia o princípio da irresponsabilidade do Estado, mitigado pela admissão da responsabilidade do funcionário, quando o ato lesivo pudesse ser diretamente relacionado com um comportamento pessoal seu.
Nesse primeiro momento histórico, o Estado era irresponsável pelos danos causados aos particulares, no exercício das funções estatais. Atentamos, contudo, que mesmo nesses casos não ficavam os indivíduos à espreita de qualquer proteção, pois haveria possibilidade de responsabilização individual dos agentes públicos que, atuando com dolo ou culpa, acarretassem dano a outrem. Ressalte-se, todavia, que a responsabilidade existiria em nome próprio e não como prepostos do Estado.
Em princípio, necessário se faz observar que a teoria da irresponsabilidade absoluta do Estado fundamenta-se em três postulados, quais sejam: a) na soberania do Estado, que, por sua natureza, nega sua igualdade ao súdito, em qualquer grau de relação; b) prossegue que, representando o Estado soberano o direito organizado, não pode aquele aparecer como violador desse mesmo direito; c) assim, os atos praticados pelos funcionários, contrários à lei, jamais podem ser considerados atos do Estado, devendo ser atribuídos pessoalmente àqueles, como praticados em nome próprio.
Em verdade, no bojo da concepção política do Estado absoluto não podia caber a ideia de reparação dos danos causados pelo Poder Público, tendo em vista que não se admitia a constituição de direitos em face do Estado soberano, que desfrutava de imunidade total. Essa concepção continuou sendo mantida em nome do princípio da separação dos poderes, em virtude do qual a confirmação da responsabilidade do Poder Público importaria a censura ou o julgamento dos seus atos, atividade defesa ao Poder Judiciário.
Conserva-se, assim, o Estado regalista, na sua prepotência de não contradição. O Estado é o órgão concebedor do direito, cabendo-lhe a tutela dele; ao exercer a tutela jurídica, o Estado não atenta contra a ordem jurídica, pois sendo ele o próprio direito, jamais praticaria injustiças.
Conforme leciona Maria Sylvia (2005, p. 563):
“A teoria da irresponsabilidade foi adotada na época dos Estados absolutos e repousava fundamentalmente na ideia de soberania: o Estado dispõe de autoridade incontestável perante o súdito; ele exerce a tutela do direito, não podendo, por isso, agir contra ele; daí os princípios de que o rei não pode errar (the king can do no wrong; le roi ne peut mal faire) e o de que “aquilo que agrada ao príncipe tem força de lei” (quod principi placuit habet legis vigorem). Qualquer responsabilidade atribuída ao Estado significaria colocá-lo no mesmo nível que o súdito, em desrespeito a sua soberania”.
Apesar disso, alguns países de grande desenvolvimento só recentemente abandonaram a doutrina da irresponsabilidade do Estado. Os Estados Unidos, por exemplo, fizeram-no por meio do Federal Tort Claim, de 1946 e, a Inglaterra, por meio do Crown Proceeding Act, de 1947.
Para Carvalho Filho (2009, p. 522):
“Essa teoria não prevaleceu por muito tempo em vários países. A noção de que o Estado era o ente todo-poderoso, confundida com a velha teoria da intangibilidade do soberano e que o tornava insuscetível de causar danos e ser responsável, foi substituída pela do Estado de Direito, segundo a qual deveriam ser a ele atribuídos os direitos e deveres comuns às pessoas jurídicas”.
Em síntese, a doutrina da responsabilidade civil do Estado evoluiu do conceito de irresponsabilidade para o da responsabilidade sem culpa. Passou-se da fase da irresponsabilidade do Estado para a fase da responsabilidade civilística e, desta, para a fase da responsabilidade pública.
O intuito de resolver a questão da responsabilidade civil do Estado deu origem a três teorias: a) da culpa administrativa; b) do risco administrativo; c) do risco integral; todas elas originárias do tronco comum da responsabilidade objetiva do Estado, mas com variações de fundamento e aplicação.
O reconhecimento da culpa administrativa representou o primeiro estágio evolutivo ou de transição entre a doutrina subjetiva da culpa civil e a doutrina do risco administrativo que a sucedeu, pois leva em consideração a ‘falta do serviço’ para dela induzir a responsabilidade da Administração.
Por essa teoria não se indaga da culpa do agente administrativo, mas simplesmente da falta objetiva do serviço em si mesmo, como fato gerador da obrigação de ressarcir o prejuízo causado a terceiro.
Como bem adverte Celso Antônio (2001, p.808):
“Em face dos princípios publicísticos não é necessária a identificação de uma culpa individual para deflagrar-se a responsabilidade do Estado. Esta noção civilista é ultrapassada pela ideia denominada de faute du service entre os franceses. Ocorre a culpa do serviço ou “falta de serviço” quando este não funciona, devendo funcionar, funciona mal ou funciona atrasado. Esta é a tríplice modalidade pela qual se apresenta e nela se traduz um elo entre a responsabilidade tradicional do Direito Civil e a responsabilidade objetiva”.
Contudo, a teoria da culpa administrativa requer uma culpa especial da Administração, que se convencionou chamar “culpa administrativa”. Todavia, exige do terceiro prejudicado que, além do fato material, cumpre a falta do serviço para obter a reparação do dano.
Como salientado por Andréa Ferreira (1985, p. 278):
“A teoria foi consagrada pela clássica doutrina de PAUL DUEZ, segundo a qual o lesado não precisaria identificar o agente estatal causador do dano. Bastava-lhe comprovar o mau funcionamento do serviço público, mesmo que fosse impossível apontar o agente que o provocou”.
Enfim, essa falta do serviço põe-se à vista nas modalidades de inexistência do serviço, mau funcionamento do serviço ou retardamento do serviço. Estando presente qualquer dessas modalidades, presume-se a culpa administrativa e emerge a obrigação de reparar o dano.
Transpondo a teoria da culpa administrativa, o direito passou por um estágio evolutivo, vindo a consagrar a teoria da responsabilidade objetiva do Estado.
Tal forma de responsabilidade prescinde da verificação do fator culpa em relação ao evento danoso. Por consequência, ela se faz presente em decorrência de fatos lícitos ou ilícitos, sendo suficiente que o interessado comprove a relação causal entre o fato e o dano.
Não resta dúvida de que a responsabilidade objetiva foi fruto de um processo evolutivo que culminou em conferir maior benefício ao lesado, dispensando esse de provar alguns elementos que, sem sombra de dúvidas, dificultariam o surgimento do direito à reparação do dano, dentre os quais podemos citar: a identificação do agente causador do dano, a culpa do agente no comportamento administrativo, a falta do serviço etc.
Foi com suporte em embasamentos de cunho político e jurídico que os Estados modernos passaram a por em prática a teoria da responsabilidade objetiva no direito público.
À medida que se mostrou cristalino que o Estado é detentor de maior poder e prerrogativas do que o administrado, esses embasamentos vieram à tona. Trata-se de ente jurídico, político e economicamente mais poderoso. É de ver-se que, o administrado, ainda que protegido por normas do ordenamento jurídico, encontra-se em posição de subordinação. Contudo, diante de prejuízos advindos da atividade estatal, não seria justo sacrificar demasiadamente o administrado, com vistas a obter o direito à reparação do dano.
Assim, tendo em vista a posição de supremacia do Estado, nada mais justo do que atribuir a esse o dever de arcar com o risco inerente às suas atividades, ou seja, à detenção de maiores poderes corresponderia um risco maior. Assim, com fulcro na responsabilidade objetiva do Estado, surge a teoria do risco administrativo.
Por meio da teoria do risco administrativo, a só ocorrência da lesão causada ao particular por ato da administração, faz despontar a obrigação de reparar o dano. Não se faz necessário perquirir qualquer falta do serviço público ou culpa por parte de seus agentes. Mostra-se suficiente o dano, sem o concurso do lesado.
Como bem salientado por Hely Lopes Meirelles (1975, p. 590):
“na teoria da culpa administrativa exige-se a falta do serviço; na teoria do risco administrativo exige-se apenas o fato do serviço. Naquela, a culpa é presumida da falta administrativa; nesta, é inferida do fato lesivo da Administração”.
Como visto, fundamenta-se a teoria do risco administrativo, no risco que a atividade pública representa para os administrados, bem como na possibilidade de causar-lhes danos, impondo, por consequência, a alguns membros da coletividade, um sacrifício ou ônus não suportado pelos demais.
Com o fim de contrabalancear a desigualdade advinda do próprio Estado, todos os componentes da coletividade devem vir em socorro da reparação do dano individual. O risco e a solidariedade social são, por assim dizer, os fundamentos dessa doutrina que, por sua objetividade e pulverização de encargos, leva à mais irrepreensível justiça distributiva, motivo pelo qual tem merecido a proteção e acolhimento por parte dos Estados modernos, dentre os quais podemos citar o Brasil, que a consagrou pela primeira vez no artigo 194 da Constituição Federal de 1946.
Não se olvida que o artigo 107 da Constituição Federal de 1969 e o artigo 37, parágrafo 6°, da atual, mantiveram a linha traçada na Constituição Federal de 1946, orientando-se pela doutrina do Direito Público e mantendo a responsabilidade civil objetiva da Administração, sob a modalidade do risco administrativo.
Necessário se faz ressaltar, que no risco administrativo a responsabilidade civil não é genérica e indiscriminada, pois havendo participação total ou parcial do lesado para a configuração do dano, o Estado não será responsável na primeira hipótese e, na segunda, a sua obrigação de indenizar será mitigada. Sendo assim, verifica-se que a responsabilidade civil decorrente do risco administrativo encontra limites.
Preleciona Hely Lopes Meirelles (1975, p. 590):
“a teoria do risco administrativo, embora dispense a prova da culpa da administração, permite que o Poder Público demonstre a culpa da vítima, para excluir ou atenuar a indenização. Isto porque o risco administrativo não se confunde com o risco integral. O risco administrativo não significa que a Administração deve indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular; significa apenas e tão-somente que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização”.
Cumpre ressaltar, que a culpa da vítima não traduz propriamente causa excludente da responsabilidade do Estado, pois em casos tais inexistirá uma das condições para a aplicação da teoria, qual seja, a relação de causa e efeito entre a atividade do Estado e o dano.
A teoria do risco integral é a modalidade extremada da doutrina do risco administrativo, rechaçada na prática, por conduzir ao abuso e à iniquidade social.
Por essa modalidade, a responsabilidade independe do nexo causal e concretiza-se até mesmo quando a culpa é da própria vítima. Assim, a Administração estaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima.
Na precisa lição de Cavalieri Filho (1998, p. 155):
“Em tempos atuais, tem-se desenvolvido a teoria do risco social, segundo a qual o foco da responsabilidade civil é a vítima, e não o autor do dano, de modo que a reparação estaria a cargo de toda a coletividade, dando ensejo ao que se denomina de socialização dos riscos – sempre com o intuito de que o lesado não deixe de merecer a justa reparação pelo dano sofrido”.
A teoria em referência constitui mero aspecto específico da teoria do risco integral, sendo que para alguns doutrinadores é para onde dirige a responsabilidade civil do Estado, ou seja, seria esse responsável ainda que os danos não lhe fossem imputados. Todavia, tal entendimento poderia provocar grande insegurança jurídica e graves prejuízos ao erário, lesando em última análise os próprios contribuintes.
Consequentemente, o Estado ao ser condenado a reparar eventuais prejuízos causados ao administrado, não seria o sujeito pagador direto, pois os valores pagos a título de reparação à vítima do dano adviriam das contribuições feitas por cada um dos integrantes da sociedade, que é a beneficiária dos poderes e das prerrogativas estatais.
Vislumbra-se, portanto, que as proposições que deram origem à responsabilidade objetiva do Estado captaram seus embasamentos na justiça social, abrandando os impedimentos e as dificuldades que os administrados teriam que suportar quando molestados por condutas de agentes estatais.
Em conformidade com a melhor doutrina, a ideia da responsabilidade do Estado ergue-se como mera decorrência da submissão do Poder Público ao Direito. Trata-se de mero corolário da noção de Estado de Direito.
O direito constitucional tem como base de equilíbrio a sujeição de todos à ordem jurídica instituída, de modo que a lesão perpetrada a bens jurídicos alheios impõe ao agente causador do dano a obrigação de repará-lo.
Leciona Celso Antônio (1981, p. 125):
“a responsabilidade do Estado governa-se por princípios próprios, compatíveis com a peculiaridade de sua posição jurídica e, por isso mesmo, é mais extensa que a responsabilidade que pode calhar às pessoas privadas.”
Ao contrário do que ocorre nas relações privadas, os administrados não têm como fugir ou evitar os perigos de dano por ação do Estado, tendo em vista que é ele quem dita as regras de sua presença no seio da sociedade, determinando os termos e condições de seu relacionamento com os membros do corpo social.
Essa intervenção do Estado vem se tornando cada vez mais acentuada, ordenando que se permita à sociedade obter garantias mínimas de convivência com essa realidade.
3.3 - A responsabilidade civil do Estado no direito brasileiro
O princípio da responsabilidade civil do Estado jamais foi posto em dúvida.
O Código Civil, já em 1916, tomou explícita essa responsabilidade, conforme se depreende da leitura do artigo 15, nos seguintes termos:
“As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano. (grifo nosso)”.
Cabe lembrar que referido artigo causou divergência entre os doutrinadores. Determinados doutrinadores sustentavam tratar-se de responsabilidade subjetiva, tornando-se indispensável a indagação da culpa na conduta do agente estatal, sendo que outros conjeturavam o diagnóstico da responsabilidade objetiva do Estado.
Verificamos que os pressupostos encontrados no artigo sobredito, quais sejam, proceder de modo contrário ao direito ou faltar a dever prescrito por lei, demonstram que a responsabilidade estatal somente se configuraria diante de conduta culposa do agente.
Contudo, o artigo 15 do Código Civil de 1916, foi modificado com o advento do novo Código Civil, que em seu artigo 43, prescreve:
“As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo. (grifo nosso)”.
Diante da norma supramencionada fica evidente que o novo Código Civil disciplinou o tema em perfeita harmonia com a Magna Carta vigente.
No entanto, cumpre ressaltar que o Código Civil de 2002 está atrasado em relação à norma constitucional, tendo em vista que não faz referência às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público.
Cumpre trazer à baila, o fato de que foi com a Constituição de 1946 que se adotou a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, nos termos do preconizado em seu artigo 194: “as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros”. No parágrafo único: “caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes”.
Assim, cristalino se mostra que a regra constitucional passou a consagrar a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, na qual não era exigida a perquirição do fator culpa.
As Constituições posteriores praticamente repetiram o mandamento. A Constituição de 1967 repete a norma em seu artigo 105, acrescentando, no parágrafo único, que a ação regressiva cabe em caso de culpa ou dolo, expressão não incluída no preceito da Constituição anterior. Na Emenda n° 1, de 1969, a norma foi mantida no artigo 107.
A vigente Constituição Federal, alterando as disposições do direito anterior quanto às entidades responsáveis pelos danos causados, estabelece no artigo 37, parágrafo 6°, que:
“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. (grifo nosso)”.
Ao deslocar a responsabilidade civil para o âmbito do serviço público prestado, desconsiderando, em tese, a natureza jurídica pública ou privada da entidade prestadora do serviço, o legislador buscou de alguma forma superar o dissídio que grassava no direito anterior, quando se discutia a aplicabilidade do artigo 107 da Constituição de 1969 às empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações governamentais, permissionárias e concessionárias de serviços públicos e empreiteiras de obras públicas. E o fez com inegável acerto.
Cumpre observar, que a norma constitucional vigente faz referência às pessoas jurídicas de direito público e às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.
As pessoas jurídicas de direito público são, nos termos do preceituado no artigo 18 da Constituição Federal, as pessoas componentes da federação, “União, Estados, Distrito Federal e Municípios”, as autarquias e as fundações públicas de natureza autárquica.
As pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos constituem inovação no mandamento constitucional. O objetivo da “mens legislatoris”[10] para fins de sujeição à responsabilidade objetiva, foi colocar no mesmo patamar, as pessoas jurídicas de direito público e aquelas que, embora com personalidade jurídica de direito privado, executassem funções que, em princípio, caberiam ao Estado. Assim, se o próprio Poder Público delega a terceiros a execução de serviços que, em princípio, lhe competiam, não seria justo que a simples delegação tivesse o resultado de livrar a responsabilidade objetiva do Estado e obstaculizar a reparação de prejuízos pelos administrados.
Então, podemos incluir como pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, as empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas com personalidade de direito privado, quando prestadoras de serviços públicos, e os concessionários e os permissionários de serviços públicos expressamente previstos no artigo 175 da Constituição Federal.
Frise-se, porém, que diante do requisito constitucional, ficam, pois, excluídas as empresas públicas e as sociedades de economia mista que se dedicam à exploração de atividade econômica, por força do artigo 173, parágrafo 1°, da Constituição Federal, que impõe sejam elas regidas pelas normas aplicáveis às empresas privadas. Em consequência, estão elas sujeitas à responsabilidade subjetiva comum do Direito Civil.
Cumpre ressaltar, que as pessoas privadas retratadas no artigo 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal, devem prestar os serviços por delegação do Poder Público, havendo, contudo, a necessidade da existência de um vínculo jurídico de direito público entre o Estado e o delegatário do serviço público.
Dando continuidade na análise do parágrafo 6°, do artigo 37 da Constituição Federal, vê-se que as pessoas jurídicas públicas e privadas, respondem pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros.
Conforme lição de Celso Antônio (2001, p. 813):
“Como pessoa jurídica que é, o Estado, entidade real, porém abstrata (ser de razão), não tem vontade nem ação, no sentido de manifestação psicológica e vida anímica próprias. Estas, só os seres físicos as possuem. Tal fato não significa, entretanto, que lhe faltem vontade e ação, juridicamente falando. Dado que o Estado não possui, nem pode possuir, um querer e um agir psíquico e físico, por si próprio, como entidade lógica que é, sua vontade e sua ação se constituem na e pela atuação dos seres físicos prepostos à condição de seus agentes, na medida em que se apresentem revestidos desta qualidade”.
Para Odete Medauar (2008, p. 370):
“O vocábulo agentes reveste-se de grande amplitude, para abarcar, quanto às entidades integrantes da Administração, todas as pessoas que, mesmo de modo efêmero, realizem funções públicas. Qualquer tipo de vínculo funcional, o exercício de funções de fato, de funções em substituição, o exercício de funções por agente de outra entidade ou órgão, o exercício de funções por delegação, o exercício de atividades por particulares sem vínculo de trabalho (mesários e apuradores em eleições gerais) ensejam responsabilização”.
Pelo relatado, vê-se que o Estado propriamente dito não pode causar dano a ninguém. Sua atuação se concretiza por meio de seus agentes, pessoas físicas capazes de manifestar vontade real. Assim, o que o agente nestas condições faça é o que o Estado fez, cabendo a esse a responsabilidade civil pelos danos causados por aqueles que o fazem presente no mundo jurídico.
Importante salientar que o termo agente não se confunde com o termo servidor. Aquele tem sentido amplo. Esse tem sentido restrito e caracteriza uma relação de trabalho entre o indivíduo e o Estado. Trata-se o servidor de um agente do Estado, mas há outros agentes que não se caracterizam como servidores.
Em suma, as pessoas suscetíveis de serem consideradas agentes públicos, cujos comportamentos ensejam a responsabilidade civil do Estado, são todas aquelas que em qualquer nível de escalão tomam decisões ou realizam atividades que competem ao Estado, prepostas que estão ao desempenho de um mister público.
Finalmente, quadra advertir que a locução ‘nessa qualidade’ diz respeito ao fato de que o Estado só pode ser responsabilizado se o agente estatal estiver no exercício de suas funções, ou, quando menos, guiando-se a pretexto de exercê-la.
Prosseguindo na análise do parágrafo 6°, do artigo 37 da Carta da República, vê-se que o mesmo garantiu à Administração Pública o direito de regresso contra o responsável causador do dano, ou seja, o direito de obter do agente a importância despendida pelo erário no ressarcimento da vítima. No entanto, essa relação de responsabilidade reveste-se de caráter subjetivo, pois pressupõe dolo ou culpa do agente.
Portanto, na segunda parte do dispositivo, a Constituição regula a relação jurídica entre o Estado e seu agente, vinculando as partes à teoria da responsabilidade subjetiva ou com culpa.
No que concerne à primeira parte do dispositivo mencionado, a Magna Carta regula a relação jurídica entre o Estado e o lesado, sendo que os danos causados a esse, pelos agentes daquele, são de responsabilidade civil do Estado, dispensada a prova da culpa pelo lesado.
No preceito constitucional em pauta, vislumbra-se, portanto, dois tipos de responsabilidade civil, quais sejam: a do Estado, sujeito à responsabilidade objetiva, e a do agente estatal, que se submete à responsabilidade subjetiva ou com culpa.
Levando-se em conta a defesa do Estado na ação movida pela vítima do dano, merece destaque a questão relativa à prova, pois frente aos pressupostos da responsabilidade objetiva do Estado, esse só se exime da responsabilidade provando a inexistência do fato administrativo, a inexistência do dano ou a ausência do nexo causal entre o fato e o dano, ou seja, recai sobre o Estado-réu a contraprova sobre as alegações do lesado-autor. Observa-se, no caso, a mitigação do princípio “onus probandi incumbit ei que dicit, no qui negat”, ou seja, o ônus da prova incumbe a quem alega.
3.4 - Excludentes e atenuantes da responsabilidade civil do Estado
Como preleciona Celso Antônio (2001, p. 829):
“Nos casos de responsabilidade objetiva o Estado só se exime de responder se faltar o nexo de causalidade entre seu comportamento comissivo e o dano. Isto é: exime-se apenas se não produziu a lesão que lhe é imputada ou se a situação de risco inculcada a ele inexistiu ou foi sem relevo decisivo para a eclosão do dano. Fora daí responderá sempre. Em suma: realizados os pressupostos da responsabilidade objetiva, não há evasão possível”.
Na lição de Odete Medauar (2008, p. 372):
“Para configurar a responsabilidade civil do Estado há que se verificar o nexo causal entre ação ou omissão do poder público e o evento danoso. Se outra atuação, outro acontecimento, provados pela Administração, levaram ao dano, sem o vínculo ou sem o vínculo total com a atividade administrativa, poderá haver isenção total ou parcial do ressarcimento”.
Para Maria Sylvia (2005, p. 568):
“Sendo a existência do nexo de causalidade o fundamento da responsabilidade civil do Estado, esta deixará de existir ou incidirá de forma atenuada quando o serviço público não for a causa do dano ou quando estiver aliado a outras circunstâncias, ou seja, quando não for a causa única”.
Como relatado pelos autores acima, nos casos de responsabilidade objetiva o Estado se exime de responder se não existir o nexo de causalidade entre o seu agir e o dano produzido, ou, melhor esclarecendo, o Estado só se isenta se não foi o autor da lesão que lhe for imputada, ou se a situação de risco atribuída a ele inexistiu ou foi irrelevante ou sem relevo decisivo para a eclosão do dano.
Autores pátrios e estrangeiros mencionam como causas a considerar na esfera da responsabilidade pública, aptas a excluir o nexo causal entre a conduta do Estado e o dano causado ao administrado, a força maior, o caso fortuito, o estado de necessidade, a culpa da vítima e a culpa de terceiros ou fato de terceiros.
A força maior é caracterizada como sendo um fenômeno da natureza, isto é, um acontecimento imprevisível, inevitável e estranho à vontade das partes, como por exemplo, um terremoto, uma tempestade, um raio, um maremoto, um tornado. Nesses casos, o Estado se torna incapacitado diante da imprevisibilidade, inevitabilidade e irresistividade das causas determinantes de tais fenômenos, causas essas que elidem a obrigação de reparação por ausência do nexo de causalidade entre a atuação do Estado e o dano ocorrido.
Por oportuno, importante ressaltar o preconizado por Carvalho Filho (2009, p. 535):
“É preciso, porém, verificar, caso a caso, os elementos que cercam a ocorrência do fato e os danos causados. Se estes forem resultantes, em conjunto, do fato imprevisível e de ação ou omissão culposa do Estado, não terá havido uma só causa, mas concausas, não se podendo, nessa hipótese, falar em excludente de responsabilidade. Como o Estado deu causa ao resultado, segue-se que a ele será imputada responsabilidade civil. Por respeito à equidade, porém, a indenização será mitigada, cabendo ao Estado reparar o dano de forma proporcional à sua participação no evento lesivo e ao lesado arcar com o prejuízo correspondente a sua própria conduta’.
No caso fortuito, o dano é decorrente de ato humano, de falha da Administração, gerador de resultado danoso e alheio à vontade do agente, embora por vezes previsível. Assim, sendo o caso fortuito um acidente decorrente de causa desconhecida, não tem o condão de elidir o nexo causal entre o comportamento defeituoso do Estado e o dano produzido.
Cabe esclarecer que o caso fortuito e a força maior estão previstos no artigo 393 do novo Código Civil. Porém, referida norma não os define separadamente, o que vem causando dissidência na esfera jurídica no tocante às suas definições.
O estado de necessidade configura também causa de exclusão da responsabilidade e, portanto, da exclusão da obrigação de indenizar, pois traduz situação em que prevalece o interesse geral sobre o pessoal ou mesmo sobre os direitos individuais, “princípio da supremacia do interesse público”. Ocorre quando há situações de perigo iminente, não provocadas pelo agente, tais como guerras, em que se faz necessário um sacrifício do interesse particular em favor do interesse público, que poderá intervir em razão da existência de seu poder discricionário.
Também é considerada causa excludente de responsabilidade civil do Estado, a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, pois nesse caso inexistirá nexo de causalidade, visto que o Poder Público não pode ser responsabilizado por um fato a que não deu causa. Leva-se em conta que a culpa da vítima ou do terceiro é causa suficiente para elidir a responsabilidade estatal. Decorre do princípio lógico de que ninguém poderá ser responsabilizado por atos que não cometeu ou para os quais não concorreu.
Em síntese, conforme preconizado por Rui Stoco (2001, p. 764):
“Em resumo, a culpa do lesado não é relevante por ser culpa, mas se-lo-á unicamente na medida em que através dela se pode ressaltar a inexistência de comportamento estatal produtor do dano.”
Por outro lado, observando-se que o lesado concomitantemente com a conduta estatal, participou do resultado danoso, seria injusto atribuir somente ao Poder Público o dever de reparar os prejuízos. Assim, nos casos em que se verifica a existência de concausas, ou seja, causas praticadas simultaneamente pelo Estado e pelo lesado, não haverá exclusão de responsabilidade e, sim, atenuação do quantum indenizatório na medida da participação no evento.
A corroborar o acima exposto, trazemos o preconizado no artigo 945 do novo Código Civil:
“Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”. (grifo nosso). O dispositivo em comento reforça a solução aplicada no caso de responsabilidade civil do Estado com participação do lesado no desfecho do próprio dano.”
3.5 - Caracteres da conduta lesiva ensejadora de responsabilidade do Estado
A responsabilidade civil do Estado poderá originar-se de duas situações distintas, quais sejam: de conduta positiva do Estado, isto é, comissiva, no sentido de que o agente público é o causador imediato do dano e, de conduta omissiva, em que o Estado não atua diretamente na produção do evento danoso, mas tinha o dever de evitá-lo, como é o da falta do serviço nas modalidades em que o serviço não funcionou, funcionou mal ou funcionou tardiamente, ou ainda, pela atividade que se cria a situação propiciatória do dano, expondo o administrado em risco.
Para Celso Antônio (2001, p. 815-816):
“Problema crucial é o saber-se se basta a mera objetividade de uma conduta estatal lesiva a terceiro ou se é necessário que o comportamento danoso seja viciado por culpa (ainda que na modalidade de falta de serviço) ou dolo.
Parece-nos que a solução correta do problema, à luz dos princípios inerentes ao Estado de Direito [...] exige o discrímen de três situações distintas, a saber: a) Casos em que é o próprio comportamento do Estado que gera o dano. Trata-se, portanto, de conduta positiva, é dizer, comissiva, do Estado. b) Casos em que não é uma atuação do Estado que produz o dano, mas, por omissão sua, evento alheio ao Estado causa um dano que o Poder Público tinha o dever de evitar [...]. c) Casos em que também não é uma atuação do Estado que produz o dano, contudo é por atividade dele que se cria a situação propiciatória do dano, porque expôs alguém a risco”.
Na precisa lição de Frederico Marques, citado por Rui Stoco (2001, p. 95):
“a omissão é uma abstração, um conceito de linhagem puramente normativa, sem base naturalística. Ela aparece, assim, no fluxo causal que liga a conduta ao evento, porque o imperativo jurídico determina um facere para evitar a ocorrência do resultado e interromper a cadeia de causalidade natural, e aquele que deveria praticar o ato exigido, pelos mandamentos da ordem jurídica, permanece inerte ou pratica ação diversa da que lhe é imposta.”
Verifica-se, assim, que a omissão, atingindo um bem juridicamente tutelado, reveste-se de um “non facere” relevante para o Direito. Trata-se a omissão de um comportamento negativo. Origina-se da falta de ação por parte de alguém. A sua ideia principal, o seu espírito, está propriamente em não se ter agido de determinada forma.
CAPÍTULO 4 - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DECORRENTE DE CONDUTA OMISSIVA
4.1 - Introdução
Resta incontroverso, que o Estado causa danos aos administrados por ação ou omissão. Assim, a responsabilidade civil extracontratual do Estado pode estar vinculada a uma conduta comissiva ou omissiva da Administração, como causa do dano produzido.
No tocante à conduta omissiva do ente estatal, instaura-se controvérsia no propósito de que esta não constitui fato gerador da responsabilidade civil extracontratual do Estado, tendo em vista que nem toda conduta omissiva vislumbra uma inércia, uma incúria, um descaso, por parte do Estado em cumprir um dever legal.
Entretanto, quando houver omissão por parte do Estado, necessário se faz diferençar se a omissão constitui, ou não, fator gerador da responsabilidade civil do Estado, pois, como se sabe, nem toda conduta omissiva revela um desleixo do Estado em cumprir um dever legal. Cumpre observar, que o Estado só será civilmente responsável e obrigado a reparar os prejuízos, quando se omitir diante do dever legal de impedir a ocorrência do dano.
Tem-se como certo, que o princípio da responsabilidade civil do Estado jamais foi posto em dúvida no ordenamento jurídico brasileiro.
Embora omissa a respeito da responsabilidade do Estado, dispunha a Constituição Republicana de 1891, em seu artigo 82, que “os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos”.
Tornando explícita essa responsabilidade, o Código Civil de 1916 dispunha, no artigo 15, artigo 43 do atual Código Civil: “As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano".
A Constituição de 1946, foi clara: “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo único. Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes”.
A Constituição de 1967 seguiu a mesma linha, dispondo de maneira ainda mais incisiva, no artigo 105, repetido no artigo 107 da Emenda Constitucional de 1969: “As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”.
Por fim, e, mantendo os mesmos princípios, a Constituição de 1988 ampliou a extensão dessa responsabilidade, conforme seu artigo 37, parágrafo 6°: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Observamos que o artigo 107 da Constituição Federal de 1969 e o artigo 37, parágrafo 6°, da atual Carta Magna, seguiram a linha traçada na Constituição Federal de 1946, orientando-se pela doutrina do Direito Público e mantendo a responsabilidade civil objetiva do Estado, sob a modalidade do risco administrativo.
Contudo, verifica-se a existência de entendimentos diversos entre os doutrinadores, no sentido de saber se seriam os pressupostos da ação e da omissão do Poder Público como embasamento da responsabilidade civil do Estado, idênticos ou não.
Nesse contexto, originou-se duas correntes, uma seguindo a fundamentação de Celso Antônio Bandeira de Mello, seguido por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Lucia Valle Figueiredo, Maria Helena Diniz, e outros, que propagam a teoria da responsabilidade subjetiva, com fulcro no artigo 15 do antigo Código Civil; e a outra, defendida por vários autores, dentre os quais, Odete Medauar, Yussef Said Cahali, Álvaro Lazzarini, Alexandre de Moraes, Celso Ribeiro Bastos, Carvalho Filho, dentre outros, que divulgam a teoria da responsabilidade objetiva, com fundamento no artigo 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal.
4.2 - A responsabilidade subjetiva do Estado por conduta omissiva capitaneada por Celso Antônio Bandeira de Mello
Celso Antônio Bandeira de Mello estuda o tema com intensidade extraordinária, ainda que questionável em suas conclusões.
Assim, para Celso Antônio (2001, p. 818):
“Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo”.
Assim, é de ver-se que para Celso Antônio, há em face do texto constitucional, previsão de responsabilidade objetiva do Estado, mas para que essa responsabilidade se concretize, cumpre que os danos hajam sido provocados por agentes públicos. Se não forem por esses causados, se forem omissos e dessa omissão resultar danos para terceiros, a causa lesiva terá sido propiciada por eles, mas eles não a causaram, por conseguinte, não há falar-se em responsabilidade objetiva. Logo, quando o Estado se omite e graças a isso ocorre um dano, este é causado por outro evento, mas não pelo Estado.
O Estado só responde quando descumpre o dever legal de agir, quando se comporta ilicitamente por deixar de intervir, ou seja, só responde por omissão quando deveria atuar e não atuou. A responsabilidade por omissão é responsabilidade por comportamento ilícito e, sendo ilícito, trata-se de responsabilidade subjetiva, pois fundada no dolo ou na culpa, embora possa nutrir-se de uma culpa não individualizável na pessoa do funcionário, mas atribuída ao serviço estatal genericamente; é a culpa anônima ou “faute du service”.
Por certo, para que se dê forma à responsabilidade estatal, não é suficiente a simples relação entre a omissão estatal e o dano experimentado. Necessário se faz a existência de obrigação legal de impedir o evento danoso, mediante atuação diligente, pois, caso contrário, levaria ao absurdo de imputar ao Estado responsabilidade por dano que não causou.
Então, a responsabilidade do Estado só cabe se tiver havido descumprimento de um dever jurídico estatal, por inércia, morosidade ou ineficiência, quando devia ser atuante, solerte, eficiente, segundo os limites de eficiência normais.
Na precisa lição do sempre lembrado e saudoso Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, citado por Rui Stoco (2001, p. 751-752):
“não se trata de culpa individual do agente público, causador do dano. Ao contrário, diz respeito a culpa do serviço diluída na sua organização, assumindo feição anônima, em certas circunstâncias, quando “não é possível individuá-la e, então, considera-se como causador do dano só a pessoa coletiva ou jurídica. Prefigura-se a culpa no não funcionamento do serviço, se obrigatório ou na sua má prestação, ou, então na sua prestação retardada. Destarte, a responsabilidade deflui do descumprimento da lei, que deixou de ser obedecida na conformidade de seu comando. Em desviando-se a prestação do serviço do regime legal a ele imposto, deixando de prestá-lo, ou prestando-o com atraso ou de modo deficiente, por falha de sua organização, verifica-se a responsabilidade da pessoa jurídica e, portanto, do Estado, que, então, deve compor o dano consequente dessa falta administrativa, desse acidente quanto à realização do serviço”.
Ainda, para Celso Antônio (2001, p. 820):
“De fato, na hipótese cogitada o Estado não é o autor do dano. Em rigor, não se pode dizer que o causou. Sua omissão ou deficiência haveria sido condição do dano, e não causa. Causa é o fator que positivamente gera um resultado. Condição é o evento que não ocorreu, mas que, se houvera ocorrido, teria impedido o resultado.
É razoável e impositivo que o Estado responda objetivamente pelos danos que causou. Mas só é razoável e impositivo que responda pelos danos que não causou quando estiver de direito obrigado a impedi-los”.
Dessume-se, portanto, que quando o comportamento lesivo é omissivo, os danos não são causados pelo Estado, mas por evento alheio a ele. A omissão é condição do dano, porque propicia sua ocorrência. Condição é o evento cuja ausência enseja o surgimento do dano. Assim, no caso de dano por comportamento omissivo, a responsabilidade é subjetiva.
Preleciona Celso Antônio (2001, p. 821):
“Finalmente, quadra advertir que a responsabilidade por comportamentos omissivos não se transmuda em responsabilidade objetiva nos casos de “culpa presumida”
Em síntese, é de reconhecer-se uma presunção de culpa do Poder Público, em várias situações de falta de serviço, ou como chamam os franceses “faute du service”, sem a qual o administrado ficaria desamparado e em situação de extrema fragilidade para demonstrar que o serviço não foi executado da forma que deveria. Profetiza que nestas hipóteses deva ocorrer a inversão do ônus da prova.
Lembra Celso Antônio (2001, p. 822):
“É corretíssima, portanto, a posição sempre e de há muitos lustros sustentada pelo Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello que serviu de fundamento e de norte para os desenvolvimentos contidos neste trabalho, segundo quem a responsabilidade do Estado é objetiva no caso de comportamento danoso comissivo e subjetiva no caso de comportamento omissivo.
Com efeito, a lição perfeita do citado mestre está sintetizada com absoluta precisão nas seguintes palavras: A responsabilidade do Estado por omissão só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização e funcionamento do serviço, que não funciona ou funciona mal ou em atraso, e atinge os usuários do serviço ou os nele interessados”.
Assim, para o citado mestre, os episódios suscetíveis de ocasionar responsabilidade extracontratual do Estado por omissão ou exercício deficiente são fatos da natureza e conduta lesiva de terceiros, cujo prejuízo o Poder Público não obstou, embora devesse fazê-lo.
Na mesma linha, trazemos a lição de Carvalho Filho (2009, p. 538):
“A consequência, dessa maneira, reside em que a responsabilidade civil do Estado, no caso de conduta omissiva, só se desenhará quando presentes estiverem os elementos que caracterizam a culpa. A culpa origina-se, na espécie, do descumprimento do dever legal atribuído ao Poder Público, de impedir a consumação do dano. Resulta, por conseguinte, que, nas omissões estatais, a teoria da responsabilidade objetiva não tem perfeita aplicabilidade, como ocorre nas condutas comissivas”.
Parafraseando Carvalho Filho, mais um elemento merece destaque na demanda do elemento culpa visando a responsabilidade do Estado por condutas omissivas. Assim, o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, prescreve que “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei”, o que subentende que a responsabilidade objetiva, ou sem culpa, pressupõe referência, citação expressa em norma legal. Ainda que o artigo 43, do Código Civil, faça referência às pessoas jurídicas de direito público, não abrangeu em seu contento a conduta omissiva do Estado, o mesmo se verificando com o artigo 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal. Do que se infere que precitados dispositivos aplicam-se somente a condutas comissivas, sendo que as omissivas só geram responsabilidade estatal se houver culpa.
4.3 - A responsabilidade objetiva do Estado por conduta omissiva defendida pela doutrina majoritária
Na lição de Cretella Júnior, citado por Cahali (2007, p. 218):
“a omissão configura a culpa in omittendo ou in vigilando. São casos de inércia, casos de não-atos. Se não vigia quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Em todos os casos, culpa, ligada à ideia de inação”.
Ressalta Aguiar Dias (1979, p. 252):
“Só é causa aquele fato a que o dano se liga com força de necessidade. Se numa sucessão de fatos, mesmo culposos, apenas um, podendo evitar a consequência danosa, interveio e correspondeu ao resultado, só ele é causa, construção que exclui a polêmica sobre a mais apropriada adjetivação. Se ao contrário, todos ou alguns contribuíram para o evento, que não ocorreria, se não houvesse a conjugação deles, esses devem ser considerados causas concorrentes ou concausas”.
Dessa forma, Aguiar Dias deduz que a inércia do Estado imputa responsabilidade civil a esse, e a consequente obrigação de reparar integralmente o dano provocado, na forma prevista no artigo 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal. Portanto, a responsabilidade é objetiva.
Já, Álvaro Lazzarini, contesta a afirmação de que o ato comissivo seria causa, enquanto o omissivo não o seria, podendo, quando muito, ser condição do dano, pretendida por Celso Antônio.
Ensina Lazzarini (1989, p. 16):
“Embasa-se em que as obrigações, em direito, admitem causas, podendo elas ser a lei, o contrato ou o ato ilícito; dessa forma, causa, nas obrigações jurídicas, é todo fenômeno de transcendência jurídica capaz de produzir um efeito jurídico pelo qual alguém tem o direito de exigir de outrem uma prestação; daí concluir que a omissão pode ser causa e não condição, ou, em outros termos, o comportamento omissivo do agente público, desde que deflagrador primário do dano praticado por terceiro, é causa e não simples condição do evento danoso; portanto, há que se examinar, em cada caso concreto, se o evento danoso teve como causa a omissão grave do representante do Estado; se teve, a responsabilidade objetiva do Estado (por culpa in omittendo) aparece; se não teve, isto é, se o dano ocorreu por omissão do funcionário, incapaz de ser caracterizado como causa daquele, tal omissão não gerará a responsabilidade do Estado”.
Em substância, a própria filosofia jurídica está longe de uma discriminação conceitual sobre “causa” e “condição”, sendo possível ultrapassar pretensas contradições, por meio do emprego de alguns princípios que devem ser observados:
{C}a) a omissão de conduta exigível da Administração, na execução de obra ou na prestação de serviço, induz a responsabilidade civil do Estado pelos danos decorrentes dessa omissão;
{C}b) desde que exigível a atuação estatal, seja na execução de obras, seja na prestação de serviço, a conduta omissiva da Administração na implantação das obras necessárias para evitar o dano, ou na execução do serviço devido, determina a responsabilidade civil do Estado pelo dano experimentado pelo administrado, identificada a sua causa na omissão das obras ou dos serviços devidos; ainda, que, para tanto, tenham concorrido fatores estranhos, como fatos da natureza, de terceiro ou do próprio ofendido, quando, então, a conduta omissiva da Administração atuará como simples concausa da verificação do evento danoso, induzindo, daí, a proporcionalização da responsabilidade indenizatória;
{C}c) não sendo exigível a conduta da administração, ainda que esta se omita na prestação de serviço ou na execução de obra que contingencialmente ou eventualmente poderia ter evitado o dano, o prejuízo experimentado pelo administrado por ato próprio, por fato da natureza ou de terceiro, neste encontra sua causa eficaz, apta, hábil, capaz, não havendo como imputá-la à omissão estatal da obra ou do serviço inexigível. Em tais circunstâncias, a omissão do Poder Público qualifica-se como simples condicionante da verificação do evento danoso, insuficiente, contudo, para determinar a responsabilidade civil do Estado.
Em síntese, no simples conceito de descumprimento de obrigação exigível já está embutida a ideia de culpa, só refutada, só rebatida, só contestada, se demonstrada a excludente da inexigibilidade do ato omitido, posto como causa do dano, ou seja, se demonstradas as exceções convencionais do caso fortuito, da força maior ou do ato de terceiro ou do próprio ofendido.
Importante ressaltar a lição de João Donizeti Gandine e Diana Silva Salomão, citados por Cahali (2007, p. 221):
“Nota-se, assim, que não é necessário transmudar a responsabilidade objetiva em subjetiva para que a Administração se desvincule do dever de indenizar; basta que esta demonstre que não tinha o dever de agir e que, portanto, a sua conduta não foi, do ponto de vista jurídico, causa do evento danoso”.
4.4 - Considerações sobre a natureza da responsabilidade civil do Estado por conduta omissiva
Como observado, são concordes os autores pátrios no que diz respeito à natureza da responsabilidade do Estado por conduta comissiva. No entanto, no que tange à conduta omissiva, dividem-se os autores em duas correntes: os que partilham a natureza objetiva dessa responsabilidade e os que defendem sua natureza subjetiva. Dentre os primeiros, citamos Yussef Said Cahali, Odete Medauar, Álvaro Lazzarini, Celso Ribeiro Bastos, entre outros; na segunda corrente, Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Lucia Valle Figueiredo e outros.
A segunda corrente, capitaneada por Celso Antônio Bandeira de Mello, adotou a posição sempre e de há muitos lustros sustentada por seu pai, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, segundo a qual a responsabilidade do Estado é objetiva no caso de comportamento danoso comissivo e subjetiva no caso de comportamento omissivo, posição essa que serviu de fundamento e norte para o desenvolvimento dos trabalhos de Celso Antônio.
Contudo, não parece haver dúvida de que a responsabilidade civil do Estado pode resultar de um comportamento comissivo ou omissivo da Administração, como causa do dano experimentado pelo administrado.
É de ver-se que a própria filosofia jurídica está longe de uma discriminação conceitual sobre “causa” e “condição”, sendo possível ultrapassar pretensas contradições, por meio do emprego de alguns princípios, o que demonstra que substancialmente tais manifestações não se revelam conflitantes, sendo mais aparente o confronto que se pretende.
Como visto nos ensinamentos de Álvaro Lazzarini, causa, nas obrigações jurídicas, é todo fenômeno de transcendência jurídica capaz de produzir um efeito jurídico pelo qual alguém tem o direito de exigir de outrem uma prestação; daí concluir que a omissão pode ser causa e não condição, ou, em outros termos, o comportamento omissivo do agente público, desde que deflagrador primário do dano praticado por terceiro, é causa e não simples condição do evento danoso.
Ademais, a Constituição Federal, no artigo 37, parágrafo 6°, não diferençou as duas condutas, quando poderia perfeitamente fazê-lo. Desse modo, o vocábulo “causarem”, do precitado dispositivo, deve ser lido e entendido como “causarem por ação ou omissão”.
Porquanto a inovação introduzida a partir da Constituição de 1946, com reiteração nas posteriores, consagrando o princípio da responsabilidade objetiva do Estado pelos danos decorrentes de sua atividade, entender-se que o legislador brasileiro, muito bem informado à época da evolução do instituto, tivesse retrocedido no tempo, instituindo a responsabilidade objetiva apenas para os casos de comportamento comissivo, hesitando, voltando atrás, no tocante ao comportamento omissivo, aos tempos da culpa civilística ou da “faute du service”, seria descomedido, ou seja, ultrapassaria os justos limites.
Cumpre observar no que tange ao causador do dano, que o constituinte de 1988 substituiu a expressão “funcionário”, que se continha nas Constituições anteriores, por “agente”, que, mesmo fora do plano jurídico-administrativo, revela-se mais adequada, pela sua maior compreensão e por ser muito mais abrangente. Outrossim, enquanto a chamada desestatização apenas engatinhava, estendeu o constituinte a responsabilidade para os particulares prestadores de serviços públicos.
Dessume-se, portanto, não fazer sentido o fato de que teria o constituinte regredido décadas, para, a par da responsabilidade objetiva, estabelecida para a conduta comissiva, fixar a responsabilidade subjetiva para a conduta omissiva.
Não há dúvida de que a responsabilidade objetiva resultou de acentuado processo evolutivo, passando a atribuir maior benefício à vítima do dano, por estar dispensada de provar determinados elementos que dificultam o surgimento do direito à reparação dos prejuízos, como, por exemplo, a identificação do agente, a culpa desse na conduta administrativa, a falta do serviço etc.
Assim, se o próprio legislador constitucional, cônscio dessa evolução, previu a responsabilidade objetiva com a mesma intenção, para questões que dizem respeito ao meio ambiente e aos direitos do consumidor, não faz sentido vislumbrar o entendimento de que esse mesmo legislador, no tocante à responsabilidade por omissão, tivesse marchado em ré, para exigir que o lesado tivesse que provar a culpa do agente, mesmo porque, na omissão, em regra, é muito mais difícil a prova da culpa.
Em síntese, transparece ser desprezível, desdenhável, a discriminação entre causa e condição, como fatores dilatadores ou ampliativos da responsabilidade civil do Estado.
Por demais, a lição de Celso Antônio fundamenta-se em que a conduta omissiva do Estado é sempre ilícita. Principia da ideia de que a responsabilidade do Estado origina do fato de que esse, tendo o dever de agir, não agiu. Por conseguinte, descumpriu um dever legal, agiu ilicitamente. À vista disso, mesmo firmado tal entendimento, não restaria afastada a responsabilidade objetiva do Estado omissivo, por força de disposição constitucional expressa, cabendo à vítima demonstrar a conduta omissiva do agente estatal, o dano experimentado e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano. Ao Estado cabe demonstrar que não tinha o dever legal de agir, ou, que tendo, não deixou de agir, ou ainda, a existência de qualquer das excludentes de responsabilidade, culminando com o afastamento da obrigação de reparar o dano.
Desse modo, enfatiza Cahali (2007, p.221):
“A questão, portanto, desloca-se para o âmbito da exigibilidade da conduta estatal omitida, invocada como causa do dano reparável; mais propriamente, a questão se insere, com melhor adequação, em sede de exigibilidade da obra não executada ou do serviço não prestado.
Nota-se, assim, ‘que não é necessário transmudar a responsabilidade objetiva em subjetiva para que a Administração se desvincule do dever de indenizar; basta que esta demonstre que não tinha o dever de agir e que, portanto, a sua conduta não foi, do ponto de vista jurídico, causa do evento danoso.
Notoriamente elástico o conceito de exigibilidade do ato estatal, no caso, a carga de subjetivismo que caracteriza a sua identificação é que terá induzido alguns autores ao exame das hipóteses da perspectiva da responsabilidade subjetiva do Estado, com perquirição necessária do elemento culpa”.
Cumpre ainda ressaltar, que Celso Antônio entende que a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por comportamento ilícito. E, sendo responsabilidade por ilícito, é necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado que não seja proveniente de culpa ou dolo.
Por outro lado, entende Celso Antônio que a conduta comissiva decorrente de ato ilícito, frise-se, ilícito, gera responsabilidade objetiva. Adverte que, às vezes a conduta estatal causadora do dano é ilegítima e, nesse caso, não haverá lugar para variar as condições de aplicação da responsabilidade do Estado.
Enfatiza Celso Antônio (1998, p. 623):
“[...] deveras, se a conduta legítima produtora de dano enseja responsabilidade objetiva, a fortiori deverá ensejá-la a conduta ilegítima causadora de lesão injurídica [...] saber-se se o Estado agiu ou não culposamente (ou dolosamente) é questão irrelevante”.
É de se inquirir, porque Celso Antônio, na responsabilidade subjetiva por ato omissivo ilícito assevera a existência de culpa ou dolo e, na responsabilidade objetiva por ato comissivo ilícito, não discute tais elementos. Se o faz com fundamento na diferenciação entre “causa” e “condição”, comete equívoco, pois tal distinção já não se sustenta cientificamente.
Assim sendo, desconhecida a dicotomia entre causa e condição, é de ver-se que o dano experimentado pelo administrado, resultante de ato comissivo ou omissivo do Estado, deve ser reparado independentemente da indagação da existência ou não de culpa, caracterizando, portanto, responsabilidade objetiva.
É de se indagar, ainda, como ressaltado pelo próprio doutrinador, que se a conduta legítima produtora de dano enseja responsabilidade objetiva, por que não a ensejaria a conduta omissiva ilícita, sendo que o mesmo leciona tratar-se de questão irrelevante saber-se se o Estado agiu ou não culposamente ou dolosamente, ao se referir à conduta ilegítima.
Com efeito, há autores que sustentam que a omissão do agente estatal pode ser causa do dano.
Ressalta Rui Stoco (2001, p. 94):
“[...] a lesão a bem jurídico cuja existência se verificará no plano normativo da culpa, está condicionada à existência, no plano naturalístico da conduta, de uma ação ou omissão que constitui a base do resultado lesivo.
Não há responsabilidade civil sem determinado comportamento humano contrário à ordem jurídica.
Ação e omissão constituem, por isso mesmo, tal como no crime, o primeiro momento da responsabilidade civil”.
Na lição de Cahali (2007, p. 221):
“[...] Por outro lado, desde que exigível da Administração a execução da obra ou a prestação do serviço que teriam prevenido ou evitado o evento danoso sofrido pelo particular, identifica-se na conduta omissiva estatal a causa bastante para determinar a responsabilidade objetiva do Estado, por sua reparação: no simples conceito de descumprimento de obrigação exigível já está embutida a ideia de culpa, só elidível se demonstrada a excludente da inexigibilidade do ato omitido, posto como causa do dano, se demonstradas as exceções convencionais do caso fortuito, da força maior ou do ato próprio do ofendido”.
Preleciona, ainda, Celso Antônio, que é conveniente atentar para o fato de que a responsabilidade por condutas omissivas não se converte em responsabilidade objetiva nos casos de “culpa presumida”. Ressalta que em inúmeras situações de “falta de serviço” é de admitir-se uma presunção de culpa do Poder Público, sem a qual o administrado estaria impossibilitado de comprovar ou evidenciar que o serviço não foi executado como deveria, ficando em posição de extrema fragilidade. Destaca que nestas hipóteses, é justo, legítimo, aceitável, que ocorra inversão do ônus da prova.
Deixa transparecer o autor, no acima relatado, quando faz uso das expressões “presunção de culpa” e “inversão do ônus da prova”, que admite a responsabilidade objetiva nas hipóteses referidas, pois em tais casos o administrado estaria isento de provar a culpa por negligência, imperícia ou imprudência no serviço, ensejadoras do dano, ou então o dolo, intenção de omitir-se, quando era obrigatório para o Estado atuar e fazê-lo segundo certo padrão de eficiência capaz de obstar o evento lesivo.
Comporta aqui lembrar, outra afirmação de Celso Antônio, no sentido de que ao contrário do que se passa com a responsabilidade do Estado por comportamentos comissivos, na responsabilidade por comportamentos omissivos a questão não se examina nem se decide pelo ângulo passivo da relação, mas pelo pólo ativo da relação.
Não merece aceitação a afirmação do autor, pois em qualquer caso de responsabilidade do Estado, seja por conduta comissiva, seja por omissiva, vários elementos devem ser considerados, quais sejam: a conduta do agente estatal, o dano experimentado pelo administrado e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano. Outrossim, há que se levar em conta as causas excludentes e atenuantes da responsabilidade, a inexistência do dever de agir, o fato de o dano não ser especial e anormal etc.
Por demais, cumpre analisar outra afirmação da lavra de Celso Antônio, de que o Estado estaria erigido ao status de segurador universal, caso fosse chamado a responder objetivamente nos danos decorrentes de comportamento estatal omissivo.
De acordo com Celso Antônio (2001, p. 820-821):
“[...] É razoável e impositivo que o Estado responda objetivamente pelos danos que causou. Mas só é razoável e impositivo que responda pelos danos que não causou quando estiver de direito obrigado a impedi-los.
Ademais, solução diversa conduziria a absurdos. É que, em princípio, cumpre ao Estado prover a todos os interesses da coletividade. [...] A admitir-se responsabilidade objetiva nestas hipóteses, o Estado estaria erigido em segurador universal”.
Contudo, não parece ser esse o entendimento que prevalece, pois em todos os casos em que o Estado é chamado a reparar os danos experimentados pelos administrados, decorrentes de comportamentos omissivos ou mesmo comissivos, terá ele a oportunidade de defender-se demonstrando a existência das circunstâncias excludentes ou atenuantes da responsabilidade, bem como que o dano não é especial nem anormal ou que não tinha o dever de agir. Esta ampla gama de defesas leva ao entendimento de que mesmo aplicando a teoria do risco administrativo e, portanto, a responsabilidade objetiva, em todos os casos de conduta omissiva, o Estado não será erigido à condição de segurador universal.
A corroborar o acima exposto, mencionamos o fato de que embora tenha a Constituição admitido a responsabilidade objetiva, aceitando mesmo a teoria do risco administrativo, fê-lo com temperamentos, para prevenir os excessos e a própria injustiça. Não obrigou, é certo, à vítima e aos seus beneficiários, em caso de morte, a prova da culpa ou dolo do funcionário, para alcançar a indenização. Não privou, todavia, o Estado do propósito de eximir-se da reparação, se o dano defluira do comportamento doloso ou culposo da vítima, de força maior ou de fato de terceiro. Em suma, se não existir nexo de causalidade entre a ação ou omissão do Estado e o prejuízo. A contrário sensu, seria admitir a teoria do risco integral, forma radical que obrigaria a Administração a indenizar sempre, o que seria absurdo.
Efetivamente, a elevação do direito ao ressarcimento do lesado por atos da Administração à condição de garantia constitucional apenas buscou reafirmar o princípio da responsabilidade do Estado pelos danos resultantes de sua atividade, sufragando, agora, a teoria da responsabilidade objetiva, mais conforme a natureza e atividade do ente público, responsabilidade objetiva esta que se vinha projetando intensamente em consideráveis setores da atividade privada.
Contudo, informada pela teoria do risco, a responsabilidade do Estado apresenta-se hoje, na maioria dos ordenamentos, como responsabilidade objetiva. E essa evolução no sentido de sua objetivação torna-se mais evidente ainda, quando nos reportamos à leitura do preconizado no artigo 43, do novo Código Civil:
Art. 43: “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”. (grifo nosso).
Diante da norma supramencionada fica evidente que o novo Código Civil disciplinou o tema em perfeita harmonia com a Magna Carta vigente.
Cumpre observar, por oportuno, que o legislador no parágrafo 6°, do artigo 37 da Constituição Federal, assegurou à Administração o direito de regresso contra o responsável, isto é, o direito de obter do agente o pagamento, aos cofres públicos, da importância despendida no ressarcimento da vítima. Condicionou, no entanto, o direito de regresso à prova do dolo ou culpa do agente. Portanto, essa relação de responsabilidade reveste-se de caráter subjetivo, porque pressupõe dolo ou culpa do agente.
Por fim, pode-se afirmar que o princípio da responsabilidade civil do Estado jamais foi posto em dúvida no direito brasileiro, tornando explícita essa responsabilidade com o advento do Código Civil de 1916, mais precisamente com o disposto em seu artigo 15. Na realidade, terá sido apenas com a Constituição de 1946 que, pelo disposto em seu artigo 194, se deu a adoção expressa do princípio da responsabilidade objetiva do Estado. A Constituição Federal de 1988 alargou consideravelmente o conceito da responsabilidade civil, de modo a abranger aspectos concretos que o direito anterior não conhecia, ou não levava em conta para não conceder indenização. A jurisprudência mais recente, de maneira uniforme, preserva o entendimento de que, no caso, é efetivamente objetiva a responsabilidade do Estado pela obrigação de indenizar.
Ainda, parafraseando Carvalho Filho, pertinente se mostra tecer um último comentário sobre a matéria. Vez por outra, algumas vozes ecoam com o objetivo de sustentar a responsabilidade integral do Estado pelas omissões genéricas a ele imputadas. Aludidas vozes se tornam mais frequentes na medida em que se revela a ineficiência do Poder Público para atender a certas demandas sociais. Contudo, a solução deve ser buscada na órbita política e jurídica e, não, na seara suscetível de paixão. Não paira dúvida de que o Estado é omisso no cumprimento de uma variada gama de seus deveres. Somos sabedores de que há carências nos setores da saúde, segurança, educação, habitação, emprego, previdência social, proteção à infância e a juventude, ou seja, no rol dos direitos sociais previstos no artigo 6°, da Magna Carta. Todavia, a equacionalização dessas demandas requer a execução de políticas públicas para as quais o Estado, via de regra, não conta com recursos financeiros satisfatórios, ou conta, mas investe mal referidos recursos. Citadas omissões, por genéricas que são, podem quando muito dar origem à eventual responsabilização política de seus dirigentes, mas não dão causa à responsabilidade civil do Estado. Fato é que o Poder Público na administração do interesse público comete tantos artifícios, tanto ardil, que começa a incutir na sociedade um sentimento de cólera despertado por ação indigna. Compreensível, no entanto, a indignação, mas tal fato não induz ao entendimento de que o Estado tenha que ressarcir ou reparar toda a sociedade pelas privações ou necessidades a que ela se sujeita. Dessume-se, pois, que deve separar-se o sentimento emocional das soluções jurídicas, tendo em vista que são essas que o Direito considera.
Com fundamento nesses aspectos, preocupantes se mostram as decisões judiciais que imputam responsabilidade civil ao Estado por omissão, frente à inexistência de nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o dano, ou seja, omissões genéricas originárias das carências existentes em todas as sociedades.
4.5 - Considerações sobre a responsabilidade fundamentada na teoria do risco administrativo
Para Odete Medauar (2000, p. 430-431):
“a responsabilidade, fundamentada na teoria do risco administrativo, apresenta-se, hoje, na maioria dos ordenamentos jurídicos, regida pela teoria da responsabilidade objetiva. A adoção da responsabilidade objetiva do Estado traz, por conseguinte, o sentido de igualdade de todos ante os ônus e encargos deste e o próprio sentido de justiça [equidade]. Como nem sempre é possível identificar o agente causador do dano, nem demonstrar o dolo ou culpa, melhor se asseguram os direitos da vítima através da aplicação da responsabilidade objetiva ao Estado”.
“Se em tese, todos se beneficiam das atividades da Administração, todos [representados pelo Estado] devem compartilhar do ressarcimento dos danos que essas atividades causam a alguém”.
Na lição de Cahali (2007, p. 35):
“A concepção publicística da responsabilidade civil do Estado – em cujo êxito tanto se empenharam os administrativistas -, ao consagrar a responsabilidade objetiva do ente estatal, degenera, desenganadamente e sem paliativos, na adoção da teoria do risco, risco criado pelas atividades normais ou anormais da Administração; mostra-se, assim, incompatível com a concepção da faute du service, com a culpa anônima da Administração, como causa da responsabilidade civil do Estado, no que esta nada mais é que uma transposição e adaptação, no âmbito do direito público, de uma concepção privatística por excelência”.
Impõe-se observar, que a responsabilidade do Poder Público é decorrente do risco criado pelas atividades administrativas por esse desenvolvidas. Portanto, em termos de responsabilidade objetiva, rejeita-se qualquer questionamento em torno da falha do serviço ou da culpa anônima da Administração.
Enfatiza, ainda, Cahali (2007, p. 35):
“No plano da responsabilidade objetiva, o dano sofrido pelo administrado tem como causa o fato objetivo da atividade (comissiva ou omissiva) administrativa, regular ou irregular, incomponível, assim, com qualquer concepção de culpa administrativa, culpa anônima do serviço, falha ou irregularidade no funcionamento deste.
A questão desloca-se, portanto, para a investigação da causa do evento danoso, objetivamente considerada, mas sem se perder de vista a regularidade da atividade pública no sentido de sua exigibilidade, a anormalidade da conduta do ofendido, a eventual fortuidade do acontecimento, em condições de influírem naquela causa do dano injusto, pois só este merece ser reparado”.
Caio Mário, citado por Cahali (2007, p. 37):
“identifica como teoria do risco administrativo aquela que “encara o dano sofrido pelo particular em consequência do funcionamento, puro e simples, do serviço público. Não se cogita se era bom, se era mau. O que importa é a relação de causalidade entre o dano sofrido pelo particular e o ato do preposto ou agente estatal. Desde que se positive, o princípio da igualdade dos ônus e dos encargos exige a reparação”.
Para Barros Monteiro (1975, p.107-109):
“Para que o Estado responda civilmente, basta a existência do dano e do nexo causal com o ato do funcionário, ainda que lícito. A ideia da causalidade do ato veio substituir a da culpabilidade do agente.”
Em verdade, a teoria do risco administrativo surge como uma expressão concreta do princípio da igualdade dos administrados diante dos encargos públicos.
Impende observar, que a teoria do risco administrativo não se confunde com o risco integral. O risco administrativo não quer dizer que a Administração tem o dever de indenizar sempre e em qualquer hipótese o dano sofrido pelo administrado; quer dizer, tão somente, que aquele que suportou o prejuízo fica isento de provar a culpa da Administração, todavia, essa poderá evidenciar a culpa total ou parcial do prejudicado no evento danoso, eximindo a Fazenda Pública da indenização integral ou parcial. Trata o risco integral de modalidade extremada da doutrina do risco administrativo, rechaçada na prática, por levar ao abuso e à injustiça social. Por esta teoria, o Estado estaria obrigado a reparar todo e qualquer dano sofrido pelos administrados, ainda que derivado de culpa ou dolo da vítima.
Importante se faz ressaltar, que o risco administrativo é qualificado pelo seu efeito de permitir a contraprova de excludente de responsabilidade, efeito que se pretende seria inadmissível se qualificado como risco integral.
É lícito, pois, afirmar que a responsabilidade objetiva preconizada na regra constitucional, perfaz-se com a demonstração do nexo de causalidade entre o comportamento comissivo ou omissivo da Administração Pública e o evento danoso concretizado. Assim, o ato do próprio prejudicado ou de terceiro, o caso fortuito, a força maior, arguidos como causa determinante do fato danoso, obstariam a conformação do nexo de causalidade, eliminando eventual pretensão indenizatória.
Nos ensinamentos de Couto e Silva (202, p. 19):
“A noção de responsabilidade objetiva, como foi posta na Constituição, supera as diferentes espécies de responsabilidade conhecidas (por culpa individual, por falha ou culpa do serviço, por risco, pela distribuição desigual dos encargos públicos), apagando a importância de cada uma delas para fundi-las em conceito mais abstrato e dilatado, de modo a proporcionar, assim, o maior amparo possível à vítima. Esta só não será ressarcida caso tenha culpa exclusiva na produção do evento ou que o dano resulte exclusivamente de força maior ou de fato de terceiro. Em suma, se não existir nexo de causalidade entre a ação ou omissão do Estado e o prejuízo”.
Bem se vê, que, desviada a questão para a categoria da causalidade, qualquer qualificação que se pretenda dar ao risco como embasamento da responsabilidade objetiva do Estado, risco administrativo, risco integral, risco-proveito, às cortes supremas se permite a eliminação ou abrandamento daquela responsabilidade quando fatores outros, voluntários ou não, tiverem predominado na causação do dano, determinando a quebra do nexo de causalidade, ou apenas contribuindo como causa na verificação do dano injusto.
O dissenso cultivado pelos doutrinadores sobre a predominância da teoria do risco integral ou do risco administrativo não tem maior relevo, pois os sustentadores de ambas as correntes admitem a possibilidade de eliminação ou abrandamento da responsabilidade civil do Estado sempre que demonstrada a atuação de fatores causais estranhos ao mesmo.
Em suma, no tocante à perquirição da responsabilidade objetiva do Estado, se houve com acerto a doutrina e a jurisprudência mais atualizadas, dando ênfase ao elemento concreto da causalidade entre o dano injusto experimentado pelo administrado e a atividade comissiva ou omissiva do ente público.
Portanto, na análise das causas do dano injusto que se determinam os casos de eliminação ou atenuação da responsabilidade do Estado, eliminada ou abrandada esta responsabilidade em função do nexo de causalidade ou da causalidade concorrente na comprovação do dano injusto reparável.
Por fim, embora tenha a Constituição Federal admitido a responsabilidade objetiva, aceitando mesmo a teoria do risco administrativo, o fez com temperamentos, para prevenir os excessos e a própria injustiça. Não obrigou, é certo, à vítima e aos seus beneficiários, em caso de morte, a prova da culpa ou dolo do funcionário, para alcançar indenização. Não privou, todavia, o Estado de propósito de eximir-se da reparação, se o dano defluir do comportamento doloso ou culposo da vítima. De outra forma, seria admitir a teoria do risco integral, forma radical que obrigaria a Administração a indenizar sempre.
CAPÍTULO 5 - A RESPONSABILIDADE POR CONDUTA OMISSIVA E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Primeiramente, cumpre observar que a promulgação do Código de Defesa do Consumidor se deve a mandamento constitucional expresso, conforme se depreende da leitura do prescrito no artigo 1° do referido Código. Desse modo, o inciso XXXII, do artigo 5°, da Constituição Federal: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
Ressaltando, ainda, a preocupação do legislador com o consumidor, merece destaque o enunciado no artigo 170 do texto constitucional, mais precisamente o inciso V, tal artigo diz respeito à ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, uma vez observados definidos princípios fundamentais, dentre os quais encontra-se, no inciso V, a defesa do consumidor.
No artigo 150 da Constituição Federal, que trata das limitações do poder de tributar, dirigido à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, uma vez mais emerge a preocupação com o consumidor, conforme se depreende da leitura do exposto no parágrafo 5°: “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”.
Ainda em sede constitucional, o cuidado com a defesa dos interesses e direitos do consumidor, surge no inciso II, do artigo 175, da Magna Carta, que refere-se a “usuários” de serviços públicos por meio de concessão ou permissão do Poder Público, enunciando que “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos” .No parágrafo único, diz que “a lei disporá sobre”, prescrevendo no inciso II, “os direitos dos usuários”, ou seja, “usuários-consumidores” dos serviços públicos concedidos ou permitidos pelo Poder Público.
Necessário ressaltar, os termos do preceituado no inciso X, do artigo 6°, do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece: artigo 6°: “São direitos básicos do consumidor”. inciso X: “a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”.
Enfatiza Ada Pellegrini et al (2001, p. 133):
“Quando aqui se tratou do conceito de fornecedor, ficou consignado que também o Poder Público, como produtor de bens ou prestador de serviços, remunerados não mediante a atividade tributária em geral (impostos, taxas e contribuições de melhoria), mas por tarifas ou “preço público”, se sujeitará às normas ora estatuídas, em todos os sentidos e aspectos versados pelos dispositivos do novo Código do Consumidor”.
Já o artigo 14 alberga a responsabilidade por danos causados aos consumidores em função da prestação de serviços defeituosos, em perfeita correspondência com o disposto no artigo 12 do mesmo diploma legal, destacando o fato de que ambos os artigos pregam “a responsabilidade independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores-usuários”. Todavia, há que se considerar que a responsabilidade só se torna perfeita e acabada mediante a concorrência de três pressupostos, a saber: a) defeito do serviço; b) evento danoso; e c) relação de causalidade entre o defeito do serviço e o dano.
Contudo, cristalino se mostra que ambos os artigos acolhem os postulados da responsabilidade objetiva. No entanto, ressalta-se que também se fazem presentes na espécie, as causas excludentes e atenuantes da responsabilidade, bem como as eximentes do caso fortuito e da força maior.
Em síntese, vê-se que o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 14, combinado com o artigo 3°, confere ao Estado, enquanto fornecedor de serviço público, a responsabilidade objetiva por danos decorrentes da falta do serviço público, abarcando, assim, a responsabilidade por conduta omissiva.
Reportamo-nos, ainda, ao fato de que a responsabilidade por danos do prestador de serviços não engloba somente as empresas ligadas à iniciativa privada. O artigo 22, do Código de Defesa do Consumidor prolonga essa responsabilidade aos órgãos públicos, ou seja, aos entes administrativos centralizados ou descentralizados. Afora da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, estão englobadas as autarquias, fundações de natureza autárquica, empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos, bem como as concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Em consequência, essas entidades estão obrigadas a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Depreende-se da leitura do artigo. 3° do Código de Defesa do Consumidor, que as pessoas jurídicas de Direito Público centralizadas ou descentralizadas, podem compor o pólo ativo da relação de consumo, como fornecedoras de serviços. Sendo assim, é de entender-se que não se afastarão ou desviar-se-ão de figurar no pólo passivo da correspectiva relação de responsabilidade.
Para Aguiar Dias, citado por Ada Pellegrini et al (2001, p. 196):
“a responsabilidade do Estado pelo mau funcionamento do serviço público, tem sido confundida, no Brasil, com a falta de determinado funcionário, e “a aplicação de tal doutrina resulta na negação de responsabilidade, sempre que não seja possível estabelecer a culpa do funcionário, muito embora se defronte caso autêntico de defeito do serviço”.
Obtempera Ada Pellegrini et al (2001, p. 196):
“No entanto, as ideias civilistas - ainda prevalentes em nossa legislação – não impediram o desenvolvimento de uma teoria da falta do serviço público, caracterizada, segundo Paul Dues, em sua clássica La responsabilité de la puissance publique”.
Contudo, nos termos do enunciado no artigo 22, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, quando os órgãos públicos abandonam ou não cuidam da obrigação de prestar serviços adequados, eficientes, seguros e contínuos, são compelidos a cumpri-los e reparar os danos causados, na forma prevista no Código.
Desse modo, tratando-se da reparação dos danos experimentados pelos administrados, cumpre dizer, do restabelecimento ao “status quo ante”, os órgãos públicos são responsabilizados na forma prevista no Código de Defesa do Consumidor, qual seja, independentemente da existência de culpa, conforme se depreende da leitura do enunciado no artigo 14 do referido diploma legal.
Dessume-se do ora exposto, que a partir da instituição do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade do Estado pelo funcionamento dos serviços públicos não deriva da falta, mas do fato do serviço público, tornando evidente que o legislador pátrio agasalhou, irrefutavelmente, a teoria do risco administrativo, teoria essa defendida com bravura por doutrinadores de escol, dentre os quais podemos citar: Orozimbo Nonato, Filadelfo Azevedo, Pedro Lessa, Amaro Cavalcanti e Aguiar Dias.
Para Aguiar Dias, citado por Ada Pellegrini et al (2001, p. 197):
“Somos, assim, pela aplicação, entre nós, da doutrina do risco administrativo, como a defendia já o insigne Amaro Cavalcanti, escrevendo que ‘assim como a igualdade dos direitos, assim também a igualdade dos encargos é hoje fundamental no Direito Constitucional dos povos civilizados’. Portanto, dado que um indivíduo seja lesado nos seus direitos, como condição ou necessidade do bem comum, segue-se que os efeitos da lesão, ou os encargos de sua reparação, devem ser igualmente repartidos por toda a coletividade, isto é, satisfeitos pelo Estado a fim de que, por este modo, se restabeleça o equilíbrio da justiça cumulativa: Quod omnes tangit ab omnibus debet supportari”.
Por fim, nos termos do preconizado no parágrafo único “in fine”, do artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor, cristalino se mostra que aplicam-se aos fornecimentos de serviços públicos, por força da remissão aos artigos 12 e 14 do referido diploma legal, as causas excludentes e atenuantes da responsabilidade ali previstas, quais sejam: a) que tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; b) a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
CAPÍTULO 6 - O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E A CONDUTA OMISSIVA.
Em princípio, ressalta-se que a necessidade de o jurista trabalhar com os princípios existe tanto no Direito Privado quanto no Direito Público. Contudo, no Direito Público essa necessidade é infinitamente maior.
Observa-se que os princípios de Direito Privado estão frequentemente concretizados em regras específicas, donde a desnecessidade, na maioria das vezes, de socorrer-se dos princípios para solucionar questões de Direito Privado, posto que a norma inserida no Código já alberga a solução que resultaria da aplicação do princípio à hipótese.
Todavia, o Direito Público, com as possíveis exceções dos Códigos Penal e Processual, é formado por legislação esparsa, produzida sem método específico, donde resulta uma aparente desordem, solúvel apenas com a aplicação dos princípios. Tais princípios é que permitem ao aplicador do Direito extrair soluções em conformidade com o ordenamento jurídico considerado.
No Estado de Direito, é de fundamental importância perceber que poder algum é uma inerência do Estado. Dessume-se que os poderes estatais só se justificam para a realização de interesses públicos, sendo, assim, meramente instrumentais. Contudo, só é caracterizado como “interesse público” o assim qualificado pelo ordenamento jurídico e, não, aquilo que o eventual ocupante do poder entenda como tal. Em síntese, o Estado é detentor de poderes, e é natural que os tenha, porém, é detentor apenas daqueles que lhe são conferidos expressamente pelo ordenamento jurídico.
Assim, a autoridade pública não é exercida pelo Estado em qualquer situação, ou seja, na medida em que o quiser. Ao contrário, exercita-a, quando e na medida em que esta lhe tenha sido conferida pelo ordenamento jurídico.
Tendo em vista a autoridade pública exercida pelo Estado, diz-se que as relações jurídicas entre ele e os particulares são verticalizadas, ocupando o Estado o pólo mais elevado e os administrados o pólo inferior. Nisso difere o Direito Público do Privado. De outro lado, as relações privadas são ditas horizontais, sem que uma das partes prevaleça sobre a outra, sendo os interesses de mesma estatura e, como consequência, protegidos de modo equivalente.
É característica do Direito Público em qualquer ordenamento jurídico, a verticalidade das relações jurídicas entre o Estado e os administrados. Mas o que o torna peculiar hoje em dia, em especial o Direito Público brasileiro, é a existência de outros princípios que lhe servem de limite e controle, dentre os quais podemos citar como fundamental, o princípio da submissão do Estado à ordem jurídica.
Segundo o princípio da submissão do Estado ao Direito, todo ato ou comportamento do Poder Público, para ser válido e obrigar os administrados, deve ter fundamento em norma jurídica superior. O princípio determina não só que o Estado está proibido de agir contra a ordem jurídica como, principalmente, que todo poder por ele exercido tem sua fonte e fundamento em uma norma jurídica.
Desse modo, o agente estatal, quando atua, não o faz para realizar sua vontade pessoal, mas para dar cumprimento a algum dever, que lhe é imposto pelo Direito. O Estado se coloca, então, sob a ordem jurídica, nos mais diferentes aspectos de sua atividade.
Sendo assim, no rol da atividade do legislador, a submissão do Estado à ordem jurídica se expressa no princípio da necessária constitucionalidade das leis.
O Estado, além de legislar, exerce o poder de administrar e de punir criminalmente os cidadãos. Nesse campo, sua submissão ao Direito é assegurada pelo princípio da legalidade, indistintamente aplicado aos direitos administrativo, tributário e penal. Em verdade, trata-se de um subprincípio do Direito Público, decorrência que é da submissão do Estado à ordem jurídica, determinando que ato algum do Estado surgirá senão como comando complementar da lei.
Em suma, toda atividade administrativa deve ser desenvolvida nos termos da lei. A Administração Pública só pode fazer o que a lei autoriza, ou seja, todo ato seu deve ter base em lei, sob pena de invalidade. Depreende-se, assim, a existência de hierarquia entre a lei e o ato da Administração Pública, ou seja, a existência de uma relação de subordinação. Todo poder emana da lei. Conclui-se, portanto, que os agentes administrativos não dispõem de liberdade, mas de competências, hauridas e limitadas na lei.
Ensina Seabra Fagundes (1984, p. 3), que:
“administrar é aplicar a lei, de ofício”.
Nos ensinamentos de Hely Lopes Meirelles (2000, p. 85):
“a eficácia de toda a atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei. Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal”.
Para Michel Stassinopoulos, citado por Carlos Ari Sundfeld (2000, p. 159):
“a lei não é apenas o limite do ato administrativo, mas sua condição e sua base. Em um Estado de Direito, a Administração não se encontra apenas na impossibilidade de agir contra legem ou praeter legem, mas é obrigada a agir sempre secundum legem”.
No Direito brasileiro, o princípio da legalidade administrativa não é mera decorrência lógica do dever de submissão do Estado à ordem jurídica, tendo sido previsto explicitamente no artigo 37, caput, da Constituição Federal. Ademais, referido princípio encontra guarida no artigo 5º, inciso II, da Magna Carta, que preconiza “que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Por fim, importante se faz ressaltar a explicação do duplo fundamento da responsabilidade estatal, feito com propriedade por Weida Zancaner (1981, p. 55-56):
“toda vez que o administrado sofrer qualquer dano originário de ato ilícito e houver um nexo de causalidade entre a atividade da administração e o evento danoso, o Estado responde, qualquer que seja o dano. O princípio que fundamenta esse ressarcimento é o princípio da legalidade, mesmo porque a administração rege-se sob a égide da legalidade, não devendo dela apartar-se, sendo que, toda vez que o faça, deve arcar com as consequências; e toda vez que um administrado sofrer dano anormal e especial, decorrente de atividade lícita da administração, e houver um nexo de causalidade entre a atividade administrativa e o evento danoso, o Estado responde, mas é preciso que, realmente, o dano seja anormal e especial, pois neste caso, o que fundamenta o ressarcimento é o princípio da igualdade dos administrados perante os encargos públicos”.
Em síntese, verifica-se a importância dos princípios, principalmente no Direito Público, pois apresentando esse com frequência as lacunas de lei, sobretudo no atinente às garantias indispensáveis dos administrados frente ao exercício do poder político, aqueles se fazem indispensáveis para o suprimento das referidas lacunas, ou seja, para a revelação das regras que foram omitidas pelo legislador, mas cuja existência se faz necessária.
CAPÍTULO 7 - PRINCÍPIOS, DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS.
7.1 - Efeito do preâmbulo constitucional sobre a saúde pública.
No preâmbulo da Constituição Federal, destaca-se a necessidade de o Estado democrático assegurar o bem-estar da sociedade. Logicamente, dentro do bem-estar, destacado como uma das finalidades do Estado, encontra-se a saúde pública.
Nas palavras de Celso de Mello, prefaciando a obra de Alexandre de Moraes (2003, p. 67):
“[...] É que uma Constituição democrática - muito mais do que um estatuto político de organização do poder e de garantia jurídica das liberdades públicas – reveste-se de alta significação emblemática, pois representa a expressão mais intensa do processo de transformação histórica da sociedade e do Estado, nela concentrando-se o modelo legitimador das práticas governamentais e do exercício dos direitos, garantias e deveres individuais e coletivos.
A defesa da Constituição, por isso mesmo, não se expõe nem deve submeter-se a qualquer juízo de oportunidade ou de conveniência, muito menos a avaliações discricionárias, fundadas em razões de pragmatismo governamental. A relação do Poder e de seus agentes com a Constituição há de ser, necessariamente, uma relação de incondicional respeito.
Enquanto prevalecer a autoridade suprema da Constituição, e for ela respeitada por todos aqueles que exercem o poder, subsistirão íntegros, nesta República, não só os direitos e garantias assegurados às pessoas, mas, também, os valores ético-jurídicos que informam e conferem legitimidade ao regime democrático, viabilizando-se, desse modo, o exercício pleno da cidadania e a prática responsável da liberdade, em fiel testemunho do legado histórico que nos foi transmitido pela vontade do Povo brasileiro, solenemente reunido em Assembleia Nacional Constituinte.”
É o que traduz o Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, vejamos:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FERATIVA DO BRASIL.”
Na visão de Alexandre de Moraes (2003, p. 119):
“O preâmbulo de uma Constituição pode ser definido como documento de intenções do diploma, e consiste em uma certidão de origem e legitimidade do novo texto e uma proclamação de princípios que demonstra a ruptura com o ordenamento constitucional anterior e o surgimento jurídico de um novo Estado. É de tradição em nosso Direito Constitucional e nele devem constar os antecedentes e enquadramento histórico da Constituição, bem como suas justificativas e seus grandes objetivos e finalidades.
Embora não faça parte do texto constitucional propriamente dito e, consequentemente, não contenha normas constitucionais de valor jurídico autônomo, o preâmbulo não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem.”
Como explica Jorge Miranda, citado por Alexandre de Moraes (2003, p.119):
“não se afigura plausível reconduzir a eficácia do preâmbulo (de todos os preâmbulos ou de todo o preâmbulo, pelo menos) ao tipo de eficácia próprio dos artigos da Constituição. O preâmbulo não é um conjunto de preceitos, é um conjunto de princípios que se projectam sobre os preceitos e sobre os restantes sectores do ordenamento”, para a seguir concluir: “o preâmbulo não pode ser invocado enquanto tal, isoladamente, nem cria direitos ou deveres.”
Nos dizeres de Juan Bautista Alberdi, citado por Alexandre de Moraes (2003, p. 119):
“o preâmbulo deve sintetizar sumariamente os grandes fins da Constituição, servindo de fonte interpretativa para dissipar as obscuridades das questões práticas e de rumo para a atividade política do governo.”
Pelo sobredito, importante se faz ressaltar que o preâmbulo, embora não fazendo parte do texto constitucional propriamente dito, mas sendo uma proclamação de princípios, irradia seus grandes objetivos e finalidades sobre os diversos artigos que lhe seguem, alcançando, dessa forma, a saúde pública.
7.2 - Princípio da dignidade da pessoa humana
Conforme nos ensina Eduardo Tomasevicius Filho (2005, p. 435/437)`:
“a despeito da evolução pela qual passou o Direito por meio das legislações de cunho social, a grande transformação do paradigma patrimonial para o paradigma da proteção da pessoa humana tem como origem a formação dos regimes totalitários do século XX, os quais eram, em tese, o antagonismo à ordem liberal vigente. O socialismo implementado na Rússia, por exemplo, deu margem à formação do stalinismo, tendo havido apenas a mera substituição dos opressores do proletariado. O interesse do Estado, a fidelidade ao Partido, neste governo, tornou-se mais importante que o próprio ser humano. Na Itália eclodiu o fascismo. Por meio de um discurso sedutor, que invocava o cristianismo e pregava a solidariedade social, e que encontrou simpatizantes aqui no Brasil, que se autodeterminavam integralistas, o fascismo justificava a opressão do indivíduo, quando esta ficasse em contradição com o interesse social. Na Alemanha, devido às misérias que aquele povo enfrentou na década de 1920, o nazismo ganhou espaço, e seu líder ascendeu ao poder.
Por isso, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o mundo enfrentou um acerto de contas ideológico. No entrechoque destes governos que representavam a síntese de ideologias sociais, muitas atrocidades foram praticadas durante as batalhas e também fora delas. Campos de extermínio de seres humanos foram construídos. Experimentos com seres humanos foram realizados. Duas bombas nucleares foram lançadas no Japão.”
Foi preciso, portanto, que o mundo enfrentasse terríveis experiências para que as ideias de proteção da pessoa humana fossem implementadas pelos países, por meio da consagração do princípio da dignidade da pessoa humana. Só a partir de então é que este conceito ganhou força dentro do Direito, uma vez que não se trata de uma ideia recente.
A dignidade da pessoa humana não é fácil de ser definida, embora seja um dos poucos valores comuns no pluralismo filosófico. É um conceito elaborado pela religião, filosofia e pelo direito. Para Cícero, Hobbes, entre outros, a ideia de dignidade do homem era relacionada à sua honra, imagem, distinção, títulos e destaque na sociedade. O cristianismo deu sua contribuição ao sustentar que o ser humano é a imagem e semelhança de Deus, e forneceu subsídios concretos por meio da Doutrina Social da Igreja, conjunto de encíclicas por meio das quais a noção de dignidade da pessoa humana é colocada com princípio e fundamento das instituições sociais. O primeiro e mais famoso documento é a Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, de 1891.
Do ponto de vista da filosofia, Pico Della Mirandola, citado por Eduardo Tomasevicius Filho (2005, p. 436):
“escreveu em 1486 a obra Oratio pro Hominis Dignitate. No entanto, a principal referência é Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Para Kant, citado por Eduardo Tomasevicius Filho (2005, p. 436), o ser humano deve ser compreendido como um fim em si mesmo, e jamais como meio. Ele explica que no mundo dos fins, ou as coisas têm um preço, e podem ser substituídas por outras equivalentes, ou têm dignidade, isto é, estão acima de qualquer preço. Assim, a humanidade, enquanto formada por seres humanos dotados de moralidade, têm dignidade.”
No Direito não existe um conceito unívoco de dignidade da pessoa humana. Pietro Perlingiere, citado por Eduardo Tomasevicius Filho (2005, p. 436):
“entende-a como o instrumento que confere a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas a exercer as próprias aptidões pessoais, assumido a posição a estas correspondentes. Restritivamente, impõe ao Estado a obrigação de agir contra as situações econômicas, culturais e morais mais degradantes, e que tornam os sujeitos indignos do tratamento social reservado à generalidade. Decorrência desta ideia está a liberdade e convivência pacíficas, intangibilidade física e moral, e a garantia de condições mínimas para o exercício da vida.”
Como diz Maurício Ribeiro Lopes, citado por Eduardo Tomasevicius Filho (2005, p. 437):
“[a] afirmação de que a dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado Democrático de Direito, exige compreensão além do sentido clássico da expressão. Dignidade não tem seu limite num mero conceito honorífico, como pudesse o absoluto miserável, abandonado pelo Estado, a habitar sob viadutos, alimentar-se de restos, vestir-se de trapos, ainda assim ter considerado sua dignidade no aspecto formal. (...) Em face da dignidade, são inconstitucionais as leis que impliquem maior sofrimento, miséria, marginalização ou desigualdades.”
A Magna Carta traz insculpido em seu artigo 1º, inciso III, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana, vejamos:
“Artigo 1º. “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: inciso III – a dignidade da pessoa humana.”
Nos ensinamentos de José Afonso da Silva (2007, p. 105):
“dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana.”
Alexandre de Moraes (2003, p. 128/129) explica que:
“a dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes.
Esse dever configura-se pela exigência de o indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria. A concepção dessa noção de dever fundamental resume-se a três princípios do Direito Romano: honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudique ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido).”
Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana comporta a ideia de que o homem é a medida de todas as coisas. É o direito a ter direitos, ou, por outro modo, o direito de ser reconhecido como pessoa. É o reconhecimento do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República, que se traduz numa organização política em função do homem, não em função dos aparelhos político-organizatórios.
7.3 - Dos direitos e garantias constitucionais
Direitos humanos fundamentais pode ser definido como o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.
Pérez Luño, citado por Alexandre de Moraes (2003, p. 163):
“apresenta uma definição completa sobre os direitos fundamentais do homem, considerando-os um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional.”
Ainda, José Castan Tobeñas, citado por Alexandre de Moraes (2003, p. 163):
“por sua vez, define direitos humanos como os direitos fundamentais da pessoa humana – considerada tanto em seu aspecto individual como comunitário – que correspondem a esta em razão de sua própria natureza (de essência ao mesmo tempo corpórea, espiritual e social) e que devem ser reconhecidos e respeitados por todo poder e autoridade, inclusive as normas jurídicas positivas, cedendo, não obstante, em seu exercício, ante as exigências do bem comum.”
Necessário se faz esclarecer que os direitos humanos fundamentais referem-se diretamente com a garantia de não ingerência do Estado na esfera individual e a consagração da dignidade humana, tendo reconhecimento universal por parte da maioria dos Estados, seja em âmbito constitucional, infraconstitucional, seja em âmbito de direito consuetudinário ou mesmo por tratados e convenções internacionais.
Ressalta-se, por oportuno, que a previsão desses direitos coloca-se em elevada posição hermenêutica em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, apresentando diversas características, quais sejam: imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e complementariedade.
A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu Título II os direitos e garantias fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos, direitos sociais, direito de nacionalidade, direitos políticos e direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos.
Dessa forma, a classificação utilizada pelo legislador constituinte estabeleceu cinco espécies ao gênero direitos e garantias fundamentais: direitos individuais e coletivos, direitos sociais, direitos de nacionalidade, direitos políticos e direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos.
Nas lições de Alexandre de Moraes (2003, p. 166), modernamente, a doutrina apresenta a classificação de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações, baseando-se na ordem histórica cronológica em que passaram a ser institucionalmente reconhecidos.
Os direitos fundamentais de primeira geração são os direitos e garantias individuais e políticos clássicos (liberdades públicas), surgidos institucionalmente com base na Magna Charta de 1215.
Referindo-se aos hoje chamados direitos fundamentais de segunda geração, que são os direitos econômicos, sociais e culturais, surgidos no início do século XX, Themístocles Brandão Cavalcanti, citado por Alexandre de Moraes (2003, p. 166), analisou que:
“o começo do nosso século viu a inclusão de uma nova categoria de direitos nas declarações e, ainda mais recentemente, nos princípios garantidores da liberdade das nações e das normas da convivência internacional. Entre os direitos chamados sociais, incluem-se aqueles relacionados com o trabalho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice, etc.”
Por fim, modernamente, protegem-se, constitucionalmente, como direitos de terceira geração, os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos, que são os interesses de grupos menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não há vínculo jurídico ou fático muito preciso.
Conclui Manoel Gonçalves Ferreira Filho, citado por Alexandre de Moraes (2003, p. 166):
“a primeira geração seria a dos direitos de liberdade, a segunda, dos direitos de igualdade, a terceira, assim, complementaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.”
A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significa mera enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, com base nos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Poder Judiciário, para a concretização da democracia. A proteção judicial é absolutamente indispensável para tornar efetiva a aplicabilidade e o respeito aos direitos humanos fundamentais previstos na Constituição Federal e no ordenamento jurídico em geral.
Como ressaltado por Afonso Arinos de Mello Franco, citado por Alexandre de Moraes (2003, p. 167):
“não se pode separar o reconhecimento dos direitos individuais da verdadeira democracia. Com efeito, a ideia democrática não pode ser desvinculada das suas origens cristãs e dos princípios que o Cristianismo legou à cultura política humana: o valor transcendente da criatura, a limitação do poder pelo Direito e a limitação do Direito pela justiça. Sem respeito à pessoa humana não há justiça e sem justiça não há Direito.”
O respeito aos direitos humanos fundamentais, principalmente pelas autoridades públicas, é pilastra mestra na construção de um verdadeiro Estado de direito democrático.
Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).
Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas.
Quiroga Lavié, citado por Alexandre de Moraes (2003, p. 170):
“apontando a relatividade dos princípios fundamentais, afirma que os direitos fundamentais nascem para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela Constituição, sem, contudo, desconhecerem a subordinação do indivíduo ao Estado, como garantia de que eles operem dentro dos limites impostos pelo direito.
Dessa forma, a regra, no Estado de Direito, é o pleno respeito às inviolabilidades constitucionais, permitindo-se, porém, excepcionalmente, a violação desses direitos e garantias.
Em algumas poucas hipóteses, o próprio texto constitucional prevê expressamente as exceções às inviolabilidades (por exemplo: artigo 5º, incisos XI e XII); em outras, existe a autorização genérica e, repitamos, excepcional, para que o legislador ou mesmo o Poder Judiciário, mediante o caso concreto, afaste a inviolabilidade. Ressaltemos, porém, que a simples existência de lei não se afigura suficiente para legitimar a intervenção no âmbito dos direitos e liberdades individuais. É mister, ainda, que as restrições sejam proporcionais, isto é, que sejam adequadas e justificadas pelo interesse público e atendam ao critério da razoabilidade. Em outros termos, tendo em vista a observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, cabe analisar não só a legitimidade dos objetivos perseguidos pelo legislador, mas também a necessidade de sua utilização, bem como a razoabilidade, isto é, a ponderação entre a restrição a ser imposta aos cidadãos e os objetivos pretendidos.
7.3.1 - Do direito à vida
A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade. Verifica-se, portanto, que o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, pois sua garantia impõe-se, já que constitui-se em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos.
Vida, no contexto do artigo 5º, caput, da Magna Carta, traduz-se em um processo vital, que se instaura com a concepção, transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando então de ser vida para ser morte. Tudo que intervém em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida.
Dessa forma, o Estado deverá assegurar esse direito a um nível de vida adequado com a condição humana, observando os princípios fundamentais da cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, e promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e de outras formas de discriminação.
Cria-se, portanto, para o Estado, uma dupla obrigação:
- obrigação de cuidado a toda pessoa humana que não disponha de recursos suficientes e que seja incapaz de obtê-los por seus próprios meios;
- efetivação de órgãos competentes públicos ou privados, por meio de permissões, concessões ou convênios, para prestação de serviços públicos adequados que pretendam prevenir, diminuir ou extinguir as deficiências existentes para um nível mínimo de vida digna a pessoa humana.
7.3.2 - Do direito à saúde
Em princípio, cumpre tecer alguns comentários sobre a seguridade social.
Seguridade social foi expressão adotada pelo constituinte de 1988, com objetivo de criar um sistema protetivo, até então inexistente em nosso país. O Estado, pelo novo conceito, seria responsável pela criação de uma teia de proteção, capaz de atender aos anseios e necessidades de todos na área social.
A seguridade social, nos termos do artigo 194, caput, da Magna Carta, pode ser definida como o conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos à saúde, à previdência e à assistência social.
É obrigatória, na composição da seguridade social, a intervenção estatal por meio de ação direta ou controle, a qual deve atender a toda e qualquer demanda referente ao bem-estar da pessoa humana.
Cumpre ressaltar a definição de seguridade social preconizada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT, na Convenção 102, de 1952, nos seguintes termos: “a proteção que a sociedade oferece a seus membros mediante uma série de medidas públicas contra as privações econômicas e sociais que, de outra forma, derivam do desaparecimento ou em forte redução de sua subsistência, como consequência de enfermidade, maternidade, acidente de trabalho ou enfermidade profissional, desemprego, invalidez, velhice e também a proteção em forma de assistência médica e ajuda às famílias com filhos”.
Por outro lado, a Constituição Federal prevê, em diversos dispositivos, princípios informadores e regras de competências no tocante à proteção da saúde pública.
No preâmbulo da Constituição Federal, destaca-se a necessidade de o Estado democrático assegurar o bem-estar da sociedade. Logicamente, dentro do bem-estar, destacado como uma das finalidades do Estado, encontra-se a saúde pública.
O direito à saúde encontra-se albergado também no artigo 6º da Constituição Federal, que lhe confere a natureza jurídica de direito social, direito de segunda geração ou segunda dimensão.
Parafraseando Alexandre de Moraes (2003, p. 470), direitos sociais são direitos fundamentais do homem, que se caracterizam como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo artigo 1º, inciso IV, da Constituição Federal.
Como ressalta Manuel Gonçalves Ferreira Filho (2009, p. 49/51):
“[...] como as liberdades públicas, os direitos sociais são direitos subjetivos. Entretanto, não são meros poderes de agir – como é típico das liberdades públicas de modo geral – mas sim poderes de exigir. São direitos “de crédito”.
Há, sem dúvida, direitos sociais que são antes poderes de agir. É o caso do direito ao lazer. Mas assim mesmo quando a eles se referem, as Constituições tendem a encará-los pelo prisma do dever do Estado, portanto, como poderes de exigir prestação concreta por parte deste.
O sujeito passivo desses direitos é o Estado. É este posto como o responsável pelo atendimento aos direitos sociais.
[...] O objeto do direito social é, tipicamente, uma contraprestação sob a forma da prestação de um serviço. O serviço escolar, quanto ao direito à educação, o serviço médico-sanitário-hospitalar, quanto ao direito à saúde, os serviços desportivos, para o lazer etc.
Ou, na impossibilidade de satisfazer o direito por uma prestação direta, uma contrapartida em dinheiro. É o seguro-desemprego para o direito do trabalho. Deve-se, todavia, registrar que na França de 1848 se criaram os ateliers nationaux, bem como procedeu-se a obras públicas para dar trabalho aos que não o encontravam no mercado.
[...] A garantia que o Estado, como expressão da coletividade organizada, dá a esses direitos, é a instituição dos serviços públicos a eles correspondentes Trata-se de uma garantia institucional, portanto.
Foi aliás a obrigação de atender a esses direitos, que ditou a expansão dos serviços públicos dos anos vinte para a frente. Isto gera pesados encargos diretamente para o Estado e indiretamente para os contribuintes, o que contemporaneamente suscita um repensar a propósito desses direitos. Impõe-se a pergunta: até que ponto o Estado deve dar o atendimento a esses direitos, até que ponto deve apenas amparar a busca do indivíduo pelo atendimento desses direitos?”
A Constituição Federal consagra, em seu artigo 196, a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Consagra, ainda, a Magna Carta, em seu artigo 197, ser de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou por meio de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Ressalta-se que as condições para implantação de tais ações da saúde, além de sua organização e seu funcionamento, são objeto de regulamentação pela Lei nº 8.080/90.
Como destaca José Afonso da Silva (2007, p. 831):
“o sistema único de saúde, integrado de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde que tem no pólo ativo qualquer pessoa e a comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é também um direito coletivo. O sistema único de saúde implica ações e serviços federais, estaduais, distritais e municipais, regendo-se pelos princípios da descentralização, com direção única em cada esfera de governo, do atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, e da participação da comunidade, que confirma seu caráter de direito social pessoal, de um lado, e de direito social coletivo, de outro. É também por meio dele que o Poder Público desenvolve uma série de atividades de controle de substâncias de interesse para a saúde e outras destinadas ao aperfeiçoamento das prestações sanitárias.”
Ensina Fábio Zambitte Ibrahim (2005, p. 6):
“o Sistema Único de Saúde é financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Tal orçamento destina ao Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a receita estimada, os recursos necessários à realização de suas finalidades, previstos em proposta elaborada pela sua direção nacional, com a participação dos órgãos da Previdência Social e da Assistência Social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (art. 31 da Lei 8.080/90).
A Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 29/2000, determina que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão aplicar, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre suas arrecadações tributárias, além de parcela dos valores obtidos a partir de repasses da União e dos Estados e dos Fundos de Participação de Estados e Municípios. Os percentuais mínimos serão fixados em lei complementar (art. 198, § 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil).
[...] Como esta lei complementar ainda não existe, a própria Emenda Constitucional nº29/2000 inseriu o art. 77 do ADCT da Constituição, com previsão temporária até o advento da lei complementar, dando efetividade á nova regra. Dispõe o citado artigo que os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de saúde serão de 5% para a União, 12% para os Estados e 15% para os Municípios e Distrito Federal, até a promulgação da referida lei complementar.”
Por fim, proclama Sebastião Tojal, citado por Alexandre de Moraes (2003, p. 1926):
“a finalidade pública das normas que devem reger a saúde pública, afirmando que “qualquer iniciativa que contrarie tais formulações há de ser repelida veementemente, até porque fera ela, no limite, um direito fundamental da pessoa humana.”
CAPÍTULO 8 – A CONDUTA OMISSIVA E OS MEDICAMENTOS DE COMPROVADA EFICÁCIA.
A Constituição Federal de 1988, ao prescrever em seu artigo 196, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, fez sobressair uma obrigação precípua do poder público para com a efetivação deste direito.
Está subentendido nesse dever a ultimação, pelo Estado, de prestações positivas, a iniciar pela adoção de políticas públicas que busquem a efetivação deste direito, até a realização de providências indispensáveis para a sua concretização.
Contudo, assim como qualquer outro direito fundamental, o direito à saúde não é absoluto ou ilimitado. Ele encontra barreiras nos direitos igualmente consagrados pela Constituição e sua eficácia e efetividade, quando atende à realização da justiça em um plano concreto, não pode refletir de forma negativa no âmbito da aplicação dos demais direitos sociais que interessam à sociedade.
Admite-se que, por ter por objeto recursos públicos, a efetivação desse direito esbarra no reconhecimento da efetiva disponibilidade pelo Estado, de recursos materiais e humanos para serem alocados na área da saúde em detrimento dos demais direitos sociais prestacionais, tais como a educação, a moradia, a assistência social, o que se apresenta como limite fático relevante submetido ao que se denominou “reserva do possível’.
Com relação ao princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas, expõe Alexandre de Moraes (2000, p. 59):
“[...] quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do Texto Constitucional com sua finalidade precípua.
Apontando a relatividade dos direitos fundamentais, Quiroga Lavié afirma que os direitos fundamentais nascem para reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela garantia de que eles operem dentro dos limites impostos pelo Direito.”
A aplicação desse direito social apresenta a primeira dificuldade, que se justifica pelo fato da Constituição não definir o objeto do direito à saúde.
Apesar das disposições constitucionais genéricas, vagas e imprecisas acerca da matéria, não ficou elucidado se tal direito abrangeria todo e qualquer tipo de prestação afeta à saúde humana ou se estaria limitado a prestações básicas e vitais.
Nesse contexto, a definição acabou ficando a cargo do legislador infraconstitucional federal, estadual e/ou municipal, outorgando-lhe uma margem de discricionariedade a fim de selecionar aqueles mais adequados ao interesse da sociedade consoante a repartição da competência prevista na Constituição.
A segunda contraposição esbarra no reconhecimento da efetiva disponibilidade pelo Estado, de recursos materiais e humanos para serem alocados na área da saúde em detrimento dos demais direitos sociais prestacionais, tais como a educação, a assistência social, a moradia, o que se apresenta como limite fático relevante submetido ao que se denominou “reserva do possível”.
Ademais, por dizer respeito a recursos públicos, estariam eles submetidos a uma “reserva parlamentar em matéria orçamentária”, donde se abstrai que a competência para decidir sobre a alocação desses recursos cabe privativamente ao Poder Legislativo, sem possibilidade de ingerência do Judiciário, por respeito aos princípios constitucionais da democracia e da separação dos Poderes.
O eminente Professor Ingo Wolfgang Sarlet, torna compreensível o tema:
“Embora tenhamos que reconhecer a existência destes limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria orçamentária) implicam certa relativização no âmbito da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais, que, de resto, acabam conflitando entre si, quando se considera que os recursos públicos deverão ser distribuídos para atendimento de todos os direitos fundamentais sociais básicos, sustentamos o entendimento, que aqui vai apresentado de modo resumido, no sentido de que sempre onde nos encontramos diante de prestações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais, notadamente - em se cuidando da saúde - da própria vida, integridade física e dignidade da pessoa humana, haveremos de reconhecer um direito subjetivo do particular à prestação reclamada em juízo.
[...]
Cabe lembrar, neste contexto, que, nesta linha de entendimento, um direito subjetivo a prestações não poderá abranger - em face dos limites já referidos – toda e qualquer prestação possível e imaginável, restringindo-se, onde não houver previsão legal, às prestações elementares e básicas. Neste sentido, cumpre referir paradigmática formulação enunciada pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, ao lembrar que o particular poderá reclamar do Estado apenas algo que seja razoável. Assim, por exemplo, não parece razoável compelir o Estado a pagar tratamento dentário de cunho não imprescindível, ou mesmo fornecer determinado medicamento, quando existe outro similar em eficácia, mas de custo menor.
A solução, portanto, está em buscar, à luz do caso concreto e tendo em conta os direitos e princípios conflitantes, uma compatibilização e harmonização dos bens em jogo, processo este que inevitavelmente passa por uma interpretação sistemática, pautada pela já referida necessidade de hierarquização dos princípios e regras constitucionais em rota de colisão, fazendo prevalecer, quando e na medida do necessário, os bens mais relevantes e observando os parâmetros do princípio da proporcionalidade.”
Os ensinamentos do constitucionalista supracitado, corrobora com a consideração atenta de que o Poder Judiciário, quando acionado para decidir um caso concreto e se debruça sobre uma microjustiça, está de fato criando uma situação que refletirá em esferas muito maiores da sociedade, por importar intervenção nos recursos públicos.
A verdadeira “mens legis”{C}[11]{C}, mira no sentido de que deve se responsabilizar sobretudo pela efetivação de uma macrojustiça, que não pode ser outra que não aquela a ser assegurada a todos os cidadãos que estão ou possam vir a estar em situação similar. Afinal de contas, esse é o alvo do princípio soberano da isonomia.
Segundo Gilmar Mendes (2002, n.10):
“a lesão ao princípio da isonomia oferece problemas sobretudo quando se tem a chamada ‘exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade’
[...]
“que ocorre quando se concede vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros que se encontram em condições idênticas.”
Sobre esse ponto de vista, competirá ao Poder Público harmonizar a necessidade da população com os recursos de que dispõe para esse fim, observando uma ordem de prioridade determinada pelos governantes eleitos, o que não significa omissão de prestação de assistência à saúde.
Nessa mesma direção, J. J. Gomes Canotilho (2003, p. 518) sugere a garantia de um núcleo essencial mínimo de direitos sociais:
“Relativamente aos direitos, liberdades e garantias, a Constituição portuguesa garante e protege um núcleo essencial destes direitos contra leis restritivas (núcleo essencial como reduto último de defesa). Coloca-se também o problema de saber se os direitos económicos, sociais e culturais exigem a garantia de um núcleo essencial como condição do mínimo de existência (núcleo essencial como standart mínimo). Das várias normas sociais, económicas e culturais é possível deduzir-se um princípio jurídico estruturante de toda a ordem econômico-social portuguesa: todos (princípio da universalidade) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum core of economic and social rights), na ausência do qual o estado português se deve considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas. Nesta perspectiva, o ‘rendimento mínimo garantido’, as ‘prestações de assistência social básica’, o ‘subsídio de desemprego’ são verdadeiros direitos sociais originariamente derivados da constituição sempre que eles constituam o standart mínimo de existência indispensável à fruição de qualquer direito.”
De acordo com esse ponto de vista, os direitos fundamentais que envolvam prestações positivas seriam cumpridos quando acatassem a dignidade da pessoa humana, como é o caso da efetivação do direito à formação escolar e profissional, à assistência mínima à gestante, à família, à criança e ao adolescente, a um salário que proporcione uma vivência digna, enfim, a um padrão mínimo de atendimento na área da saúde que garanta a sobrevivência do cidadão. Deste modo, o Poder Público deverá demarcar suas prioridades de acordo com o fundamento do Estado Democrático de Direito definido na Constituição Federal, ‘dignidade da pessoa humana’, que abrange os demais direitos sociais igualmente fundamentais.
Sobre tal questão, manifesta-se Luiz Roberto Barroso (2005, p.52):
“Partindo da premissa [...] de que os princípios, a despeito de sua indeterminação a partir de um certo ponto, possuem um núcleo no qual operam como regras, tem-se sustentado que no tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora haja visões mais ambiciosas do alcance elementar do princípio, há razoável consenso de que ele inclui os direitos à renda mínima, saúde básica, educação fundamental e acesso à justiça.”
Tendo em vista esta estreita subordinação entre a efetividade dos direitos sociais, que impliquem prestações onerosas ao Estado, e as circunstâncias econômicas e orçamentárias do Poder Público, é que se passou a pôr em evidência o mínimo existencial exigível como “reserva do possível” que, de concordância com a ideia de Gustavo Amaral, significa que a concreção pela via jurisdicional de tais direitos demandará uma escolha desproporcional, imoderada ou não razoável por parte do Estado. Em termos práticos, teria o Estado que demonstrar, judicialmente, que tem motivos fáticos razoáveis para deixar de cumprir, concretamente, a norma constitucional assecuratória de prestações positivas. Ao Judiciário competiria apenas ver da razoabilidade e da faticidade dessas razões, mas sendo-lhe defeso entrar no mérito da escolha, se reconhecida a razoabilidade.
Assenta Gustavo Amaral (2001, p. 116/119):
“A postura de ‘máxima eficácia’ de cada pretensão, sobre o fato de não adentrar no conteúdo do direito a ser dada a eficácia, implica em negação da cidadania, na medida em que leva à falência do Estado pela impossibilidade de cumprir todas as demandas simultaneamente e rompe com a democracia, pretendendo trazer para o ambiente das Cortes de Justiça reclamos que têm seu lugar nas ruas, a pressão popular e não na tutela paternalista dos ‘sábios’.”
O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar acerca dessa criação doutrinária. No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n° 45/DF, o eminente Ministro Celso de Mello afirmou estar a cláusula da reserva do possível subordinada à presença cumulativa de dois requisitos:
“Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da ‘reserva do possível’, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.”
Por conseguinte, não será lícito que o Magistrado, a quem é conferido um papel de coparticipação no processo de criação do direito, valendo-se de indevida intervenção na atividade política e financeira do Estado, execute antecipadamente um gasto extraordinário em favor de um único cidadão, quando não seja absolutamente necessário à sua sobrevivência.
A esse respeito, lembra Daniela Milanez (n. 237, p. 208):
“De fato, cabe às Cortes de Justiça serem extremamente cuidadosas para não extrapolarem suas funções institucionais, pelo que os juízes devem interferir somente quando o núcleo do direito à saúde estiver em risco ou quando o Executivo e o Legislativo não souberem utilizar o poder discricionário dado a eles e passarem a atuar de forma abusiva.”
Nesta direção, mostra-se ser claramente impossível obrigar o Estado a providenciar imediatamente, a todos os que o demande, uma moradia, uma vaga em creche, um posto de trabalho, um tratamento médico-cirúrgico de alta complexidade, bem como outras prestações dessa natureza.
Além disso, cumpre lembrar que as verbas vinculadas à efetivação dos programas de ação social devem ser especificadas, a fim de possibilitar o controle desse dever constitucional, visto que a própria Constituição determina a vinculação de percentuais da receita pública ao atendimento de despesas com serviços públicos destinados, como por exemplo, à saúde, nos termos do que preconiza o artigo 198 da Constituição Federal e artigo 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Destarte, na defesa do direito social à saúde, não se pode esquecer das políticas públicas, da falta ou privação de recursos e, até mesmo, do princípio da isonomia, pois ordenar uma medida que não seja verdadeiramente exigível ou necessária ao mínimo existencial, havendo expediente alternativo menos gravoso para se chegar ao mesmo resultado, fere o princípio da razoabilidade e lesa, ainda que indiretamente, outros indivíduos que da mesma forma estão na dependência dos recursos públicos para realização de seus direitos.
Paralelamente à cláusula da reserva do possível, que serve de parâmetro para a conformação das prestações positivas essenciais à saúde do cidadão, não se pode deixar de empregar os princípios norteadores da Seguridade Social, dentro dos quais se insere o conjunto das ações estatais destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, nos termos do disposto no artigo 194 da Constituição Federal.
De acordo com Fábio Zambitte Ibrahim (2005, p. 4):
“a seguridade social pode ser conceituada como a rede protetiva formada pelo Estado e por particulares, com contribuições de todos, incluindo parte dos beneficiários dos direitos, no sentido de estabelecer ações positivas no sustento de pessoas carentes, trabalhadores em geral e seus dependentes, providenciando a manutenção de um padrão mínimo de vida.”
A universalidade, princípio que rege a seguridade social, é uma faceta do princípio da igualdade e propõe que todas as necessidades sociais sejam protegidas. Entretanto, a realidade econômica do Estado é uma fronteira à realização dessa universalidade de atendimento e de cobertura, motivo pelo qual a própria Constituição orienta a otimização dos recursos escassos, por meio da seleção e melhor distribuição das prestações.
Ao lado disso, o inciso III, do parágrafo único do artigo 194 da Constituição Federal, ao dispor sobre a organização da seguridade social, fixa como objetivo, dentre outros, a seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços.
E se a concepção do princípio da seletividade é o de escolher aquelas prestações que melhor atentam aos objetivos da seguridade social, pode-se dizer que, no campo de ação da saúde, cumpre ao legislador infraconstitucional implementar as ações de saúde que minimamente garantam a sobrevivência digna da universalidade dos cidadãos.
Com efeito, pode-se dizer que o princípio da seletividade pressupõe que os benefícios são outorgados a quem deles realmente necessite, motivo pelo qual a seguridade social deve indicar os requisitos para a concessão de benefícios e serviços.
Por outro lado, o princípio da distributividade, que diz respeito às pessoas que deverão ser protegidas prioritariamente pela seguridade social, é de ser interpretado em seu sentido de distribuição de renda e bem-estar, ou seja, pela concessão de benefícios e serviços visa-se ao bem-estar e à justiça social, nos termos do que se infere do artigo 193 da Magna Carta.
CAPÍTULO 9 - O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DE COMPROVADA EFICÁCIA.
Face a demanda que tem por fim a obtenção da prestação de um serviço de saúde (tratamento médico, transplante etc.) ou fornecimento de medicamentos, União, Estados e Municípios se socorrem das mais diversas teses para se eximirem da responsabilidade, ora utilizando argumentos de ordem material, como o princípio da reserva do possível, ora argumentos de ordem processual, citando incompetência para atuar na matéria.
Vê-se, portanto, que essa discussão gera problemas processuais, já que definindo a competência da União, a ação deverá ser ajuizada na Justiça Federal, ao passo que se a responsabilidade for dos Estados ou Municípios, a competência será da Justiça Estadual. Essa situação em nada atende o princípio da inafastabilidade da jurisdição como acesso a uma ordem jurídica justa. Por conseguinte, o jurisdicionado está à mercê de um incidente processual, sem tratamento médico e medicamentos, ou seja, com a sua vida em risco.
No entanto, o artigo 196 da Magna Carta afirma que a saúde é direito de todos e dever do Estado, devendo este garantir, através de políticas sociais e econômicas, a redução dos riscos de doenças e de outros agravos, resguardando o acesso universal e a igualdade de ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação dos necessitados.
Dessa forma, o ditame constitucional não pode significar apenas uma norma programática, mas deverá surtir seus efeitos concretos, devendo o Estado implementar políticas públicas capazes de transformar a realidade dos destinatários da norma, garantindo a todos o direito à saúde digna e eficaz.
Contudo, é obrigação do Estado (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação ou congênere necessário à cura, controle ou abrandamento de suas enfermidades, sobretudo as mais graves. Sendo o Sistema Único de Saúde (SUS), composto pela União, Estados-membros e Municípios, é de reconhecer-se, em função da solidariedade, a legitimidade passiva de qualquer deles no pólo passivo da demanda.
Ainda, a Lei nº 8.080/1990, que discorre sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, dispõe em seus artigos 2º e 4º: “Artigo 2º - A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Artigo 4º - O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).”
Colhe-se dos referidos dispositivos que as ações e serviços de saúde devem ser desenvolvidos pelo Estado, de forma integrada, embora descentralizada, por meio de um sistema único.
Nesses termos, corrobora-se a existência de um regime de responsabilidade solidária entre as pessoas políticas para que se garanta aos cidadãos de baixa renda o direito fundamental à saúde.
Cumpre ressaltar que o fundamento de validade da Lei nº 8.080/1990 e, consequentemente, da responsabilidade solidária da União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios pela garantia do direito fundamental à saúde, repousa nos artigos 196 e 198 da Magna Carta.
Nessa medida, infere-se que União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios são igualmente legítimos para compor o pólo passivo das ações que hospedam o fornecimento de medicamentos, bem como atendimento médico a pacientes do Sistema Único de Saúde.
Entretanto, uma vez comprovada a real necessidade em receber do ente público o tratamento médico, bem como medicamentos de comprovada eficácia, mesmo que de alto custo, que lhe foi prescrito, indispensável à sua saúde e para o qual não possui condições financeiras de arcar pessoalmente, cabe ao Estado “latu sensu”{C}[12]{C}, em qualquer de suas esferas, disponibilizar o tratamento de saúde ou medicamentos necessários.
No que diz respeito aos argumentos de que o direito à saúde trata-se tão somente de um programa, uma obrigação genérica do Estado, que deve deliberar, discricionariamente, qual a mais adequada política de saúde a ser posta em prática, bem como em relação à suposta violação aos princípios da legalidade orçamentária e da reserva do possível, não se afiguram cabíveis, frente à obrigatoriedade de que sejam garantidos, na forma prescrita pela Constituição, os direitos à vida e à saúde, valores superiores aos albergados por aqueles princípios.
Nesse contexto, resta indubitável a obrigação do Estado, comprovada a real necessidade, em fornecer medicamentos de comprovada eficácia ‘que foram prescritos’, necessários à população que não tem condições financeiras para custeá-los.
Esboçado o assunto, o Supremo Tribunal Federal decidiu na Suspensão de Tutela Antecipada (STA) 175, no voto de lavra do Ministro Joaquim Barbosa:
“[...] que questões processuais não podem comprometer o fornecimento de medicamentos e a proteção da saúde, fixando a responsabilidade solidária dos entres federados. Em suma, os entres federados podem se destruir dentro do processo discutindo sobre a competência de cada um dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), mas enquanto isso, devem fornecer o medicamento. Como fundamento, sustentam que a saúde é direito constitucionalmente assegurado às pessoas, devem ser fornecido dentro dos ditames legais, independentemente de qualquer discussão de cunho processual.
Quanto ao argumento de ordem material, isto é, o princípio da reserva do possível e o efeito multiplicador que o precedente judicial poderia causar (levando ao ajuizamento de novas ações), este não deve prevalecer. Entende o Supremo Tribunal Federal que o dano causado à ordem, à economia e às finanças públicas não se presumem, devendo comprovar efetivamente essa lesão. Ademais, o efeito multiplicador tem um limitador, já que cada requerente deve comprovar sua necessidade de receber o tratamento médico ou o fornecimento de medicamentos (a individualização já afasta o efeito multiplicador).”
CAPÍTULO 10 – DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DE COMPROVADA EFICÁCIA.
Nesse sentido, são os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Federal:
“EMENTA - PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO - PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES - DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, "CAPUT", E 196) - PRECEDENTES (STF) - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER - IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, "caput", e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. MULTA E EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE RECORRER. - O abuso do direito de recorrer - por qualificar-se como prática incompatível com o postulado ético-jurídico da lealdade processual - constitui ato de litigância maliciosa repelido pelo ordenamento positivo, especialmente nos casos em que a parte interpõe recurso com intuito evidentemente protelatório, hipótese em que se legitima a imposição de multa. A multa a que se refere o art. 557, § 2º, do CPC possui função inibitória, pois visa a impedir o exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do processo como instrumento de retardamento da solução jurisdicional do conflito de interesses. Precedentes. (RE 393175 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/12/2006, DJ 02-02-2007 PP-00140 EMENT VOL-02262-08 PP-01524).”
"O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequencia constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (...) O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/Aids, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF." (RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-9-2000, Segunda Turma,DJ de 24-11-2000.) No mesmo sentido: RE 368.564, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgamento em 13-4-2011, Primeira Turma, DJE de 10-8-2011; STA> <175-AgR, Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes, julgamento em 17-3-2010, Plenário, DJEde 30-4-2010. Vide: AI 734.487-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-8-2010, Segunda Turma, DJE de 20-8-2010.”
"Doente portadora do vírus HIV, carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita para seu tratamento. Obrigação imposta pelo acórdão ao Estado. Alegada ofensa aos arts. 5º, I, e 196 da CF. Decisão que teve por fundamento central dispositivo de lei (art. 1º da Lei 9.908/1993) por meio da qual o próprio Estado do Rio Grande do Sul, regulamentando a norma do art. 196 da CF, vinculou-se a um programa de distribuição de medicamentos a pessoas carentes, não havendo, por isso, que se falar em ofensa aos dispositivos constitucionais apontados." (RE 242.859, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 29-6-1999, Primeira Turma, DJde 17-9-1999).”
“O recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios. Isso por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional.” (RE 607.381-AgR, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 31-5-2011, Primeira Turma, DJE de 17-6-2011.) No mesmo sentido: AI 553.712-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 19-5-2009, Primeira Turma, DJE de 5-6-2009; AI 604.949-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 24-10-2006, Segunda Turma, DJ de 24-11-2006.”
“O direito a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço.” (AI 734.487-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-8-2010, Segunda Turma, DJE de 20-8-2010.)Vide: RE 436.996-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-11-2005, Segunda Turma, DJ de 3-2-2006; RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-9-2000, Segunda Turma, DJ de 24-11-2000.”
"Para efeito de suspensão de antecipação de tutela, não constitui decisão genérica a que determina fornecimento de medicamentos a pacientes usuários do SUS, residentes nos Municípios da comarca ou da seção judiciária, mediante prescrição expedida por médico vinculado ao SUS." (STA 328-AgR, Rel. Min. Presidente Cezar Peluso, julgamento em 24-6-2010, Plenário, DJE de 13-8-2010).”
"Para obtenção de medicamento pelo SUS, não basta ao paciente comprovar ser portador de doença que o justifique, exigindo-se prescrição formulada por médico do Sistema." (STA 334-AgR, Rel. Min. Presidente Cezar Peluso, julgamento em 24-6-2010, Plenário, DJE de 13-8-2010).”
“O Estado deve criar meios para prover serviços médico-hospitalares e fornecimento de medicamentos, além da implementação de políticas públicas preventivas, mercê de os entes federativos garantirem recursos em seus orçamentos para implementação delas.” (RE 607.381-AgR, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 31-5-2011, Primeira Turma, DJE de 17-6-2011).”
"Incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde, especialmente quando envolvida criança e adolescente. O SUS torna a responsabilidade linear alcançando a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios." (RE 195.192, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 22-2-2000, Sugunda Turma, DJ de 31-3-2000).”
"(...) podemos concluir que, em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente. Essa conclusão não afasta, contudo, a possibilidade de o Poder Judiciário, ou de a própria Administração, decidir que medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razões específicas do seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz no seu caso. Inclusive, como ressaltado pelo próprio Ministro da Saúde na Audiência Pública, há necessidade de revisão periódica dos protocolos existentes e de elaboração de novos protocolos. Assim, não se pode afirmar que os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS são inquestionáveis, o que permite sua contestação judicial. Situação diferente é a que envolve a inexistência de tratamento na rede pública. Nesses casos, é preciso diferenciar os tratamentos puramente experimentais dos novos tratamentos ainda não testados pelo Sistema de Saúde brasileiro. Os tratamentos experimentais (sem comprovação científica de sua eficácia) são realizados por laboratórios ou centros médicos de ponta, consubstanciando-se em pesquisas clínicas. A participação nesses tratamentos rege-se pelas normas que regulam a pesquisa médica e, portanto, o Estado não pode ser condenado a fornecê-los. (...) Quanto aos novos tratamentos (ainda não incorporados pelo SUS), é preciso que se tenha cuidado redobrado na apreciação da matéria. Como frisado pelos especialistas ouvidos na Audiência Pública, o conhecimento médico não é estanque, sua evolução é muito rápida e dificilmente suscetível de acompanhamento pela burocracia administrativa. Se, por um lado, a elaboração dos Protocolos Clínicos e das Diretrizes Terapêuticas privilegia a melhor distribuição de recursos públicos e a segurança dos pacientes, por outro a aprovação de novas indicações terapêuticas pode ser muito lenta e, assim, acabar por excluir o acesso de pacientes do SUS a tratamento há muito prestado pela iniciativa privada. Parece certo que a inexistência de Protocolo Clínico no SUS não pode significar violação ao princípio da integralidade do sistema, nem justificar a diferença entre as opções acessíveis aos usuários da rede pública e as disponíveis aos usuários da rede privada. Nesses casos, a omissão administrativa no tratamento de determinada patologia poderá ser objeto de impugnação judicial, tanto por ações individuais como coletivas. No entanto, é imprescindível que haja instrução processual, com ampla produção de provas, o que poderá configurar-se um obstáculo à concessão de medida cautelar.” (STA> <175>-AgR, voto do Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes, julgamento em 17-3-2010, Plenário, DJE de 30-4-2010).”
"O fato de o Sistema Único de Saúde ter descentralizado os serviços e conjugado os recursos financeiros dos entes da Federação, com o objetivo de aumentar a qualidade e o acesso aos serviços de saúde, apenas reforça a obrigação solidária e subsidiária entre eles. As ações e os serviços de saúde são de relevância pública, integrantes de uma rede regionalizada e hierarquizada, segundo o critério da subsidiariedade, e constituem um sistema único. (...) Além disso, a agravante, reiterando os fundamentos da inicial, aponta, de forma genérica, que a decisão objeto desta suspensão invade competência administrativa da União e provoca desordem em sua esfera, ao impor-lhe deveres que são do Estado e do Município. Contudo, a decisão agravada deixou claro que existem casos na jurisprudência desta Corte que afirmam a responsabilidade solidária dos entes federados em matéria de saúde. Após refletir sobre as informações colhidas na Audiência Pública – Saúde e sobre a jurisprudência recente deste Tribunal, é possível afirmar que, em matéria de saúde pública, a responsabilidade dos entes da Federação deve ser efetivamente solidária. No RE 195.192-3/RS, a Segunda Turma deste Supremo Tribunal consignou o entendimento segundo o qual a responsabilidade pelas ações e serviços de saúde é da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios. (...) Assim, apesar da responsabilidade dos entes da Federação em matéria de direito à saúde suscitar questões delicadas, a decisão impugnada pelo pedido de suspensão, ao determinar a responsabilidade da União no fornecimento do tratamento pretendido, segue as normas constitucionais que fixaram a competência comum (art. 23, II, da CF), a Lei Federal 8.080/1990 (art. 7º, XI) e a jurisprudência desta Corte. Entendo, pois, que a determinação para que a União arque com as despesas do tratamento não configura grave lesão à ordem pública." (<STA> <175-AgR, voto do Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes, julgamento em 17-3-2010, Plenário, DJE de 30-4-2010.) No mesmo sentido: RE 607.385-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 21-6-2011, Primeira Turma, DJE de 1º-8-2011; AI 808.059-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 2-12-2010, Primeira Turma, DJE de 1º-2-2011.”
CAPÍTULO 11 – A DESJUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
A promoção do direito à saúde pela via judicial, que concerne à judicialização das políticas públicas, ainda merecerá a detida análise e atenção de juristas, médicos e da sociedade civil como um todo. Trata-se de um mal necessário, indubitavelmente justificado pela ausência de eficiência ou pela omissão do Estado na prestação de assistência em determinados casos específicos.
Diante dessa situação, todas as vezes que o Estado, por meio de seu Sistema Único de Saúde – SUS, se mostrar indesculpavelmente inerte no fornecimento de certos medicamentos, com comprovada eficácia no combate a determinadas enfermidades, ficaria legitimada a judicialização para lograr êxito em obter esses fármacos.
Como visto, trata-se de um dever do Estado e de um direito subjetivo constitucionalmente protegido.
Contudo, trata-se de um assunto que merece cuidado redobrado e exame meticuloso, sob pena de cairmos em grave perigo de propagações e imprecisões.
Em realidade, ao mesmo tempo em que fixa a fundamentalidade do direito à saúde, a Constituição Federal imputa ao Estado a atribuição de promover um conjunto de ações e serviços públicos indispensáveis à redução dos riscos de doenças. Institui também a garantia ao acesso universal e igualitário relativamente às ações e aos serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde.
Para dar cumprimento a essa elevada incumbência, foi previsto, no próprio texto constitucional, o Sistema Único de Saúde – SUS, que é, seguramente, a mais importante instituição do direito sanitário brasileiro. Ao SUS incumbe a promoção, a integração e a organização das inúmeras entidades que levarão adiante as ações atinentes à promoção da saúde.
O sistema toma como normas de procedimento, previstas no artigo 198 da Constituição Federal: a) a descentralização, com direção única em cada esfera de governo; b) o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízos dos serviços assistenciais; c) a participação da comunidade e, d) o financiamento permanente, com vinculação de recursos orçamentários.
O atendimento integral, previsto no texto constitucional, é uma importante norma de procedimento desse sistema, tendo como lema a adoção de atividades preventivas de proteção da saúde, nos termos do artigo 7º, incisos I e II, da Lei 8.080/1990, sem, contudo, perder de vista a necessidade de intervenção curativa. Dessa forma, buscando a realização dos alvos de redução do risco de doenças e outros agravos e acesso universal e igualitário às ações e serviços, as normas legais regentes da espécie preveem a promoção e a proteção da saúde, e não só a sua recuperação.
Imbuído desse intuito, foi que o Ministério da Saúde elaborou o Manual de Direito Sanitário com enfoque na Vigilância em Saúde, disseminando que o atendimento integral previsto nos respectivos textos normativos deve envolver todos os procedimentos terapêuticos reconhecidos pela ciência e autorizados pelas autoridades sanitárias competentes. Esse mesmo atendimento, por sua vez, deve ser disponibilizado para a proteção da saúde da população, independentemente do nível de complexidade envolvido, pois abarca os procedimentos ambulatoriais mais singelos, até os transplantes mais complexos.
Com base nas disposições constitucionais já mencionadas, o Sistema Único de Saúde (SUS) está fundamentado na ideia de pluralismo, em um ambiente democrático participativo. Portanto, é salutar ressaltar, que seu molde construiu-se sobre uma estrutura complexa, cujo modelo de gestão pressupõe a instituição de diálogos, por meio de debates, pressões e propostas dos diversos setores da sociedade.
Em paralelo a essas considerações, convém ressaltar o fato de que as demandas envolvendo a saúde são indeclinavelmente formalizadas por meio de ações individuais, as notáveis ações cominatórias, que buscam, principalmente, a obtenção de medicamentos de alto custo e de comprovada eficácia, internações em leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), distribuição de órteses e próteses e atendimento fora do domicílio.
Em todos os casos supracitados, a previsão de recursos e meios para o atendimento da coletividade está preestabelecido em metas instituídas pela administração pública, restringidas a políticas de Estado já antecipadamente elaboradas e que, com certeza, estão circunscritas em bases objetivas.
Nesse contexto, a atuação judicial, ao tempo em que descobre e aplica a norma jurídica para um caso específico (individual), não consegue se alinhar às diretrizes da lógica do sistema de saúde previsto na Constituição Federal, pois cria critérios de diferenciação no atendimento aos usuários do sistema e interfere na gestão dos recursos orçamentários previstos em lei.
Desse modo, mesmo almejando alcançar o objetivo principal, que é o de promover o caráter curativo, a atuação judicial em demandas individuais por saúde interfere nas metas preestabelecidas para o atendimento aos usuários do sistema, não levando em conta ainda sua especificidade de promoção e proteção à saúde. Assim, frustra-se os demais objetivos designados em nosso ordenamento jurídico, que constituem a lógica do atendimento integral e do acesso universal igualitário às ações e aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS).
Conforme leciona Alvaro Ciarlini (2009, p. 104):
“Em síntese, o conjunto de sentenças e acórdãos proferidos em ações individuais, sobre o tema exposto, jamais se substituirá à autêntica e indispensável política sanitária propugnada pela Lei Maior.
O que fazer então? Seguindo tais diretrizes, fica evidente que a desjudicialização da saúde seria um bem necessário, senão indispensável, para o adequado funcionamento do SUS, e não o contrário.
É correta a percepção, no entanto, no sentido de que, em certas situações, a atuação judicial mostrar-se-á imprescindível à manutenção do direito à saúde. Isso não significa, contudo, que devamos creditar unicamente ao juiz o deferimento, por exemplo, de remédios de alto custo prescritos por um profissional da saúde que, por melhor que seja, nem de longe estará legitimado para fazer certas escolhas, individualmente, substituindo-se à deliberação plural do sistema único previsto na Constituição. Nem de longe, insista-se, terá legitimidade para dizer que a demora do SUS, ou mesmo da Anvisa, em validar determinados medicamentos, incluindo-os em suas listagens, é “razoável” ou não. Em suma, por melhores que sejam suas qualificações,não pode substituir-se aos órgãos de política sanitária de nosso País.
Seria dispensável mencionar, no entanto, que quando juízes, promotores e demais atores dos processos judiciais se veem diante de questões atinentes ao direito à saúde, é porque tais questões já foram judicializadas, restando pouco a fazer, a não ser atuar nos casos concretos individuais submetidos ao exame estatal.
Ninguém duvida, mesmo assim, de que é preciso sair dessa dinâmica viciosa e buscar uma solução judicial que, ao analisar eventuais omissões administrativas, possa concomitantemente cercar-se dos apontamentos técnicos relativos à referida esfera de atuação do Poder Executivo, sem olvidar da repercussão de sua decisão no âmbito da Administração Pública.
Com efeito, para que a atuação judicial leve adiante o projeto de universalização de políticas de implementação de direitos sociais preconizado na Constituição Federal, mostra-se indispensável a mudança da postura do juiz de primeiro grau, bem como dos integrantes dos tribunais, na condução desses processos.
Ora, o processo judicial deve concorrer para a estabilidade das instituições políticas, sem olvidar a necessária abertura de espaço para a participação dos cidadãos na vida e no destino do Estado.
No trato do direito à saúde, parece-nos que a fórmula para a reversão do quadro indesejável, insistentemente já exposto, consiste em dar-se, progressivamente, primazia à escolha de um remédio jurídico constitucional que afirme sua ênfase na tutela de interesses jurídicos metaindividuais, deixando as ações individuais para a esfera das excepcionalidades.
Explicando melhor, consigne-se que, para atingir esses objetivos, é indispensável a conscientização de todos os atores que atuam nesses processos sobre a necessidade de veiculação dos interesses referidos ao direito à saúde por intermédio da ação civil pública, bem como o debate, com mais ênfase, sobre as peculiaridades que cercam a eficácia da sentença desse remédio jurídico constitucional, com Magistrados, Procuradores, Promotores e Administradores Públicos.
Com efeito, a referida ação, por possibilitar a ponderação sobre os interesses difusos juridicamente relevantes, terá ainda, pelo aspecto de sua generalidade, o caráter de se impor por meio de uma sentença que terá cunho normativo.
Nesses casos, a sentença com trânsito em julgado, proferida no processo judicial resultante de uma Ação Civil Pública, tem eficácia ultra partes e erga omnes, o que significa que alcançará a todos e abrangerá todas as situações jurídicas, presentes e futuras, envolvendo o tema julgado.”
Como sobredito, somente esse molde de atuação judicial terá a faculdade de orientar a atuação estatal visando o atendimento aos interesses juridicamente proeminentes, segundo um modelo racionavelmente referido a critérios isonômicos, pois suas regras terão validade sobre todas as relações e situações jurídicas de uma dada comunidade política.
Esses mesmos discernimentos poderão ser fixados com a reflexão sobre os recursos materiais disponíveis e outras possíveis reservas e situações relevantes em curso na sociedade. Assim, é desejável que a formação da sentença, nesse procedimento, seja antecedida de audiências públicas onde possa ser coletado o posicionamento de parcela significativa dos agentes responsáveis pela execução desses programas, consignando nos autos, além do parecer dos técnicos responsáveis por essas ações e serviços públicos de saúde, a manifestação de representantes das respectivas conferências e conselhos que compõem nosso sistema único, bem como proceder à oitiva de outros integrantes da sociedade civil.
Contudo, a sentença a ser proferida como resultado de uma ação civil pública sobre a questão em pauta pode, no entanto, levar em consideração a reflexão social plural.
Cumpre ressaltar que o ajuizamento de uma ação civil pública está em correlação com o início de um processo de elaboração de norma jurídica genérica, aplicável “erga omnes”[13], inclusive com a extensão dos efeitos do julgado aos casos futuros e análogos, ocasião em que caberá ao Judiciário a última palavra sobre a densificação de seus elementos normativos.
Vê-se, portanto, que o administrador público deverá orientar-se, com base nessa decisão, em relação a todos os casos, presentes e futuros, que tenham correlação com as especificidades da tipologia do fato retratado na petição inicial e que são, com certeza, determinantes para a eficácia preponderante contida no dispositivo da sentença.
Assim sendo, mostra-se irrenunciável ou indispensável que o Magistrado abasteça-se constantemente das informações colhidas pelos setores técnicos dos órgãos das respectivas secretarias de saúde, por meio de contatos diários, com o objetivo de melhor nortear suas decisões.
As metas de um sistema que defende a participação social e está comprometido com um modelo plural de gestão, compatibiliza-se com a atuação da magistratura, em seu agir decisório.
Por isso mesmo, mesmo sendo afirmativo na efetivação dos direitos sociais, o juiz atuará sem perder de vista a complexidade das normas constitucionais aplicáveis.
Referido modelo certamente conduzirá à prudência, o fenômeno da judicialização da política, asseverando a viabilidade da elaboração de critérios compartilhados de solução dos problemas sociais, ao considerar, além dos fundamentos jurídicos envolvidos na questão, os entendimentos exprimidos por outras esferas de poder e pelos representantes da sociedade civil.
CONCLUSÃO
Vê-se, portanto, que o disposto no art. 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal, preceitua expressamente que o Estado não é irresponsável, devendo, obrigatoriamente, arcar com os prejuízos produzidos por sua ação ou omissão. Trata-se de determinação, de dever do Estado de Direito. Sendo assim, seria incoerente o Poder Público submeter-se ao Direito e, ao mesmo tempo, ficar isento ao dever de indenizar toda vez que o comportamento de seus agentes atingirem a esfera jurídica dos administrados. Desse modo, cristalino se mostra que o artigo mencionado nada mais contém que a ratificação, a confirmação expressa de princípio implícito no próprio sistema do Estado de Direito.
Nada obstante, a responsabilidade estatal não é igual à responsabilidade comum dos particulares. Dirige-se por regras próprias do direito público, que a fazem mais ampla.
No Direito Público, a responsabilidade é objetiva, independente de culpa. O Estado se vê obrigado a reparar os danos que cause aos administrados, quer tenha agido contra o Direito, quer tenha cumprido rigorosamente as normas jurídicas, ou seja, responde por atos lícitos e ilícitos. A responsabilidade por atos ilícitos origina de seu dever de submissão à ordem jurídica. Por outro lado, a responsabilidade por condutas lícitas decorre do princípio da igualdade. Não se leva em conta tenha o Estado agido rigorosamente dentro dos parâmetros constitucionais e legais. Se gera um prejuízo ao administrado ao aplicar o direito, é porque este é indispensável ao atendimento de certo interesse público. Assim, seria contrário à isonomia um indivíduo suportar sozinho o prejuízo gerado no interesse de todos.
Portanto, toda vez que o administrado sofrer qualquer dano decorrente de ato ilícito e existir um nexo de causalidade entre a atividade da administração e o evento danoso, o Estado responde, qualquer que seja o dano, com fundamento no princípio da legalidade, tendo em vista que a administração rege-se sob a égide da legalidade. De outro turno, toda vez que o administrado sofrer dano anormal e especial, oriundo de atividade lícita da administração, e verificar-se a existência de nexo de causalidade entre a atividade administrativa e o evento danoso, o Estado responde, todavia, necessário se faz que o dano seja realmente, anormal e especial, pois nesse caso o fundamento do ressarcimento é o princípio da igualdade dos administrados perante os encargos públicos.
Contudo, dessume-se que diante de um evento lesivo, para configurar-se a responsabilidade estatal, necessário se faz a existência de relação de causa e efeito entre o comportamento do Estado por ação ou omissão e o dano gerado. A responsabilidade objetiva não faz do Estado um segurador universal, mas apenas o obriga a suportar os prejuízos que gere, direta ou indiretamente.
Em consequência, em se tratando de danos originados de comportamento positivo, ou seja, por ação, pouco importa a juridicidade ou ilegitimidade da conduta estatal, pois havendo nexo de causalidade entre esta e o dano experimentado pelo administrado, emerge a vinculação do Estado. Cumpre ressaltar que a responsabilidade estatal por atos comissivos subsiste mesmo que o dano não derive imediatamente da ação do Estado, bastando que o ato estatal seja causa mediata do dano ao expor o administrado em situação de risco.
Por outro lado, quando se tratar de responsabilidade por comportamento omissivo, o Estado só responderá se houver omitido dever que lhe tenha sido prescrito pelas normas, porém, não se sua inação for lícita. Tal se deve ao fato de que o conceito de omissão, em Direito, estar vinculado ao de ilicitude. Sob o prisma jurídico, a mera inação não configura omissão, esta só se perfaz quando tendo o dever jurídico de agir, o Estado fica inerte.
Ademais, cumpre lembrar que não é qualquer dano econômico que gera a responsabilidade do Estado, necessário sempre a existência de lesão a direito da vítima.
Pelo exposto, colocamo-nos ao lado dos doutrinadores que defendem a aplicabilidade da Teoria do Risco Administrativo, ou seja, da responsabilidade de natureza objetiva do Estado por comportamentos omissivos de seus agentes, que nessa qualidade causarem danos aos administrados, com o fim de proteger o lesado ante a dificuldade encontrada por esse em demonstrar a culpa ou dolo por parte do Estado. Ademais, diante da simples leitura do art. 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal, cristalino se mostra que o Estado responde independente de culpa, por condutas comissivas ou omissivas que causarem danos aos administrados. Conclui-se, portanto, que os argumentos trazidos pelos ilustres doutrinadores na tentativa de sustentar a responsabilidade do Estado por condutas omissivas, com fundamento na teoria subjetiva, são frágeis e contraditórios. Por demais, o art. 43 do novo Código Civil, veio fortalecer, confirmar, comprovar a norma constitucional, na direção de que a culpa ou o dolo somente serão verificados em ação regressiva do Estado em face do agente causador do dano.
Por outro lado, no que diz respeito à saúde, vimos que o preâmbulo, embora não fazendo parte do texto constitucional propriamente dito, mas sendo uma proclamação de princípios, irradia seus grandes objetivos e finalidades sobre os diversos artigos que lhe seguem, alcançando, dessa forma, a saúde pública.
Outrossim, verificamos que a Magna Carta traz insculpido em seu artigo 1º, inciso III, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
Referido princípio, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos, bem como estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes.
Ademais, podemos deduzir que a constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significa mera enunciação formal de princípios, mas a plena positivação de direitos, com base nos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Poder Judiciário, para a concretização da democracia. A proteção judicial é absolutamente indispensável para tornar efetiva a aplicabilidade e o respeito aos direitos humanos fundamentais previstos na Constituição Federal e no ordenamento jurídico em geral.
Dessa forma, mostrou-se incontroverso que quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual, ´contradição dos princípios`, sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas.
Absorvemos, ainda, com fundamento na Magna Carta, que o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, pois sua garantia impõe-se, já que constitui-se em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos.
Origina-se, dessa forma, para o Estado, a obrigação de cuidado para com toda pessoa humana que não disponha de recursos suficientes e que seja incapaz de obtê-los por seus próprios meios, bem como de efetivação de órgãos competentes públicos ou privados, por meio de permissões, concessões ou convênios, para prestação de serviços públicos adequados que pretendam prevenir, diminuir ou extinguir as deficiências existentes para um nível mínimo de vida digna a pessoa humana.
Ademais, a Constituição Federal consagra, em seu artigo 196, a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
A seu turno, cumpre ressaltar que o direito à saúde encontra-se albergado também no artigo 6º da Constituição Federal, que lhe confere a natureza jurídica de direito social, direito de segunda geração ou segunda dimensão.
Como direitos sociais, tratam-se de direitos subjetivos, ou seja, não são meros poderes de agir, mas sim poderes de exigir prestação concreta por parte do Estado. Assim, o sujeito passivo desses direitos é o Estado, que é posto como o responsável pelo atendimento aos direitos sociais.
É de ver-se que a garantia institucional que o Estado, como expressão da coletividade organizada, dá a esses direitos, é a instituição dos serviços públicos a eles correspondentes. Aliás, foi a obrigação de atender a esses direitos, que ditou a expansão dos serviços públicos dos anos vinte para a frente. Entretanto, tal fato gera pesados encargos diretamente para o Estado e indiretamente para os contribuintes, o que contemporaneamente suscita um repensar a propósito desses direitos.
No que se refere ao Sistema Único de Saúde, vimos que esse implica ações e serviços federais, estaduais, distritais e municipais, regendo-se pelos princípios da descentralização, com direção única em cada esfera de governo, do atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, e da participação da comunidade, que confirma seu caráter de direito social pessoal, de um lado, e de direito social coletivo, de outro.
Todavia, há que se ressaltar que, assim como qualquer outro direito fundamental, o direito à saúde não é absoluto ou ilimitado. Ele encontra barreiras nos direitos igualmente consagrados pela Constituição e sua eficácia e efetividade, quando atende à realização da justiça em um plano concreto, não pode refletir de forma negativa no âmbito da aplicação dos demais direitos sociais que interessam à sociedade.
Reconhece-se que, por ter por objeto recursos públicos, a efetivação desse direito esbarra no reconhecimento da efetiva disponibilidade pelo Estado, de recursos materiais e humanos para serem alocados na área da saúde em detrimento dos demais direitos sociais prestacionais, tais como a educação, a moradia, a assistência social, o que se apresenta como limite fático relevante submetido ao que se denominou “reserva do possível”.
Além do mais, por dizer respeito a recursos públicos, estariam eles submetidos a uma “reserva parlamentar em matéria orçamentária”, donde se abstrai que a competência para decidir sobre a alocação desses recursos cabe privativamente ao Poder Legislativo, sem possibilidade de ingerência do Judiciário, por respeito aos princípios constitucionais da democracia e da separação dos Poderes.
Ainda que tenhamos que reconhecer que a existência dos limites da “reserva do possível” e da “reserva parlamentar em matéria orçamentária” acarretam certa relativização na esfera da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais, há que se entender que sempre que nos encontrarmos diante de prestações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria a exposição a risco irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais, notadamente, em se tratando de saúde, da própria vida, integridade física e dignidade da pessoa humana, necessário se faz reconhecer o direito subjetivo do particular à prestação reclamada em juízo.
Contudo, nesse âmbito, cumpre ressaltar que o direito subjetivo a prestações não poderá abranger, em face dos limites já referidos, toda e qualquer prestação possível e imaginável, restringindo-se, onde não houver previsão legal, às prestações elementares e básicas, ou seja, o particular poderá reclamar do Estado apenas algo que seja razoável. Assim, por exemplo, não parece razoável compelir o Estado a fornecer determinado medicamento, quando existe outro similar em eficácia, mas de custo menor.
A resposta, no entanto, está em encontrar, à luz do caso concreto e tendo em conta os direitos e princípios conflitantes, uma compatibilização e harmonização dos bens em jogo, processo este que inevitavelmente passa por uma interpretação sistemática, pautada pela já referida necessidade de hierarquização dos princípios e regras constitucionais em rota de colisão, fazendo prevalecer, quando e na medida do necessário, os bens mais relevantes e observando os parâmetros do princípio da proporcionalidade.”
Deduz-se, pois, que os requisitos impostos pela cláusula da ‘reserva do possível’, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração, de implementação sempre onerosa, traduzem-se no binômio da razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público, de um lado, e, de outro, na existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.
Dessa forma, cristalino se mostra que os juízes devem ser extremamente cuidadosos para não extrapolarem suas funções institucionais, bem como devem interferir somente quando o núcleo do direito à saúde estiver em risco ou quando o Executivo e o Legislativo não souberem utilizar o poder discricionário a eles deferido e passarem a atuar de forma abusiva.”
Não paira dúvida de que o Estado é omisso no cumprimento de uma variada gama de seus deveres. Somos sabedores de que há carências nos setores da saúde, segurança, educação, habitação, emprego, previdência social, proteção à infância e a juventude, ou seja, no rol dos direitos sociais previstos no artigo 6°, da Magna Carta.
Todavia, a equacionalização dessas demandas requer a execução de políticas públicas para as quais o Estado, via de regra, não conta com recursos financeiros satisfatórios, ou conta, mas investe mal referidos recursos.
Fato é que o Poder Público na administração do interesse público comete tantos artifícios, tanto ardil, que começa a incutir na sociedade um sentimento de cólera despertado por ação indigna. Compreensível, no entanto, a indignação, mas tal fato não induz ao entendimento de que o Estado tenha que ressarcir ou reparar toda a sociedade pelas privações ou necessidades a que ela se sujeita. Dessume-se, pois, que deve separar-se o sentimento emocional das soluções jurídicas, tendo em vista que são essas que o Direito considera.
Com fundamento nesses aspectos, preocupantes se mostram as decisões judiciais que imputam responsabilidade civil ao Estado por omissão, frente à inexistência de nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o dano, ou seja, omissões genéricas originárias das carências existentes em todas as sociedades.
Entretanto, objetivando a busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas, dentre as quais podemos destacar a garantia dos direitos à vida e à saúde, resta cristalino que uma vez comprovada a real necessidade do cidadão em receber do ente público medicamentos de comprovada eficácia, mesmo que de alto custo, que lhe foi prescrito, indispensável à sua saúde e para o qual não possui condições financeiras de arcar pessoalmente, cabe ao Estado “latu sensu”, em qualquer de suas esferas, disponibilizar os medicamentos necessários.
No que diz respeito aos argumentos de que o direito à saúde trata-se tão somente de um programa, uma obrigação genérica do Estado, que deve deliberar, discricionariamente, qual a mais adequada política de saúde a ser posta em prática, bem como em relação à suposta violação aos princípios da legalidade orçamentária e da reserva do possível, não se afiguram cabíveis, frente à obrigatoriedade de que sejam garantidos, na forma prescrita pela Constituição, os direitos à vida e à saúde, valores superiores aos albergados por aqueles princípios.
Por demais, a alegação à suposta violação aos princípios da legalidade orçamentária e da reserva do possível, não deve preponderar, visto que o dano causado à ordem, à economia e às finanças públicas não se presume, devendo, ao contrário, ser efetivamente comprovado. A corroborar a não ocorrência da violação aos princípios supracitados, temos ainda o fato de que cada requerente deverá comprovar sua real necessidade de receber os medicamentos de comprovada eficácia, mesmo que de alto custo, mediante prescrição, que seja indispensável à sua saúde e para o qual não possui condições financeiras de arcar.
Por fim, vimos que a Constituição Federal ao fixar a fundamentalidade do direito á saúde, imputou ao Estado a atribuição de promover um conjunto de ações e serviços públicos indispensáveis à redução de doenças, bem como instituiu a garantia ao acesso universal e igualitário relativamente às ações e aos serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde.
Contudo, para dar cumprimento a essa incumbência, a Magna Carta previu o Sistema Único de Saúde (SUS), ao qual incumbe a promoção, a integração e a organização das inúmeras entidades que levarão adiante as ações atinentes à promoção da saúde. Ademais, o SUS está fundamentado na ideia de pluralismo, em um ambiente democrático, cujo modelo construiu-se sobre uma estrutura complexa, de maneira que sua gestão pressupõe a instituição de diálogos, por meio de debates, pressões e propostas dos diversos setores da sociedade.
No entanto, tendo em vista o fato de que as demandas envolvendo a saúde são indeclinavelmente formalizadas por meio de ações individuais, as notáveis ações cominatórias, que buscam, no caso, a obtenção de medicamentos de alto custo e de comprovada eficácia, não podemos deixar de prescrever que a previsão de recursos e meios para o atendimento da coletividade está preestabelecido em metas instituídas pela administração pública, restringidas a políticas de Estado já antecipadamente elaboradas e que, com certeza, estão circunscritas em bases objetivas.
Dessa forma, a solução está em adotar a autêntica e indispensável política sanitária propugnada pela Constituição Federal, pois seguindo tais diretrizes, torna-se evidente que a desjudicialização da saúde seria um bem necessário, senão indispensável para o adequado funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Não se afasta, contudo, a percepção no sentido de que, em determinadas situações a atuação judicial mostrar-se-á imprescindível à manutenção do direito à saúde.
Atualmente ninguém duvida de que é preciso buscar uma solução judicial que, ao estudar eventuais omissões administrativas, possa simultaneamente valer-se dos registros técnicos relativos à referida esfera de atuação do Poder Executivo, sem perder de memória a repercussão de sua decisão na esfera da Administração Pública.
Em consequência, para que a atuação judicial dê seguimento ao projeto de universalização de políticas de implementação de direitos sociais preconizado na Magna Carta, mostra-se indispensável a mudança da postura do juiz de primeiro grau, bem como dos integrantes dos tribunais, na condução desses processos. O processo judicial deve concorrer para a estabilidade das instituições políticas, sem esquecer a necessária abertura de espaço para a participação dos cidadãos na vida e no destino do Estado.
Assim, no pacto do direito à saúde, parece-nos que a fórmula para a reversão do quadro indesejável, já exposto, consiste em dar-se, ininterruptamente, prioridade à escolha de um remédio jurídico constitucional que consolide sua ênfase na tutela de interesses jurídicos metaindividuais, deixando as ações individuais para a esfera das excepcionalidades, ou seja, para atingir esses objetivos, é indispensável a conscientização de todos que atuam nesses processos, sobre a inevitabilidade de veiculação dos interesses referidos ao direito à saúde por intermédio da ação civil pública, bem como o debate, com mais ênfase, sobre as peculiaridades que cercam a eficácia da sentença desse remédio jurídico constitucional, com Magistrados, Procuradores, Promotores e Administradores Públicos.
A ação civil pública, por tornar possível a ponderação sobre os interesses difusos juridicamente relevantes, terá ainda, pelo aspecto de sua generalidade, o caráter de se impor por meio de uma sentença que terá cunho normativo.
Em tais casos, a sentença proferida em uma Ação Civil Pública, com trânsito em julgado, tem eficácia ultra partes e efeito “erga omnes”, o que quer dizer que atingirá a todos e englobará todas as situações jurídicas, presentes e futuras, envolvendo o tema julgado.
Por todo o exposto, vislumbramos a desjudicialização da saúde como uma necessidade e uma meta a ser alcançada em um futuro próximo. Meta essa que, se realmente atingida, culminará, sem sombra de dúvidas, no verdadeiro atendimento das garantias asseguradas pela Constituição Federal, principalmente no que diz respeito à garantia dos direitos à vida e à saúde.
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