7- Possíveis desdobramentos internacionais da objeção de consciência não reconhecida
Se no plano do direito positivo brasileiro o objetor de consciência não encontra guarida em tempos de guerra, o mesmo não ocorre no âmbito internacional. Vale dizer, existe a possibilidade de o objetor de consciência não reconhecido em território brasileiro buscar proteção em outros países por meio do pedido de concessão de asilo político.
Essa possibilidade torna-se razoavelmente factível nos países signatários do Protocolo das Nações Unidas sobre o Status dos Refugiados (adiante referido apenas como Protocolo). Isso porque tais países assumiram perante a comunidade internacional a obrigação de reconhecer o status de refugiados e de conceder asilo político aos indivíduos que se encontrem fora de seu Estado de origem “impossibilitados ou não desejosos de retornar em virtude de perseguição ou de um bem fundado medo de perseguição por conta de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou opinião política”.13
É fácil perceber que a hipótese de “perseguição em virtude de opinião política” compreenderia, entre outros, os casos dos objetores de consciência não reconhecidos. Tanto assim que em 1979 foi editado pelas Nações Unidas o “Manual de procedimentos e critérios para a determinação do status de refugiado”14 (adiante referido apenas como Manual), que contém oito parágrafos (167-174) sobre o tema. Tal documento, ainda que não possua força vinculante, representa sim interpretação autêntica do Protocolo.
O Manual distingue a objeção de consciência absoluta da objeção de consciência seletiva, dando-lhes tratamentos diversos.
A objeção de consciência absoluta, que pode ser definida como aquela que diz respeito a toda e qualquer participação em ações militares, é prevista no parágrafo 170 do Manual, que a reconhece como fundamento suficiente para o acolhimento de um pedido de reconhecimento de status de refugiado e concessão de asilo político: “Há casos em que a necessidade de prestar serviço militar pode embasar, por si só, um pedido de reconhecimento de status de refugiado, como nos casos em que o indivíduo puder demonstrar que a prestação de serviço militar envolveria a sua participação em ações militares contrárias às suas genuínas convicções políticas, religiosas ou morais, ou a válidas razões de consciência”.15
Já a objeção de consciência seletiva é aquela que diz respeito a uma ação militar determinada. Esse é o caso do indivíduo que inicialmente concorda com a prestação de serviço militar, mas, em virtude de convicções políticas, religiosas ou filosóficas, recusa-se a tomar parte em uma ação militar específica. A ocorrência de tal modalidade de objeção tornou-se mais freqüente a partir da guerra entre EUA e Vietnam, tendo voltado a crescer com a segunda guerra entre EUA e Iraque.
O tratamento dado a esse tipo de objeção pelo parágrafo 171 do Manual é muito mais rigoroso: “Nem toda convicção, ainda que legítima, constituirá razão suficiente para um pedido de reconhecimento de status de refugiado nos casos de deserção ou recusa de alistamento. Não é suficiente o desacordo entre uma pessoa e o Governo de seu Estado com relação à justificação política de uma determinada ação militar. Entretanto, quando o tipo de ação militar do qual o indivíduo não deseja participar for condenado pela comunidade internacional como contrária às regras básicas da conduta humana, a punição por deserção ou recusa de alistamento poderia (...) ser considerada perseguição”.16
Vê-se então que a regra geral é a não proteção da escusa de consciência seletiva, regra essa excepcionada apenas nos casos em que o tipo de ação militar em questão é condenado pela comunidade internacional como contrária às regras básicas da conduta humana.
A redação vaga do Manual demanda alguns esclarecimentos a respeito da exceção supra. A expressão “tipo de ação militar condenado” parece referir-se a duas possibilidades básicas: 1- os meios empregados na ação militar são condenados, ou 2- a política externa subjacente à ação militar é condenada.
Na primeira hipótese, o indivíduo que pleiteia o reconhecimento de seu status de refugiado junto a determinado Estado deve comprovar perante a autoridade competente que os métodos empregados pelas forças militares de seu Estado contrariam “regras básicas da conduta humana”, como as Convenções de Genebra e Haia (que contêm normas acerca do tratamento de prisioneiros, proíbem o uso de gás venenoso e armas bacteriológicas, estabelecem tratamento diferenciado para combatentes e civis, etc.) sobre direito da guerra.
A segunda hipótese é ainda mais complexa, na medida em que aquele que pleiteia o reconhecimento de seu status de refugiado deve demonstrar que a comunidade internacional condena a política externa subjacente à ação militar em questão. Tal demonstração é dificílima, mas não impossível: imagine-se, por exemplo, uma resolução aprovada quase que unanimemente no âmbito de organizações internacionais como ONU e OEA.
De tudo quanto exposto conclui-se que, apesar das dificuldades envolvidas, é possível que um objetor de consciência não reconhecido em seu Estado de origem (o Brasil em tempos de guerra, por exemplo) consiga, por meio do reconhecimento de seu status de refugiado e da obtenção de asilo político em outro Estado, fazer valer a escusa invocada.
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Notas
1 MELLO, Leonel I. Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In Os clássicos da política, n° 1, organizador Francisco C. Weffort. São Paulo, Ática, 13ª ed., 2003, p. 88.
2 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 579-580.
3 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 599-600.
4 Guerra que durou entre 1846-1848, terminando com a vitória dos norte-americanos, que incorporaram ao seu país os territórios que hoje correspondem a partes dos Estados do Texas, Novo México e Califórnia. Thoreau e outros criticavam o envolvimento dos EUA no conflito, afirmando que a guerra não passava de uma manobra sulista visando o aumento do território escravocrata.
5 THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. São Paulo, Martin Claret, 2003, p. 15.
6 THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. São Paulo, Martin Claret, 2003, p. 20.
7 THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. São Paulo, Martin Claret, 2003, p. 21 e 24.
8 BUZANELLO, José Carlos. Objeção de consciência: uma questão constitucional. In Revista de Informação Legislativa, ano 38, n° 152, outubro/dezembro de 2001, p. 174.
9 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo, Saraiva, 1990, vol. 1, p. 34.
10 Lei Fundamental de Bonn de 1949:
Artigo 4 [Liberdade de crença e de consciência]
(3) Ninguém poderá ser obrigado, contra a sua consciência, ao serviço militar com armas. A matéria será regulamentada por uma lei federal.
Constituição Espanhola de 1978:
Artículo 30.(...) 2. La ley fijará las obligaciones militares de los españoles y regulará, con las debidas garantías, la objeción de conciencia, así como las demás causas de exención del servicio militar obligatorio pudiendo imponer, en su caso, una prestación social sustitutoria.
11 Lei n° 8239/91
Art. 3º O Serviço Militar inicial é obrigatório a todos os brasileiros, nos termos da lei. (...)
§ 2° Entende-se por Serviço Alternativo o exercício de atividades de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, em substituição às atividades de caráter essencialmente militar.
§ 3º O Serviço Alternativo será prestado em organizações militares da ativa e em órgãos de formação de reservas das Forças Armadas ou em órgãos subordinados aos Ministérios Civis, mediante convênios entre estes e os Ministérios Militares, desde que haja interesse recíproco e, também, sejam atendidas as aptidões do convocado.
12 BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo, Saraiva, 1997, vol. 5, p. 186.
13 Tradução livre do art. 1 (2) da Convenção das Nações Unidas sobre o Status dos Refugiados (1954), alterado pelo Protocolo das Nações Unidas sobre o Status dos Refugiados (1967).
14 Disponível em http://www.unhcr.org/cgi-bin/texis/vtx/home/opendoc.pdf?tbl=PUBL&id=3d58e13b4
15 Parágrafo 170 do Manual:
170. There are, however, also cases where the necessity to perform military service may be the sole ground for a claim to refugee status, i.e. when a person can show that the performance of military service would have required his participation in military action contrary to his genuine political, religious or moral convictions, or to valid reasons of conscience
16 Parágrafo 171 do Manual:
171. Not every conviction, genuine though it may be, will constitute a sufficient reason for claiming refugee status after desertion or draft-evasion. It is not enough for a person to be in disagreement with his government regarding the political justification for a particular military action. Where, however, the type of military action, with which an individual does not wish to be associated, is condemned by the international community as contrary to basic rules of human conduct, punishment for desertion or draft-evasion could, in the light of all other requirements of the definition, in itself be regarded as persecution.