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O princípio da legalidade administrativa à luz da teoria de Dworkin do direito como integridade

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5 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE, SISTEMA DE REGRAS E POSITIVISMO JURÍDICO

Se partirmos da premissa de DWORKIN de que o direito é um “empreendimento interpretativo”16, e não uma questão de fato que possa ser sustentada por uma teoria semântica, devemos então admitir que o próprio conceito do princípio da legalidade não é definitivo e imutável. O conceito é uma construção que será tanto melhor quanto mais for correspondente às práticas jurídicas de uma dada comunidade de um determinado contexto histórico. É, portanto, na arena argumentativa que devemos atuar para conceber o principio da legalidade sob sua melhor luz na atualidade, sem perder de vista que toda interpretação é o relato de um propósito.

Feitas essas advertências, voltemos ao ponto de nossa investigação, começando por analisar a consistência da tese que vincula à legalidade a um sistema de regras.

Antes, porém, é de bom alvitre tecer algumas considerações acerca das diferenças entre as normas que veiculam princípios e as que veiculam regras.

A esse respeito, ALEXY ensina que:

el punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizados en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, os princípios son mandatos de optimización […]. En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exig, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y juridicamente posible.17

Como se nota, para ALEXY, as regras seriam normas cogentes e determinantes da conduta, imperativos definitivos, ao passo que os princípios seriam comandos de otimização. Segundo o autor, as regras criam direitos definitivos. Elas regulariam por si próprias sua aplicação, sem necessidade de mediação do intérprete. Por isso, não teria lugar aqui qualquer espécie de argumentação jurídica. Aplicar-se-ia unicamente uma técnica de subsunção que explicaria a incidência da regra18.

Os princípios, por sua vez, não seriam imperativos, mas meramente orientadores. A aplicação do princípio demandaria uma argumentação jurídica, a qual se basearia em um “discurso de aplicação de valores morais em processos de decisão pública”19. A técnica utilizada nesse caso não seria a de subsunção, mas a de ponderação.

DWORKIN, a sua vez, entende que a distinção entre princípios e regras jurídicas é de natureza lógica. Para ele, as regras se aplicam na base do tudo ou nada, isto é, se ela for válida e os fatos a que ela se refere se concretizam a consequência que ela estipula deve ser aceita; se não for válida em nada contribui para a decisão20.

Já os princípios na concepção dworkiana não se destinam a estabelecer condições que tornam a aplicação necessária. Mesmo aqueles que mais se aproximam das regras “não apresentam consequências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas.” Eles apenas enunciam “uma razão que conduz o argumento em uma certa direção mas [que ainda sim] necessita uma decisão particular.”21 DWORKIN salienta ademais que “os princípios tem uma dimensão que as regras não têm — a dimensão do peso e importância”. Quando os princípios se sobrepõem aquele que prevalece tem de “levar em conta a força relativa de cada um”22.

Diante dessas explanações, o que se infere é que as regras são normas dotadas de maior grau de densidade normativa, por conterem em si mesmas a decisão a ser tomada quando o suposto fático, nelas previsto abstratamente, se concretiza. Os princípios possuem características diferentes. Eles apenas fornecem razões, argumentos para que o intérprete se incline a decidir em um determinado sentido.

Para DWORKIN, a ideia de que o direito constitui um sistema de regras é atraente especialmente para o positivismo. Com efeito, o jurista anglo-saxão demonstra que os pilares das teorias positivistas ora repousam sobre o estabelecimento de regras de reconhecimento que permitam aferir a validade de outras regras e ora sobre a afirmação de que o direito é correspondente, coextensivo ao sistema de regras, de modo que na eventualidade de não haver claramente regra que discipline determinado caso, a decisão deve ser obtida além das fronteiras do direito para dar solução ao caso concreto.23

Aponta como razão principal dessa tendência, o fato de que “a educação jurídica consiste, desde longa data, em ensinar e examinar aquelas regras estabelecidas que formam a parte mais importante do direito”.24

A nosso juízo, a explicação para esse fenômeno tem outras causas. Dado que o positivismo tem a pretensão de elaborar uma teoria dita “científica” ou, se preferirmos a nomenclatura de DWORKIN, semântica, do Direito, os positivistas têm o vezo de buscar aprisionar o Direito dentro de fórmulas matemáticas, de relações de causalidade, de silogismos lógicos próprios das ciências da natureza. Nessa perspectiva, o direito assume feição de mera questão de fato. Essa atitude pode ser explicada pelo desejo de tornar o direito mais previsível, e, consequentemente, mais sujeito a controle e propenso a assegurar a segurança jurídica. Segue daí que os princípios, por inserirem um elemento importante de incerteza no objeto, ao não permitirem a formação de um juízo a priori — isto é, antes da confrontação com os fatos e no contexto em que se tem de aplica-los — sobre a decisão que deve ser tomada no caso concreto, são considerados perniciosos para o método que o positivista entende correto para analisar o Direito.

Essa sensação aparente de certeza e previsibilidade parece ser bastante persuasiva para algumas concepções conservadoras do Direito Administrativo. De fato, esse ramo do Direito nasceu no contexto do paradigma do Estado de Direito, forte na ideia de que sua função era conter dentro de balizas jurídicas bem definidas o poder do Executivo25. Naturalmente, essa contenção será tanto mais eficaz quanto diminuir o espaço que o administrador tem para argumentar em favor de uma ou de outra decisão. Pretende-se, assim, substituir, na medida do possível, o juízo — tachado de “subjetivo” — do administrador, pelo juízo abstrato pré-definido na lei, tido como impessoal e imparcial. Esse propósito fica bem retratado na seguinte passagem da doutrina de MELLO acerca do princípio da legalidade:

Pretende-se através da norma geral, abstrata e por isso mesmo impessoal, a lei, editada, pois, pelo Poder Legislativo — que é o colégio representativo de todas as tendências (inclusive minoritárias) do corpo social —, garantir que a atuação do Executivo nada mais seja senão a concretização desta vontade geral26

É conveniente, portanto, ao propósito de alguns doutrinadores de conter o poder do administrador a concepção do princípio da legalidade como um sistema de regras.


6 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E DIREITO COMO INTEGRIDADE

A visão de que é a norma abstrata e geral que garante a certeza e previsibilidade da atuação da Administração Pública, leva-nos a questionar se essa é realmente melhor leitura que se deve fazer do princípio da legalidade nos dias atuais, em que se vive o paradigma do Estado Democrático de Direito?

A nosso sentir não.

Em primeiro lugar, a pretensão de, pela técnica da subsunção própria das regras, confinar a aplicação do Direito nos estritos limites da cognição puramente lógico-formal é uma ilusão. O próprio KELSEN, tido como um dos grandes expoentes do positivismo, já havia se apercebido disso em sua Teoria Pura do Direito, conforme se observa da seguinte passagem da obra, verbis:

(…)todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado

Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. 27

Nota-se que o jurista austríaco reconhece que, para aplicar o Direito, ainda que seja um simples ato de pura execução, é necessário interpretá-lo, o que impõe a realização escolhas dentro de um determinado universo. O direito somente seria capaz, quando muito, de fixar esse universo, por ele denominado de moldura. Disso decorre que não há como se ter uma interpretação puramente objetiva, que dispense a atribuição de sentido que é dada pelo intérprete. É ilusório, destarte, pretender que a aplicação do Direito é um ato neutro, “impessoal”. Mesmo que se queira submeter, a partir de uma determinada concepção do princípio da legalidade, a Administração a um sistema de regras, em que os princípios jurídicos estejam excluídos, a regra abstrata e geral, por si só, não é capaz de afastar por completo os juízos que o administrador tem que fazer para interpretar a norma e aplica-la ao caso concreto. E nem deve ser assim, porque, justamente nesse o momento, em que “verdadeira” lei se revela após a interpretação, é que a correção e coerência do sistema pode ser garantida. A propósito, são oportunas as palavras de CARVALHO NETTO e SCOTTI:

Na modernidade, a edição de normas gerais, hoje sabemos bem, não elimina o problema do Direito, tal como ansiado nos dois paradigmas anteriores e neles vivencialmente negado, mas, pelo contrário, o inaugura. O problema do Direito moderno, agora claramente visível graças à vivência acumulada, é exatamente o enfrentamento consistente do desafio de se aplicar adequadamente normas gerais e abstratas a situações de vida sempre individualizadas e concretas, à denominada situação de aplicação, sempre única e irrepetível, por definição.28

Em segundo lugar, não há nenhuma boa razão para que, nos dias atuais, não se atribua juridicidade aos princípios, mesmos àqueles implícitos no ordenamento jurídico. Os princípios não constituem normas de simples valor moral que apenas eventualmente podem ser servir de apoio aos intérpretes para embasarem decisões jurídicas, como parece ser a posição de ALEXY. Se eles são, como defende MELLO29, mandamentos nucleares de um sistema, devem constituir o fundamento primeiro a ser levado em conta na compreensão de qualquer instituto ou regra jurídica. Com bem anota AZEVEDO: “por mais simples que sejam, as regras também têm aplicação principiológica.”30 Os princípios, pois, têm de ser densificados no processo de aplicação do Direito em geral, de forma a garantir a unidade e coerência do ordenamento visto como um todo.

Não há como negar que os princípios de Direito permeiam as normas e as decisões jurídicas, especialmente no dias atuais em que se dá uma conotação mais material ao princípio da supremacia da Constituição e, de conseguinte, há um esforço considerável para extrair força normativa de suas disposições, em grande parte de cunho essencialmente principiológico.

Por esse motivo, somos levados mesmo institivamente a resistir a uma interpretação mecânica da lei que venha a contrariar frontalmente um princípio de Direito compartilhado na comunidade. Os casos concretos descritos anteriormente são uma boa amostra disso. Pegue-se o primeiro exemplo citado linhas atrás, referente ao pedido de autorização formulado por pessoa jurídica formada por sócios que integravam, nessa qualidade, outra pessoa jurídica que sofrera a cassação da autorização. Permitir que alguém se utilize da personalidade jurídica de uma nova sociedade para escapar dos efeitos de penalidade aplicada a uma antiga seria o mesmo que compactuar com uma fraude. Embora a lei que discipline a autorização e as demais leis administrativas se omitam quanto a essa situação, não prevendo a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica para essa hipótese, o intérprete é levado, pelas circunstâncias do caso, a interpretar a lei de modo coerente com o princípio de que ninguém deve se beneficiar de sua própria torpeza, que fundamenta diversos dispositivos legais e compõe o pano de fundo argumentativo de diferentes decisões judiciais.

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Perceba-se que não estamos a falar da interpretação de uma lei obscura ou ambígua. O ato administrativo era considerado vinculado e todos os requisitos explicitamente previstos na norma estavam preenchidos. Todavia, aplicar a lei sem contextualizá-la, nesse caso, significaria prestigiar uma pretensão abusiva do administrado. Por isso, fez-se sentir a necessidade de atribuir-lhe um sentido que lhe desse coerência com o ordenamento como um todo. Desse modo, a “verdadeira” lei, devidamente interpretada dentro de seu contexto, aconselhava no caso concreto o indeferimento do pedido de emissão da outorga em benefício da pessoa jurídica formada pelos sócios daquela que sofrera a penalidade.

O princípio da legalidade nessa perspectiva melhor se amolda à concepção de DWORKIN de Direito como integridade. Segundo tal concepção, “as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade”31. Nessa esteira, DWORKIN defende que a compreensão do que é o Direito, isto é, do que ele permite ou exige é uma atividade auto-reflexiva. Somente pela dialética dos argumentos dentro da própria prática jurídica é que se pode alcançar a verdade sobre as proposições acerca do que é o direito em cada caso concreto. É o que se extrai da seguinte passagem de sua obra:

a prática do direito é argumentativa. Todos os envolvidos nessa prática compreendem que aquilo que ela permite ou exige depende da verdade de certas proposições que só adquirem sentido através e no âmbito dela mesma; a prática consiste em grande parte em mobilizar e discutir essas proposições32

Para DWORKIN, portanto, é por meio do exercício hermenêutico que combina elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro que é possível atribuir um sentido para as proposições envolvendo o Direito.

Em suma, na atualidade o princípio da legalidade administrativa ainda adquire um papel de grande relevo na garantia de direitos fundamentais. Tal desiderato, porém, não é alcançado por meio de edição de regras gerais e abstratas. Somente a aplicação da norma, devidamente interpretada em um procedimento discursivo que pressupõe a coerência interna de uma comunidade de princípios, é capaz de garantir o reconhecimento dos direitos individuais em seu verdadeiro conteúdo. Rechaçam-se, destarte, as interpretações da lei que recorrem ao simples argumento da validade formal ou de autoridade para sustentar decisões contrárias aos princípios de Direito. Na feliz síntese de AZEVEDO “o Direito como integridade significa que o direito é uno e por conseqüência todas as normas existentes no ordenamento devem ser interpretadas de maneira a manter a coerência interna que lhe garanta unidade”33

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Sobre o autor
Eduardo Estevão Ferreira Ramalho

Procurador Federal Especialista em defesa da concorrência pela FGV/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMALHO, Eduardo Estevão Ferreira. O princípio da legalidade administrativa à luz da teoria de Dworkin do direito como integridade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3971, 16 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28470. Acesso em: 25 abr. 2024.

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