O litígio levado ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça através do Recurso Especial nº 1.258.389/PB era relativamente simples e, em nossa opinião, havia recebido adequado tratamento pelo Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.
Tratava-se de ação movida pelo Município de João Pessoa/PB em face da Rádio e Televisão Paraibana Ltda. pleiteando indenização por danos morais sofridos em razão de comentários feitos durante programa transmitido pela requerida que supostamente denegriam a imagem do ente público.
O Tribunal a quo acertadamente reconheceu a possibilidade da pessoa jurídica, seja pública ou privada, ser sujeito passivo de dano moral, nos termos da Súmula nº 227 do STJ. Porém, no mérito, afirmou ter havido no caso mero exercício regular do direito de informar – liberdade de imprensa:
“[...] Inocorre ofensa à dignidade, à honra e à imagem, quando o exercício da liberdade de imprensa, mesmo tecendo críticas ou oportunizando que ouvintes e/ou entrevistados as façam, pauta-se dentro das fronteiras da licitude, sem descambar para o ‘animus caluniandi’ ou ‘animus diffamandi’ (fl. 159-160).”
Conduzido pelo voto do Relator, Ministro Luís Felipe Salomão, reanalisou a possibilidade a pessoa jurídica de direito público ser sujeito passivo de dano moral, questionando, preliminarmente, se poderia o ente público ser titular do direito fundamental à indenização pelo dano moral à honra e à imagem.
Responde ao próprio questionamento argumentando que a consagração dos direitos fundamentais partiu da necessidade de proteger a esfera de direitos individuais da pessoa humana de arbitrariedades perpetradas pelo Estado. Consequentemente, os direitos fundamentais do Estado estariam limitados a prerrogativas processuais ou relacionados com a proteção de sua autonomia, prerrogativas e competências, oponíveis a próprio Estado, não ao particular.
Nega, portanto, que os entes públicos possam sofrer dano moral à sua honra objetiva ou à sua imagem.
Arremata afirmando que a Súmula nº 227 representa solução pragmática à recomposição de danos de ordem material de difícil liquidação, cabível apenas para resguardar a credibilidade e a reputação mercadológica de empresas, vez que o abalo à sua imagem poderia conduzir a perdas pecuniárias.
Partindo a nossa crítica do final do voto do Ministro Relator, temos que nada pode ser mais absurdo do que tentar restringir a amplitude do debate de ideias ocorrido dentro do Superior Tribunal de Justiça e que resultaram na edição do verbete de Súmula nº 227, assim enunciado: “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.
Talvez o principal precedente sobre o tema, aquele que serviu de paradigma para todos os demais, seja o Recurso Especial nº 60.033-2/MG, relatado pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que versava sobre protesto indevido de título cambial e a consequente pleito de reparação por danos extrapatrimoniais.
O Ilustre Relator fez a necessária distinção entre a honra subjetiva e a honra objetiva, para concluir que as pessoas jurídicas, por sua incapacidade de experimentarem emoção ou dor, somente poderiam sofrer ataques à sua honra objetiva, que poderiam abalar sua reputação junto a terceiros.
Frise-se, o Ministro Ruy Rosado reconhece que a ofensa à honra objetiva da pessoa jurídica poderia causar-lhe dano patrimonial (restrições de crédito, perda de negócios, diminuição de clientela), mas não necessariamente. Seria possível que a ofensa afetasse o conceito público da pessoa jurídica, sem repercutir direta e imediatamente em seu patrimônio, de modo que as duas espécies de dano não seriam excludentes.
Cita Pierre Kayser e a doutrina francesa para afirmar que as pessoas jurídicas são sim titulares de direitos análogos aos direitos da personalidade e que a ação indenizatória é o meio cabível proteção.
Conduzida pelo voto do Ministro Ruy Rosado, a Quarta Turma do STJ reconheceu por unanimidade a possibilidade das pessoas jurídicas experimentarem dano moral, em função de ofensa à sua honra objetiva.
O primeiro precedente jurisprudencial da Terceira Turma do STJ sobre o tema também é bastante importante, o Recurso Especial nº 58.660-7/MG, que embora faça referência ao precedente da Quarta Turma, trouxe ao debate novos e interessantes argumentos.
O Relator, Ministro Waldemar Zveiter, acolheu transcreveu e aderiu integralmente ao voto do Ministro Ruy Rosado proferido no REsp nº 60.033-2/MG, para negar provimento ao recurso, que pleiteava o reconhecimento de que as pessoas jurídicas não poderiam ser sujeitos passivos de dano moral.
Já o Ministro Costa Leite, apesar de concordar com a conclusão do relator, o fez por argumentos distintos. Concorda que a pessoa jurídica possua uma reputação, porém, vê com dificuldades o enquadramento como extrapatrimonial os danos resultantes de ofensa à mesma. Assim, nesses casos em que seja difícil a comprovação dos danos patrimoniais, sugere que se admita que a ofensa ao bom nome da pessoa jurídica enseje indenização por danos morais (tese semelhante àquela esposada atualmente pelo Ministro Luís Felipe Salomão).
Em voto-vista, o Ministro Nilson Naves aborda a evolução da doutrina jurídica acerca do tema e seus reflexos no projeto de código civil de 1975 (que, após análise do Congresso Nacional, veio a ser convertido no Novo Código Civil, atualmente vigente), que continha disposição expressa aplicando às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.
Referindo-se a lições doutrinárias de Antônio Chaves, Henri e Leon Mazeaud, Ruben Limonji França, Waldemar Valler e De Cupis, reconhece a possibilidade de que a pessoa jurídica pública, e mesmo a coletividade, venham a sofrer dano moral, entendido como o que atinge o aspecto não econômico dos seus bens jurídicos.
O Ministro Eduardo Ribeiro foi o único a discordar da conclusão do relator, dando provimento ao recurso por entender que, no que tange às pessoas jurídicas, o dano moral não seria exclusivamente extrapatrimonial. Ou seja, se da ofensa à honra ou à imagem não derivasse qualquer dano econômico, não haveria que se falar em indenização.
Ressalvada as opiniões contrárias dos Ministros Eduardo Ribeiro e Carlos Alberto Menezes Direito, as duas Turmas que compunham a Segunda Seção do STJ reafirmaram o entendimento em outras diversas oportunidades (por exemplo: Recursos Especiais nº 161.913/MG, 177.995/SP, 161.739/PB, 129.428/RJ e 134.993/MA).
No REsp nº 134.993/MA, o Relator, Ministro Sávio de Figueiredo Teixeira, transcreve a seguinte lição pinçada do doutrinador brasileiro Aguiar Dias:
“A pessoa jurídica pública ou privada, os sindicatos, as autarquias, podem propor ação de responsabilidade, tanto fundada no dano material como no prejuízo moral. Este ponto de vista, esposado pela generalidade dos autores, é sufragado hoje pacificamente pela jurisprudência estrangeira. A nossa carece de exemplos, ao menos de nós conhecidos. Não há razão para supor que não adote, ocorrida a hipótese, igual orientação (Da Responsabilidade Civil, v. II, 7ª ed., Forense, 1983)”.
Em seguida, reforça o argumento citando a doutrina francesa, que, a princípio, admitia a repercussão do dano moral em pessoas jurídicas apenas em relação aos sindicatos, mas, posteriormente, passou a estendê-la às pessoas jurídicas em geral.
Assim, contrariando a afirmação do Ministro Luís Felipe Salomão, ao propor e aprovar o enunciado de Súmula nº 227, afirmando que as pessoas jurídicas podem sofrer dano moral, o Superior Tribunal de Justiça não se limitou a criar um arranjo jurídico que permitisse a “recomposição de dano material de difícil liquidação potencialmente resultantes do abalo à honra objetiva da pessoa jurídica”.
Os votos proferidos pelos Ministros da época, os argumentos utilizados, a doutrina consultada e citada, todo o contexto demonstra que, diante da controvérsia, o Tribunal optou por reconhecer às pessoas jurídicas em geral, privadas e públicas, o direito de pleitear indenização por dano moral à sua honra objetiva, entendida esta como a credibilidade, o bom nome, o conceito público, a respeitabilidade que goze perante terceiros, sem que exigir, necessariamente, que da ofensa moral advenham reflexos patrimoniais.
Também não concordamos com o entendimento de que as pessoas jurídicas de direito público não podem ser titulares de direitos fundamentais, que se constituiriam de faculdades oponíveis pelos indivíduos contra o Estado.
Esse entendimento parte do pressuposto de que o movimento da positivação dos direitos fundamentais da pessoa humana nasceu da necessidade de proteção da esfera individual contra arbitrariedades perpetradas pelo Estado.
Em parte, a construção é verdadeira, posto que se relaciona com os direitos fundamentais de primeira geração, considerados negativos porque tendem a evitar a intervenção do Estado na liberdade individual, caracterizando-se como uma atitude negativa por parte dos poderes públicos. Temos exemplos históricos da positivação desses direitos na Magna Carta inglesa (1215), Bill of Rights (1689), Preâmbulo da Declaração de Independência dos EUA (1776), Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa (1789) e Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Não se pode, contudo, recusar que qualquer direito, faculdade ou instituto jurídico possa evoluir, agregando ou alterando significado, ou mesmo ampliando seu rol de destinatários. Os direitos fundamentais nasceram sim como forma de proteção dos indivíduos do poder estatal, e foram positivados enquanto direitos humanos. Contudo, discute-se hoje se, ao menos alguns deles, podem ser estendidos às pessoas jurídicas, mais especificamente às pessoas jurídicas de direito público.
Em seu voto, o Ministro Luís Felipe Salomão cita exemplos em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu às pessoas jurídicas de direito público a titularidade de direitos fundamentais (MS nº 21.239 e MI nº 725). Apesar dos casos citados estarem ligados especificamente a garantias de ordem processual e prerrogativas oponíveis ao próprio Estado, não se pode com isso negar que possam ser titulares de direitos oponíveis ao indivíduo. A ausência de precedentes não o autoriza.
À primeira vista pode parecer mesmo que se está subvertendo a essência dos direitos fundamentais, que a priori se destinam a proteger os indivíduos do Estado. Então, como poderia ser o próprio Estado titular de direitos fundamentais.
Cumpre esclarecer que os direitos fundamentais não apenas são oponíveis em face do ente estatal, como também em face de outro indivíduo. O direito individual à vida e à liberdade, por exemplo, deve ser respeitado não apenas pelo Estado, mas por todos, entes públicos, privados e indivíduos.
Por outro lado, por mais redundante que possa soar, os entes públicos, enquanto pessoas jurídicas, são pessoas. Personificação de direitos e deveres, a quem devemos garantir o direito de autodeterminação e individualização.
Os julgados do STJ que precederam e serviram de fundamento para a Súmula nº 227 reconheceram que as pessoas jurídicas possuem honra objetiva, esfera de bens extrapatrimoniais que compreende respeito, apreço, admiração, consideração, ou seja, o conceito público de que goze na sociedade.
Por certo que esse reconhecimento não está restrito às pessoas jurídicas de direito privado. Também as pessoas jurídicas de direito público possuem uma imagem perante a sociedade e é legítimo que busque preservá-la contra ataques indevidos.
Aliás, com maior razão deve-se garantir que os entes estatais possam reparar danos à sua imagem, posto que, em último grau, a respeitabilidade, o conceito público que se tem do Estado é exatamente o fator que lhe confere legitimidade perante os administrados, a sociedade.
O que aconteceria se o Estado caísse em total e absoluto descrédito perante seus cidadãos? Sem legitimidade perante o povo, o Estado pereceria e perderia sua razão de existir. Instalar-se-ia a anarquia.
Os incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal são claros ao garantir que os danos morais causados à imagem e à honra ensejam reparação indenizatória. E se destinam às pessoas, naturais ou jurídicas, privadas ou públicas.
Portanto, há de se concluir que as pessoas jurídicas de direito público podem ser sujeitos passivos de dano moral, quando lhe atinja a honra objetiva, nos termos da Súmula nº 227 do STJ, podendo pleitear indenização conforme garante o art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, o qual não as excluiu de seu alcance, sendo certo que o art. 52 do Código Civil estabelece ser aplicável às pessoas jurídicas, também sem excluir as de direito público, a proteção aos direitos da personalidade.