CAPÍTULO III: NEUTRALIDADE, SEGURANÇA JURÍDICA E HERMENÊUTICA NA VISÃO QUÂNTICA
1. O Direito quântico
Com excelência, o jus filósofo Goffredo Telles Júnior foi o primeiro jurista a fundamentar a teoria quântica aplicada ao Direito. Em sua obra, “O Direito Quântico – ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica”, o ilustre professor explica a relação do macrocosmo social com o mundo da interação atômica, tendo como paradigmas não só o viés jurídico, como também o filosófico, histórico e cultural.
Goffredo Telles Júnior corrobora as críticas à física newtoniana, que concebia a natureza meramente sólida do átomo, frente às descobertas da física quântica, que inaugurou o novo paradigma cientifico embasado na dualidade atômica (onda e partícula).
Em sua obra, o autor nos leva a um passeio através de conceitos da biologia e da física quântica, salientando que no macrocosmo, assim como no microcosmo, há uma liberdade no movimento das partículas, como se o exercício de escolha se guiasse pela percepção do que é melhor para o organismo vivo. E conclui que a percepção equivocada dos sentidos humanos deve-se ao fato da nossa visão macroscópica, que reflete a estaticidade dos organismos (não obstante sua complexidade), quando, na verdade, não se pode falar em nada que não seja, ao mesmo tempo, energia e movimento, ou, nas palavras do autor, corpo e onda (TELLES JUNIOR, 1985)
Trazendo à baila a evolução do pensamento científico, Goffredo ressalta que no universo microscópico tudo é extremamente rápido e disforme. Inicialmente, quando se pensava em micropartículas no átomo, tinha-se a ideia de uma esfera rígida. Depois, viu-se que a estrutura real do átomo é formada por um núcleo, com prótons e nêutrons e, ao seu redor, partículas elétricas, chamadas de elétrons.
Diferentemente do que acreditavam os físicos “pré-modernos”, os elétrons não possuem forma determinada. Do mesmo modo, a localização deles não é facilmente identificada, já que pode estar em qualquer lugar. Nesse sentido, Goffredo compara o movimento dos elétrons ao dos seres livres, dedicando um capítulo inteiro de sua obra à discussão do ideal de liberdade. “Pelo prisma do Direito, os homens são partículas delimitadas de energia. São objetos quânticos, ou quanta” (TELLES JUNIOR, 1985, p.433).
Segundo o escritor, o campo é o espaço de manifestação da energia e onde interagem os microcorpos, relacionando-se com outros corpos. É no campo que se verifica a interação entre os corpos, e esta interação é necessária para que cada corpo manifeste plenamente sua essência e propriedades. Analogamente, “A movimentação dos homens em sociedade é determinada pelas forças atuantes em seus respectivos campos” (TELLES JUNIOR, 1985, p.432).
Nesse norte, traça-se um paralelo segundo o qual um organismo só é conhecido quando na verificação de suas inter-relações com outros organismos, em diversas circunstâncias. Logo, nenhuma partícula é identificável sem que se observe como age noutra, como se comporta ao comunicar-se com outra.
A teoria quântica aplicada ao Direito, ao relacionar o estudo do campo eletrônico às relações sociais e empreender o conceito de livre arbítrio atrelado à cinemática eletrônica, traz a tese de que a realidade gregária é dependente da realidade quântica. Goffredo relaciona a reestruturação dos elétrons em torno de seu núcleo em prol do não colapso atômico com o sentimento de justiça social em favor da sinergia do tecido gregário.
Em analogia às interações atômicas ocorridas no campo eletromagnético do átomo, o autor traz as relações humanas ocorridas no seio do tecido gregário, pois assim como o átomo se organiza em prol de uma entalpia, as relações humanas tendem a fomentar a existência de fatores culturais, éticos e sociológicos como mecanismos de organização e gestão coletiva. “As interações dos homens – dos homens considerados como quanta (quantidades discretas de energia) – são regulamentadas por uma ordenação quântica” (TELLES JUNIOR, 1985, p. 433).
Essa comparação entre o campo atômico e o campo das relações sociais representa o liame entre a teoria quântica e a temática do Direito enquanto dominação e resistência. Pois, para evitar a entropia, desorganização, os elétrons se reorganizam de acordo com a perspectiva atômica, no caso da sociedade humana, esta se ajusta de acordo com a perspectiva humana, tendo como paradigma a manutenção da ordem.
As consequências da teoria quântica podem ser mais bem percebidas por meio do paradoxo de Schrödinger[27]. Vejamos:
Um gato está acomodado numa caixa que contém uma amostra de qualquer elemento radioativo e um recipiente com ácido cianídrico, um veneno mortal. O processo de decaimento radioativo propriamente dito é um processo da mecânica quântica e, consequentemente, só pode prevê que ocorra num sentido probabilístico. Por meio de um dispositivo adequado, quando um átomo que há dentro da amostra radioativa decai, um sinal faz com que o martelo colocado calculadamente caia no recipiente e o quebre, libertando o gás tóxico e o mate (COVENEY;HIGHFIELD, 1993, p. 132, apud, VIANNA, 2008).
Aludindo à obra dos físicos Coveney e Highfield, Túlio Lima Vianna escreve:
O gato dentro dessa caixa opaca, de acordo com a teoria quântica, estaria simultaneamente vivo e morto, da mesma forma que um elétron é partícula e onda ao mesmo tempo. Isso porque o sistema que compreende a caixa e tudo que ela contém é descrito por uma função de onda que descreve probabilidades. Somente com a observação empírica, coma abertura da caixa e visualização do gato, haverá redução da função de onda O paradoxo do Gato de Schrödinger, ao transpor a indeterminação da Física Quântica do nível microscópico do decaimento radioativo para o macroscópico de um gato morto demonstra quão paradoxal aparenta ser essa teoria. Inúmeras experiências com instrumentos de precisão têm demonstrado, no entanto, que no nível subatômico a subjetividade do observador é decisiva não só do comportamento futuro, mas também do passado das partículas (COVENEY; HIGHFIELD, 1993, p. 132, apud, VIANNA, 2008, p. 115).
Novamente nos vemos diante a realidade integrativa a qual estamos obrigatoriamente inseridos. No mundo jurídico, esse paradigma de separação entre observador e objeto observado, também deve ser banido. De acordo com o paradoxo do gato, existe uma relação de interdependência as realidades micro e macro, aparentemente dispares, mas que se complementam de acordo com a subjetividade do observador.
Por mais antagônica que aparente ser, a possibilidade de o gato estar vivo e morto simultaneamente, coaduna-se com a ideia de dualidade quântica onda e partícula, que deflagra uma realidade pautada em valores aglutinativos e probabilísticos.
Nesse impasse, a teoria do Direito quântico sugere que o Direito, tal como a luz e as partículas subatômicas, possui uma natureza dual, pois que é, ao mesmo tempo, instrumento de dominação e de resistência; de manutenção do status quo e de inclusão social; de segurança jurídica e de justiça distributiva. “As leis humanas são, portanto, leis de probabilidade, como as demais leis da Sociedade Cósmica” (TELLES JUNIOR, 1985, p.434).
Ao conceber uma natureza dual do Direito como instrumento de dominação-resistência, a Teoria Quântica do Direito desvela o caráter político de todas as decisões judiciais, que ora tutelam os interesses de manutenção do status quo, ora os interesses de redução da tensão de poder entre opressores e oprimidos.
A interpretação da norma jurídica deixa de ser mera elucidação de significado, transformando-se em verdadeira produção de significado normativo a ser imposto à sociedade em complexas relações de poder-saber.
Nesse contexto, o operador do Direito não deve apenas contemplar uma realidade prevista pela norma, ou pela moral dominante, ele deve atentar para conceitos não previstos ou estigmatizados. Sempre almejando o conhecimento holístico, tendo sua subjetividade como paradigma integrativo dessas novas opções.
2. Neutralidade: Uma quimera jurídica
Em interessante reflexão sobre as fronteiras da imparcialidade, o economista Eduardo Giannetti, em sua obra intitulada “Auto Engano”, defende que a parcialidade é inerente à condição humana. Segundo ele, o viés de sermos quem somos vem inscrito já na constituição dos nossos órgãos sensoriais e o mundo que nos cerca nunca se mostra como é, mas antes, de acordo com o ponto vista que elegemos para enxerga-lo. Nas palavras do autor, “Tudo se ajusta, sem nos pedir licença, ao nosso olhar” (GIANNETTI, 1997, p.157).
Aos olhos de um pedestre atento ao que realmente está vendo diante de si, a luminária acesa no poste à noite é maios que a lua cheia. O vagalume a um palmo do nariz brilha mais forte que a mais majestosa e cintilante estrela no céu. A baía de Guanabara cabe com folga na janelinha do avião em que estamos. O testemunho inocente dos sentidos faz de cada ser humano o centro ambulante do universo. Se a retina comporta o horizonte infinito e tudo que se põe no caminho, porque sentir-se humilde diante da vastidão do cosmos? (GIANNETTI, 1997, p.157).
É cediço que na rotina de julgamentos que vivemos, não há como considerar uma imparcialidade fática, pois que quase nunca é possível racionalizar as influências internas, decorrentes de nossas convicções, tradições, valores e sentimentos. “Assim como a tristeza e a alegria, os preconceitos e as convicções, hauridas na vivência familiar e social, integram o próprio ser humano, como componentes indissociáveis da sua estrutura” (BARBOSA; PAMPLONA FILHO, 2011, p.252).
Ocorre que, numa perspectiva jurídica, cabe uma discussão mais acurada sobre o conceito de imparcialidade. Inicialmente, cumpre trazer a lume que na semântica jurídica, segundo doutrina majoritária, imparcialidade e neutralidade não são vocábulos sinônimos[28].
Comungando desse pensamento:
[...] as diversas acepções gramaticais do termo já seriam suficientes para demonstrar a enorme complexidade da discussão acerca da neutralidade, notadamente se encarada sob uma ótica leiga. [...] ousamos discordar [...] de que neutro e imparcial sejam sinônimos, pelo menos do ponto de vista jurídico-político (BARBOSA; PAMPLONA FILHO, 2011, p.254-255).
Conforme ensina a melhor doutrina, o caráter da imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. O juiz coloca-se entre as partes e acima delas, sendo sua imparcialidade pressuposto para que a relação processual se instaure validamente[29]. Em verdade, tem-se a imparcialidade como verdadeiro imperativo categórico da ampla defesa e do contraditório.
Nesse sentido:
A fruição isonômica do direito ao contraditório e à ampla defesa representa uma das vigas mestras do processo, que permite às partes declinar elementos de convicção idôneos, ou não, a suportar a pretensão judicializada. Nessa perspectiva é que se desenvolve a imparcialidade do Juiz, que, vinculado ao arcabouço normativo, submete-se ao dever de promover a paridade de armas e a igualdade de oportunidades, com vista à construção dos argumentos e do corpo probatório; vigilante, contudo, em relação às manobras imorais e antijurídicas, desnecessárias e protelatórias, absolutamente indesejáveis na formação do seu livre convencimento político (BARBOSA; PAMPLONA FILHO, 2011, p.262).
Neste norte, falar em imparcialidade é falar de uma das fontes principais do princípio constitucional do juiz natural. É falar sobre um magistrado sem amarras externas que o forcem a favorecer interesse outro que não seja a consecução da justiça.
O próprio Código de Ética da Magistratura Nacional dedica capítulo exclusivo no sentido de exigir postura imparcial dos juízes, chegando, inclusive, a delimitar um conceito para o instituto em comento. Vejamos:
CAPÍTULO III - IMPARCIALIDADE
Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.
Art. 9º Ao magistrado, no desempenho de sua atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação.
Parágrafo único. Não se considera tratamento discriminatório injustificado:
I - a audiência concedida a apenas uma das partes ou seu advogado, contanto que se assegure igual direito à parte contrária, caso seja solicitado;
II - o tratamento diferenciado resultante de lei.
(BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Código de Ética da Magistratura Nacional).
Ultrapassadas essas primeiras noções sobre a acepção jurídica da imparcialidade, já se pode notar que ela refere-se a âmbito muito mais restrito que o conceito de neutralidade. A imparcialidade, considerada sob o prisma do Direito, é conteúdo íntimo à jurisdição e pressuposto legal do princípio do juiz natural[30].
Ocorre que, a imparcialidade é apenas um dos aspectos abarcados pela noção de neutralidade. Colocar-se de maneira equânime entre as partes, de modo a não favorecer indevidamente nenhuma delas é uma coisa. Coisa diferente é não usar valores pessoais. Portanto, a neutralidade se desdobra em duas exigências: imparcialidade e objetividade.
Numa abordagem menos dogmática que filosófica (já que é a isso que se propõe o presente estudo) referente à ciência do Direito, convém destacar a falência do modelo de neutralidade científica no mundo jurídico. Com efeito, os novos paradigmas epistemológicos, inaugurados pela física moderna, surtem efeitos no processo de interação “homem-norma” e, nessa circunstância, emerge a celeuma da neutralidade[31].
Ocorre que, no cenário jurídico, o operador do Direito não cumpre papel de mero observador, descrevendo um significado único e verdadeiro da lei. Em particular, no que se refere à atividade interpretativa do magistrado, ele atua como verdadeiro agente político, quando, através da atividade interpretativa, cria novos Direitos utilizando critérios e escolhas determinadas. Por isso, assim como ocorre com os cientistas das dos demais ramos do conhecimento, não há que se falar em juiz neutro, já que, ainda que quando cumpre as exigências legais da imparcialidade, falta-lhe a característica de objetividade.
Em verdade, apesar do enfoque aqui dado à figura do juiz, esse pensamento também pode ser considerado para os demais atuantes do Direito. A citar, a atividade legislativa e a atuação dos advogados, que estão também sujeitos a essa “contaminação interativa”.
Sob o enfoque do Direito quântico, em seu viés probabilístico, tem-se que o magistrado, por ser observador que não pode se livrar dos valores morais, sociais e políticos a ele intrínsecos, produzirá sentença resultante de sua interpretação carregada de “vícios” inerentes a sua vivência pessoal. Desse modo, a sentença é objeto moldado de acordo com o entendimento do sujeito observador, neste caso o juiz, e isso corrobora a ideia de que a “verdade” encontrada não tem valor absoluto e inconteste, já que centrada em probabilidades, tem natureza eminentemente relativa[32].
Nesse sentido:
Representa-se escolarmente a sentença como o produto de um puro jogo lógico, friamente realizado com base em conceitos abstratos, ligados por inexorável concatenação de premissas e consequências; mas, na realidade, no tabuleiro do juiz, as peças são homens vivos, que irradiam invisíveis forças magnéticas que encontram ressonâncias ou repulsões ilógicas, mas humanas, nos sentimentos do judicante. Como se pode considerar fiel uma fundamentação que não reproduza os meandros subterrâneos dessas correntes sentimentais, a cuja influência mágica nenhum juiz, mesmo o mais severo, consegue escapar? (CALAMANDREI, 1995. p. 175-176, apud, BARBOSA; PAMPLONA FILHO, 2011, p.251).
O grande dilema da física moderna, levantado principalmente pela física quântica e pela teoria da relatividade, é justamente a autonomia do observador. De acordo com os novos paradigmas, o observador participa ativamente do processo de observação, não só descrevendo a realidade vislumbrada, mas criando novas realidades. Ao perquirir a verdade, por mais revestido que esteja do método cientifico, o resultado almejado será, inexoravelmente, eivado de subjetivismo.
A subjetividade constitui-se como base calcária na correlação entre a personalidade do magistrado e a sentença, que reflete inexoravelmente seus anseios, dúvidas e ideais. Ao sentenciar o magistrado opta por uma realidade distinta e excludente da outra, é o que Túlio Vianna chama de “principio da incerteza jurídica”, pois as realidades optadas tendem a fomentar sentimentos distintos. Dessa forma, não existe uma racionalidade única a ser adotada em toda e qualquer lide, não existe uma essência da norma a ser desposada pelo juiz, findando a ideia de pureza da norma Kelseniana (VIANNA, 2008, p.121-122).
Contempla-se assim uma análise holística da realidade, que por sua vez, torna-se incompatível com o ideal de neutralidade e pureza defendido anteriormente pela física clássica. Falar em neutralidade significa nutrir uma falácia, porquanto não há como sustentar a existência de um julgamento puramente objetivo, isento de valores subjetivos.
Por outro lado, o grande interesse em manter esse pensamento, diga-se de passagem, ultrapassado, tem razão por ser a neutralidade, hoje, vista como componente indispensável da credibilidade do Direito. Em verdade, a neutralidade jurídica representa um sentimento gregário de satisfação límpida da justiça.
Assim, não obstante restar comprovada a natureza mitológica da neutralidade, reconhece-se sua importância na manutenção da credibilidade social do Poder Judiciário. O juiz, vez que exerce um papel social, funciona como símbolo de autoridade que reflete os ideais de justiça. Admitir a subjetividade das decisões seria macular o próprio sentimento societário de justiça.
Em suma, afirmar a neutralidade jurídica, embora falacioso, cumpre o necessário papel de fortalecer a imagem do Poder Judiciário como equilíbrio e como modelo social de solução desprovida de influências indesejáveis. Já (bem) dizia o poeta “mentiras sinceras me interessam”.
3. Segurança jurídica: um ideal de ordem
A objetividade ideal, traduzida no mito da neutralidade dos magistrados é que permite, de certa forma, a sensação de estabilidade social. De fato, admitir a ideia de que os juízes podem dar soluções jurídicas desiguais ao julgarem casos muito similares, seria confessar a existência do próprio caos.
E exatamente nesse cenário surge outro “remédio social”, a chamada segurança jurídica, cuja principal função é a propagação da boa aplicação do Direito. Dentro desse mesmo condão, as súmulas servem também como instrumento que garante um maior grau de previsibilidade das decisões[33].
Nas palavras de Pontes de Miranda, citado pelo professor Durval Carneiro Neto, a segurança jurídica implica “que vigore determinado sistema jurídico e haja a convicção de que será aplicado nos casos particulares” (PONTES DE MIRANDA, 1972, p.194, apud, CARNEIRO NETO, 2009, p.2).
Ainda nesse norte:
O homem moderno sente a necessidade de saber exatamente o que deve ser feito para alcançar determinada meta, pois a sensação de incerteza e subjetividade lhe causa um profundo desconforto. E a principal característica deste racionalismo mecanicista é a análise fragmentária, dividindo-se o todo em partes cada vez menores e que são objeto de minucioso exame. Reduz o objeto de estudo na pretensão de entendê-lo melhor. Perde-se, contudo, a visão sistêmica e sincrônica da realidade. O mundo passou a ser visto como um grande relógio, cujas peças têm uma função precisa e devem ser estudadas isoladamente (CARNEIRO NETO, 2009, p.4).
Entretanto, tendo em vista os novos paradigmas quânticos, que encaram a realidade como um todo integrado, admitindo a complexidade micro-social, subsistiria essa previsibilidade objetiva do Direito? Se nem mesmo a segurança teorizada nas ciências naturais tem sustento, dado o alto grau de incertezas físicas, como falar em segurança no mundo jurídico, onde o próprio objeto de estudo envolve fenômenos muito mais complexos?
A concepção moderna de segurança jurídica, avaliada sob a ótica filosófica, manifesta-se na opinião positivista de ordem. Sobre o assunto:
Ao tratar da ordem social e da estabilidade, Pontes de Miranda reconhece que “muitas vezes, tal estabilidade é injustiça e traz maiores danos do que tudo”. Daí entender que o Direito deveria se ocupar simultaneamente de dois valores por ele denominados de segurança intrínseca (segurança como justiça) e segurança extrínseca (segurança como ordem), considerando que o grau de perfeição do sistema jurídico residiria no equilíbrio entre eles. [...] Não obstante, Pontes de Miranda reconhece que não raro o sistema privilegia a segurança extrínseca, através de “regras jurídicas técnicas” que buscam, precipuamente, por ordem nas questões sociais. Nestes casos, “o despotismo legal é melhor do que a ausência de lei, porque se tem por fito a segurança jurídica. Não se cogita principalmente de resolver bem, mas antes de tudo, de resolver, o que é diferente” (PONTES DE MIRANDA,1972, p.196, apud, CARNEIRO NETO, 2009, p.2).
Observa-se que, na ciência jurídica, assim como nas ciências naturais, a desordem e o caos sempre foram temidos e, de alguma forma, repreendidos. Ocorre que, admitidos pela física moderna, os ideais de probabilidades e incertezas incorporaram-se no próprio conceito de ciência. Contudo, na ciência jurídica, parece-nos mais difícil vencer essa luta ideológica. Isto porque, mesmo que antiquados, os modelos mecanicistas ainda estão arraigados na prática do Direito, revelando-se quando no (quase que total) desprezo da complexidade fática. Nas palavras de Durval Carneiro (2009, p.14) “(...) um mundo complexo não pode ser regulado por um Direito que ignore tal complexidade”.
Nesse sentido:
No Direito, assinala Arnaldo Vasconcelos, “absolutizou-se o conceito de cientificidade, tornando-o dogmático e, consequentemente (sic), anticientífico. É o destino irrecorrível das teorias fechadas, formalistas e auto-sustentáveis”. Daí porque, acentua, “a ciência adulta do século XX teve de renunciar a duas pretensões, que a qualificaram como conhecimento superior a todos os demais, quais sejam, de apresentar exatidão de resultados e de resolver definitivamente os grandes problemas do homem” (VASCONCELOS, 2006, apud, CARNEIRO NETO, 2009, p.14)
4. A hermenêutica da criação
A análise quântica do Direito nos permite enxergar que as barreiras que separavam o sujeito cognoscente do objeto cognitivo foram derrubadas. Quando desconstruído o mito da neutralidade, o sujeito da relação jurídica não mais exerce o papel de reles observador, mas interfere e cria novas realidades a partir de sua visão, visão esta carregada de subjetivismo.
Diante desse quadro, o operador do Direito, vez que utiliza o método de compreensão para interpretar as normas jurídicas, encontra-se diante de uma realidade a ser modificada através do seu olhar. Em outras palavras, o intérprete, em seu vínculo com a norma jurídica, cria novos direitos. Assim, no panorama quântico, interpretar é criar!
Relembrando os conceitos da física moderna, a realidade curva-se na presença do observador. Nesse sentido, a ciência do Direito deve enfrentar esse novo paradigma, onde a realidade jurídica é curvada pela presença do intérprete das normas.
Sobre o ato de interpretação, válido citar:
Talvez seja por isso que juristas do porte de um Gustavo Radbruch – nisto distinguindo-a da interpretação filológica – possam dizer que “a interpretação jurídica não é pura e simplesmente um pensar de novo aquilo que já foi pensado, mas, pelo contrário, um saber pensar até ao fim aquilo que já começou a ser pensado por um outro (RADBRUCH, 1961, p.274, apud, BRANCO ; COELHO; MENDES, 2002, p.54).
A interpretação é, deveras, a atividade intelectual que estabelece sentido e torna possível a aplicação das normas abstratas e gerais a uma realidade concreta e particular. O grande problema do operador do direito, nesse sentido, é superar o abismo material existente entre a generalidade do enunciado normativo e a singularidade do caso a ser decidido.
Ao fim e ao cabo, o de que se trata [...] é de uma transformação das disposições legais em direito interpretado – como decorrência da assumida descontinuidade que exista entre a expressão linguística da disposição e sua compreensão e interpretação para fins de aplicação –, uma transformação realizada no raciocinar de um operador do direito situado e datado, historicamente condicionado, portanto, cujas idéias (sic) e valores, para não dizer preconceitos ou ideologia, se não determinam, pelo menos condicionam, em larga medida, a sua visão do justo (BRANCO ; COELHO; MENDES, 2002, p.56).
Demais disso, a norma jurídica está longe de poder ser encarada como objeto estático e absoluto, em moldes mecanicistas. Ao contrário, o enunciado normativo, encontra-se em sentido diametralmente oposto à visão Newtoniana e Kelseniana de pureza e inércia[34]. Em um processo de eterna transformação, as normas são ampliadas e enriquecidas quando confrontadas com as infinitas possibilidades fáticas, já que o legislador não é capaz de “profetizar” os casos que irão surgir.
Desse modo, entende-se o processo dialético da interpretação como atividade infinita, tendo em vista o processo de constante mutação que vive a sociedade. A compreensão de uma norma que parecia ser adequada em um dado momento pode soar absurda em outro contexto. Isso porque, a atividade interpretativa deve acompanhar as transições e necessidades sociais. Afinal, é priorizando a eficácia que se preserva a força das normas[35].
Sobre o assunto:
Apesar disso, cumpre atentar para a advertência de Gadamer, a nos dizer de que o intérprete, para compreender o significado de um texto, embora deva olhar para o passado e atentar para a tradição, não pode ignorar-se a si mesmo, nem desprezar a concreta situação hermenêutica em que se encontra, pois o ato de concretização de toda norma jurídica ocorre no presente e não ao tempo em que ela foi produzida. Uma coisa é fundir os horizontes de compreensão do texto; outra, bem diversa, é desconhecer que a aplicação de qualquer norma jurídica tem em mira resolver problemas atuais, segundo critérios de valor que vigoram no presente, e por decisão de quem – hic et nunc – dispõe de legitimidade para criar novos modelos jurídicos ou simplesmente preservar a validade dos que foram editados anteriormente.
Afinal de contas, como adverte Radbruch, com apoio em Hobbes, “o legislador não é [apenas] o autor material da lei, por virtude de cuja autoridade ela foi lançada a circular, mas sim [também] aquele por cuja autoridade ela continua a ser lei”, entendimento que, de resto, é também o de Chaim Perelman, para quem “o fato de manter um antigo texto de lei não significa em absoluto que o legislador atual deseje que seja interpretado em conformidade com o espírito dawuele que o adotou”, porque “o mais das vezes o legislador atual consagra, com seu silêncio, a interpretação nova que a jurisprudência fornece, de tempos em tempos, de um texto antigo” (GADAMER; PERELMAN; RADBRUCH, apud BRANCO; COELHO; MENDES, 2002 p. 67).
Do poder criador dado ao intérprete decorre o acirrado debate sobre os limites do exercício da jurisdição, considerando que, ao emprestar sentidos novos a um mesmo enunciado normativo, na prática, os intérpretes produzem novos enunciados a partir de um texto que se mantém inalterado.
Sobre esse embate, atualmente defendido pela corrente do ativismo judicial e rechaçado pelos guardiões da tripartição de poderes, não levantaremos maiores polêmicas. Contudo, cabe-nos dizer que, não obstante a evidente possibilidade de decisões divergentes serem extraídas de um mesmo texto legal, em nome da imaculada “ordem” e “segurança jurídica”, pode-se sentir um discreto acordo social que advoga pela manutenção do status quo. Um atual instrumento que pode ser citado nesse contexto é a edição da súmulas vinculantes.
O fato é que, o modelo Kelseniano que reduz o direito à letra da lei, em nenhum momento pode vigorar, sob o viés quântico. Inclusive, a esse respeito, o notável jurista e filósofo alemão, Karl Larenz estuda a ciência jurídica escudada em uma metodologia hermenêutica histórico-social, que atrela os valores sociais à própria atividade interpretativa das normas. O ato de interpretação das normas jurídica, de per si, é um ato de criação, dentro de dado quadro.
Acerca desse pensamento:
Em outra perspectiva, partindo da virada hermenêutico-pragmática, com autores como Gadamer e Habermas, podemos compreender a importância do contexto para a própria atribuição de sentido às normas jurídicas. Assim, têm de ser abandonadas posturas unilaterais, como a de Kelsen, que privilegia a forma, ou, por exemplo, a de Carl Schmitt, que, contrariamente, despreza a Constituição escrita, considerando-a como “ideal”, dando preferência ao conteúdo, às decisões políticas fundamentais de um povo, para se reconhecer a necessária complementariedade entre texto e contexto, ideal e real, global e local, enfim, entre forma e matéria(TORRES, 2006, p.75).
Contudo, valendo-se dessa faculdade criativa, impõem-se, em sede hermenêutica, limites ao intérprete, que não deve ultrapassar a moldura normativa oferecida pelo texto. Em verdade, se não existissem tais limitações, como justificaríamos aos cidadãos o dever de obediência às leis, se nem mesmo os aplicadores oficiais do direito a respeitassem? Soaria como uma verdadeira confissão de um sistema despótico.
Acerca disso, acertados os ensinamentos de Gadamer, quando afirma que só é possível uma hermenêutica jurídica onde a lei vincule, por igual, a todos os membros da comunidade jurídica, tanto os governantes quanto os governados, tanto os legisladores, quanto os juízes:
A ideia do direito contém a idéia da igualdade jurídica. Se o soberano não está submetido à lei, mas pode decidir livremente acerca da sua aplicação, fica então, obviamente, destruído o fundamento de toda hermenêutica. Aqui também se mostra que a interpretação correta das leis não é uma simples teoria da arte, uma espécie de técnica lógica da subsunção sob parágrafos, mas uma concreção prática da idéia (sic) do direito. A arte dos juristas é também o cultivo do direito (GADAMER, apud, BRANCO; COELHO; MENDES, 2002, p.69)
D’outra banda, há que se falar que nenhuma interpretação ocorre no vazio. Trata-se de uma prática contextualizada, que leva em consideração condições histórico-sociais. Daí trazer a lume a necessidade de uma visão holística da realidade, como tão bem expõe o Direito quântico.Sem pré-compreensão o jurista-intérprete reproduz sentido inautêntico, dogmatizado e inefetivo aos dispositivos constitucionais. Tal postura afeta, indiscutivelmente, a cidadania e a efetividade de todos os direitos.
Imperioso destacar que as decisões judiciais requerem confirmação, no sentido de verificar se são compatíveis com outras decisões e princípios jurídicos reconhecidos, se são materialmente adequadas. Não obstante serem entalhadas por juízos de valor, as decisões judiciais devem ser fundamentadas sistematicamente e passíveis de uma crítica racional.
Se não existe interpretação sem intérprete; se toda interpretação, embora seja um ato de conhecimento, traduz-se, afinal, em uma manifestação de vontade do aplicador do direito; se a distância entre a generalidade da norma e a particularidade do caso exige, necessariamente, o trabalho mediador do intérprete, como condição indispensável ao funcionamento do sistema jurídico; se no desempenho dessa tarefa, resta sempre uma insuprimível margem de livre apreciação pelos sujeitos da interpretação; se, ao fim e ao cabo, isso tudo é verdadeiro, então o ideal de racionalidade, objetividade e, mesmo, de segurança jurídica, aponta para o imperativo de se fazer recuar o mais possível o momento subjetivo da decisão e procurar reduzir ao mínimo aquele “resíduo incômodo” de voluntarismo e de livre convencimento, que se faz presente, inevitavelmente, em todo trabalho hermenêutico. (BRANCO; COELHO; MENDES, 2002, p.70)
Daí a importância democrática do princípio do devido processo legal e das garantias judiciais, como instrumentos de racionalização do debate processual e de legitimação social de seus resultados. Com esse mesmo condão, o dever de fundamentar as sentenças, sob pena de nulidade, mostra que o ato decisório, para ser legitimado deve ter o mínimo de objetividade para que seja visto como justo e racional sob a ótica popular. Vejamos:
E a tal ponto chegaram essas exigências de motivação – de resto plenamente compreensíveis no contexto de aprimoramento do Estado de Direito – que já não basta apresentar razões normativas, reputadas necessárias, mas não suficientes, para justificar as decisões jurídicas ou quaisquer outras de repercussão social. Torna-se necessário, então, justificar a própria justificação, oferecer uma justificação última e profunda, que se baseie em outras razões – tais como justiça, razoabilidade, oportunidade e correção – que não derivam diretamente das normas e princípios do ordenamento jurídico, mas devem ser objetivas e acessíveis à compreensão de todos quantos, direta ou indiretamente, sejam afetados pelas decisões dos aplicadores do direito. Noutros termos, para que os respectivos atos decisórios se reputem válidos, dotados de consistência e legitimidade, dir-se-ia que é da natureza desse procedimento que o inicialmente subjetivo possa torna-se objetivo, o inter-subjetivo transcendental husserliano, via do qual, a partir do mesmo ponto de vista, aquilo que inicialmente se apresente como verdade apenas para mim venha a sê-lo também para todos.( (BRANCO; COELHO; MENDES, 2002, p.71-72)
Há sempre um freio. Por mais ampla que seja a liberdade do da atividade interpretativa, não se pode, subjetivamente, atribuir significados arbitrários aos enunciados normativos, indo além do sentido linguisticamente possível. É cediço que a discricionariedade é característica inerente ao próprio ato de julgar. Contudo, necessário um limite racional a fim de se evitar decisões que ultrapassem a lógica basilar do ordenamento jurídico e seja fadada a torna-se socialmente ineficaz.